Miloca
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
CAPÍTULO 1
D. Pulquéria da Assunção era uma senhora de
seus sessenta anos, arguta, devota, gorda, paciente, crônica viva, catecismo
ambulante. Era viúva de um capitão de cavalaria que morrera em Monte Caseros
deixando-lhe uma escassa pensão e a boa vontade de um irmão mais moço que
possuía alguma coisa. Rodrigo era o nome desse único parente a quem o Capitão
Lúcio confiara D. Pulquéria na ocasião de partir para o Rio da Prata. Era bom
homem, generoso e franco; D. Pulquéria não sentiu muito por esse lado a morte
do marido.
Infelizmente, o cunhado não era tão remediado
como parecia à viúva, e além disso não tinha meios nem tino para fazer crescer
os poucos cabedais que ajuntara durante longos anos no negócio de armarinho. O
estabelecimento de Rodrigo, excelente e afreguesado em outros tempos, não podia
competir com os muitos estabelecimentos modernos que outros comerciantes
abriram no mesmo bairro. Rodrigo vendia de vez em quando algum rapé, lenços de
chita, agulhas e linhas, e outras coisas assim; sem poder oferecer ao freguês
outros gêneros que aquele ramo de negócio havia adotado. Quem lá ia procurar um
corte de vestido, uma camisa feita, uma bolsa, um sabonete, uns brincos de
vidrilho, tinha o desgosto de voltar com as mãos vazias. Rodrigo estava atrás
do seu tempo; a roda começou a desandar-lhe.
Além deste inconveniente, Rodrigo era
generoso e franco, como disse acima, de maneira que, se por um lado não lhe
crescia a bolsa, por outro ele próprio a desfalcava.
D. Pulquéria resolveu ir viver com o cunhado
e foi uma felicidade para este, que tinha uma filha e precisava de lhe dar uma
mãe. Ninguém melhor para esse papel do que a viúva do capitão, que, além de parenta
da menina, era um símbolo de ordem e austeridade.
Miloca tinha dezessete anos. Até os quinze
ninguém diria que viria a ser bela; mas, dessa idade em diante enfeitou muito, como dizia D. Pulquéria.
Era a mais formosa cara do bairro e a mais elegante figura da Cidade Nova. Não
tinha porém a viveza das moças da sua idade; era séria e empertigada demais.
Quando saía olhava para diante de si sem volver a cabeça para nenhum lado nem
se preocupar com os olhares de admiração que os rapazes lhe deitavam. Parecia
ignorar ou desdenhar a admiração dos outros.
Esta circunstância, não menos que a beleza,
tinha dado à filha de Rodrigo uma celebridade real. Os rapazes chamavam-lhe Princesa; as moças puseram-lhe a alcunha
de Pescoço de pau. A inveja das
outras explorou o mais que pôde o orgulho de Miloca; mas se ela desdenhava a
admiração, parecia também desdenhar a inveja.
D. Pulquéria reconhecia na sobrinha essa
altivez singular e procurava persuadi-la de que a modéstia é a primeira virtude
de uma moça; perdoava-lhe porém o defeito, por ver que em tudo mais a sobrinha
era um modelo.
Havia já cinco anos que a viúva do capitão
Lúcio morava com a família do cunhado, quando este foi procurado por um rapaz
desconhecido que lhe pediu meia hora de conversa particular.
— Chamo-me Adolfo P***, disse o moço quando
se achou a sós com Rodrigo, e sou empregado no Tesouro. Pode informar-se do meu
comportamento. Quanto ao meu caráter, espero que com o tempo conhecerá.
Pretendo...
Aqui estacou o rapaz. Rodrigo, que era homem
sagaz, percebeu qual era a pretensão de Adolfo. Não o auxiliou entretanto;
preferiu saborear-lhe a perplexidade.
— Pretendo, repetiu Adolfo ao cabo de alguns
segundos de silêncio, pretendo... ouso pedir-lhe a mão de sua filha.
