Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Uma das graças que eu devo ao
Supremo Arquiteto do Universo é haver me dotado de vista excelente. Até os
sessenta e cinco anos eu recusei aos olhos, sempre, qualquer auxílio
artificial, vindo a capitular, apenas, há seis, quando tive de recorrer à
piedade ótica de um monóculo providencial. Um aparelho visual perfeito vale por
uma bênção do céu; e deve levantar as mãos, rendendo-lhe o culto do seu
coração, todo homem, velho ou moço, que tem a luz suficiente para enxergar, de
noite ou de dia, os perigosos buracos do mundo.
Não era assim, infelizmente, o
meu saudoso amigo Vieira Cardoso, a quem a magnanimidade do imperador concedeu,
mais tarde, o título de visconde de Guaxupé.
Vieira Cardoso, que foi duas
vezes ministro na Monarquia, era, talvez, o homem mais míope de todo o Brasil.
Usava grau três, reforçado, e, tirando o pince-nez, era capaz de confundir um
ovo com um prego e de comer o prato em lugar da linguiça. Ele era, mesmo, tão
curto dos olhos, que muitas vezes se surpreendeu, ele próprio, batalhando nas
fileiras do partido contrário, vitorioso na véspera, na suposição de que
estava, ainda, ao lado dos seus correligionários derrotados. O fruto desse
defeito colheu-o ele, entretanto, nos limites do lar, em um incidente que ele
mesmo, um dia, me contou.
Era o visconde ministro da
Justiça, no gabinete Tamandaré, quando, certa manhã, entrou na sua sala de
trabalho, em sua própria residência, uma senhora encantadora, que lhe ia pedir,
como as esposas de hoje, um emprego para o marido. Cabeça baixa, olhos e nariz
no papel, estudava o ministro um dos processos que lhe eram submetidos a
despacho, quando, insensivelmente, estendeu o braço, alcançando a dama pela
cintura. Com a brutalidade da surpresa, a moça não abriu, sequer, a boca; e nem
lhe era isso possível, porque, quando quis protestar, estava, já, com os lábios
grossos do visconde grudados, como ostra em rochedo, nos seus polpudos lábios
famintos!
Nesse momento, porém, abre-se, ao
fundo, a porta do gabinete, e surge, com a cólera faiscando nos olhos, o vulto
da Viscondessa.
— Senhor visconde, que é isso? —
exclamou, rubra, a esposa do ministro.
A essa voz, a aventureira, de um
salto, ganhou a porta fronteira, desaparecendo sob o reposteiro solferino.
Boquiaberto, o visconde deixou-se ficar sentado, com os braços estendidos.
Ouvindo, porém, de novo as palavras indignadas da esposa, estranhou, aflito,
pondo-se de pé:
— Então, não era vossa
excelência, Sra. Viscondessa? Não era vossa excelência que estava
aqui, a meu lado?
E, tateando na mesa, procurando,
com os dedos trêmulos, o pince-nez, lamentou, batendo na testa, com a mão
espalmada:
— Maldita miopia!... Maldita
miopia!...
E escanchou a bicicleta no nariz.
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