Rodrigo ficou alguns instantes calado. Adolfo
continuou...
— Repito; pode informar-se a meu respeito...
— Como pai, reconheço que me cumpre velar
pelo futuro de minha filha, disse Rodrigo, mas a primeira condição de um
casamento é a afeição recíproca. Tem autorização dela para?...
— Nunca nos falamos, disse Adolfo.
— Então... escrevem-se? perguntou Rodrigo.
— Nem isso. Duvido até que ela me conheça.
Rodrigo deu um salto na cadeira.
— Mas então, disse ele, que vem o senhor
fazer à minha casa?
— Eu lhe digo, respondeu o pretendente. Amo
sua filha apaixonadamente, e não há dia em que não procure vê-la; infelizmente,
ela parece ignorar que eu existo no mundo. Até hoje, nem por distração, recebi
um olhar dela. Longe de me desagradar esta indiferença, dou-me por feliz em
achar tamanha discrição numa idade em que geralmente as moças gostam de ser
admiradas e requestadas. Sei que não sou amado, mas não acho impossível vir a
sê-lo. Seria porém impossível se continuasse a situação em que ambos nos
achamos. Como saberia ela que eu a adoro, se nem suspeita que eu existo? Depois
de refletir muito neste assunto, tive a ideia de vir pedir-lhe a mão de sua
filha, e no caso de que o senhor não me achasse indigno dela, pediria para ser
apresentado à sua família, caso este em que eu poderia saber se realmente...
— Paremos aqui, interrompeu Rodrigo. O senhor
pede-me uma coisa singular; pelo menos não conheço semelhantes usos. Estimaria
muito que o senhor fosse feliz, mas não me presto a isso... por semelhante
modo.
Adolfo insistiu no pedido; mas o pai de
Miloca cortou a conversa levantando-se e estendendo a mão ao pretendente.
— Não lhe quero mal, disse ele; faça-se amado
e volte. Nada mais lhe concedo.
Adolfo saiu de cabeça baixa.
Nesse mesmo dia procurou Rodrigo sondar o
espírito da filha, a fim de saber se ela, ao contrário do que parecia a Adolfo,
tinha dado fé do rapaz. Pareceu-lhe que não.
“Tanto pior para ele”, disse Rodrigo consigo.
No domingo seguinte estava ele à janela com a
cunhada, quando viu passar Adolfo, que lhe tirou o chapéu.
— Quem é aquele moço? perguntou D. Pulquéria.
Um leve sorriso foi a resposta de Rodrigo, —
quanto bastou para aguçar a curiosidade de D. Pulquéria.
— Você ri-se, disse ela. Que mistério é esse?
— Mistério nenhum, disse Rodrigo.
Insistiu a velha; e o cunhado não hesitou em
lhe contar a conversa e o pedido do rapaz, acrescentando que, na sua opinião
Adolfo era um palerma.
— E por quê? disse D. Pulquéria.
— Porque a um rapaz como ele não faltam meios
de se fazer conhecido da dama de seus pensamentos. Eu vendo muito papel bordado
e muita tinta azul, e onde a palavra não chega, chega uma carta.
— Não faltava mais nada! exclamou D.
Pulquéria. Mandar cartas à rapariga e transtornar-lhe a cabeça... Seu irmão
nunca se atreveu a tanto comigo...
— Meu irmão era um maricas em tempo de paz,
observou Rodrigo sorvendo uma pitada.
D. Pulquéria protestou energicamente contra a
opinião do cunhado, e este foi obrigado a confessar que o irmão era pelo menos
um homem prudente. Passada essa questão incidente, voltou D. Pulquéria ao
assunto principal e condenou a resposta que Rodrigo dera a Adolfo, dizendo que
era talvez um excelente marido para Miloca.
— Miloca, acrescentou a velha, é uma rapariga
muito metida consigo. Pode ser que não ache casamento tão cedo, e nós não havemos
de viver sempre. Quer você que ela aí fique sem proteção no mundo?
— Não, decerto, retorquiu Rodrigo, mas que
devia eu fazer?
— O que devia fazer era informar-se do rapaz,
e se lhe parecesse digno dela, apresentá-lo cá. Eu aqui estou para velar por ela.
D. Pulquéria desenvolveu este tema com a
autoridade de uma senhora convencida. Rodrigo não deixou de lhe achar alguma
razão.
— Pois bem, disse ele, eu indagarei do
procedimento do rapaz, e se vir que merece, cá o trago... Mas isso é
impossível, agora reparo; não acho bonito, nem decente que eu vá agora
buscá-lo; parecerá que lhe meto a rapariga à cara.
— Tem razão, concordou a cunhada. E a culpa
da dificuldade é toda sua. Em suma, é bom indagar; depois veremos o que se há
de fazer.
As informações foram excelentes. Adolfo
gozava de excelente reputação; era econômico, morigerado, laborioso, a pérola
da repartição, o beijinho dos superiores. Nem com uma lanterna se encontraria
marido daquela qualidade, tão à mão.
— Bem me dizia o coração, ponderou D. Pulquéria,
que este rapaz era cá enviado pela Providência Divina. E você estragou tudo.
Mas Deus é grande; esperemos que ele nos favoreça.
CAPÍTULO
2
Não confiava debalde na Providência Divina a
Sra. D. Pulquéria da Assunção. Cinco dias não eram passados quando um
acontecimento desastroso veio atar as relações entre Adolfo e a família de
Miloca.
Rodrigo era um dos mais extremos partidários
da escola romântico-estragada. Ia ver algum drama de senso comum só por
comprazer à família. Mas sempre que podia assistir a um daqueles matadouros
literários tão em moda há vinte anos, — e ainda hoje —, vingava-se da
condescendência a que o obrigava às vezes o amor dos seus. Estava então fazendo
bulha um drama em seis ou oito quadros e outras tantas mortes, obra que o
público aplaudia com delírio. Rodrigo tinha ido ver o drama, e viera para casa
entusiasmadíssimo, a tal ponto que D. Pulquéria também se entusiasmou e ficou
assentado que iriam no dia seguinte ao teatro.
Miloca tentou impedir a resolução, mas não
teve força para o conseguir. De tarde caiu sobre a cidade uma daquelas
trovoadas de que o nosso clima vai perdendo a tradição, e Rodrigo, que em tempo
seco preferia andar de carro, com mais razão desta vez mandou vir um e lá foi a
família ver a peça da moda.
Não nos interessa saber que impressões
trouxeram de lá as duas senhoras; ambas começaram a dormir apenas entraram no
carro, e se em Miloca era talvez aborrecimento, em D. Pulquéria era
evidentemente cansaço. A boa velha já não era para dramas tão compridos nem
paixões tão fortes. Encostou a cabeça e começou a ressonar.
Rodrigo ficou reduzido a um completo
monólogo. Elogiava ele o drama, soltava exclamações, interrogava inutilmente as
senhoras, e parecia engolfado na ideia de tudo que vira quando sentiu que o carro
descambava docemente para o lado esquerdo. O cocheiro passara a casa e dera uma
volta com o fim de chegar mais à porta; nessa ocasião as rodas da frente
ficaram debaixo e isto produziu a queda suave do veículo.
Os três passageiros deram um grito, que foi o
prelúdio de muitos outros gritos, principalmente de D. Pulquéria que misturava
atrapalhadamente preces e pragas. Felizmente havia na vizinhança um baile, e os
cocheiros de outros carros acudiram depressa para impedir que os burros
disparassem. Esta providência era de todo ponto inútil porque os burros, em
cujo ânimo parece que também influíra o drama, aproveitaram a queda para dormir
completamente.
O cocheiro saltou no chão e tratou de salvar
os náufragos; mas já encontrou junto da portinhola que ficara voltada para cima
um rapaz desconhecido, que parecia ter a mesma ideia.
Dizer-lhes que esse rapaz era Adolfo seria
supor que os leitores nunca leram romances. Adolfo não passara por acaso;
estava ali havia muito aguardando a volta de Miloca para ter a satisfação de a
ver de longe. Quis a fortuna dele que houvesse desastre do carro. Levado por um
duplo sentimento de humanidade e de egoísmo, o bom rapaz atirou-se ao veículo e
começou a pescar as vítimas.
A primeira pessoa que saiu foi D. Pulquéria,
que apenas se achou sã e salva, deu graças a Nossa Senhora e descompôs em
termos brandos o cocheiro. Enquanto ela falava, estendia Adolfo a mão para
dentro do carro, para tirar Miloca. A moça estendeu-lhe a mão, e o rapaz
estremeceu. Daí a dois minutos saía ela do carro, e Adolfo tirava a terceira
vítima, que gemia com a dor de uma ferida no nariz. Miloca apenas teve uma
contusão no rosto. D. Pulquéria parece que por ser gorda ofereceu mais
resistência ao choque.
Rodrigo estancava o sangue com o lenço; Miloca
entrara no corredor da casa, o cocheiro tratava de levantar o carro ajudado por
alguns colegas, quando D. Pulquéria, que já durante alguns minutos tinha os
olhos pregados em Adolfo, exclamou:
— Foi o senhor quem nos salvou! Ó mano
Rodrigo, aqui está a pessoa que nos salvou... Olhe!
— Mas não me salvou o nariz! objetou Rodrigo
com mau humor. Pois quê! é o senhor! continuou ele aproximando-se do rapaz.
— É verdade, respondeu modestamente Adolfo.
Rodrigo estendeu-lhe a mão.
— Oh! fico-lhe muito obrigado!
— Devemos-lhe a vida, observou Dona
Pulquéria, e creio que lhe seremos eternamente gratos. Quer descansar?
— Obrigado, minha senhora.
— Mas ao menos prometa que há de vir à nossa
casa, disse D. Pulquéria.
— Se me permitem essa honra...
— Não permitimos, exigimos, disse Rodrigo.
— O meu serviço não vale nada, respondeu
Adolfo; fiz o que faria outra qualquer pessoa. Todavia, se me permite, virei
saber da saúde do senhor...
— Da saúde do meu nariz, emendou
galhofeiramente Rodrigo; venha que nos dará grande prazer. Deixe-me
apresentá-lo a minha filha...
Era tarde. Miloca, menos grata que os dois
velhos, ou mais necessitada de descanso que eles, tinha subido havia já cinco
minutos.
Adolfo despediu-se de Rodrigo e de D.
Pulquéria e foi esperar na esquina a passagem do carro. Chamou o cocheiro e
deu-lhe uma nota de cinco mil-réis.
— Aqui está o que você perdeu quando o carro
tombou.
— Eu? perguntou o cocheiro que sabia não ter
um vintém na algibeira.
— É verdade, disse Adolfo.
E sem mais explicações foi andando.
O cocheiro era sagaz como bom cocheiro que
era. Sorriu e guardou o dinheiro no bolso.
Adolfo não era tão pouco fino que fosse logo
apresentar-se em casa de Rodrigo. Esperou quarenta e oito horas antes que desse
sinal de si. E não foi à casa da família, mas à loja de Rodrigo, que já lá
estava com um pequeno emplastro no nariz. Rodrigo agradeceu outra vez o serviço
que lhe prestara assim como à sua família na noite do desastre e procurou
estabelecer desde logo uma salutar familiaridade.
— Não sabe, lhe disse ele quando o rapaz se
dispunha a sair, não sabe como minha cunhada ficou morrendo pelo senhor...
— Parece ser uma excelente senhora, disse
Adolfo.
— É uma pérola, respondeu Rodrigo. E se quer
que lhe fale franco, eu estou sendo infiel à promessa que lhe fiz.
— Como assim?
— Prometi a minha cunhada que o levaria lá em
casa apenas o encontrasse, e separo-me do senhor sem desempenhar a minha
palavra.
Adolfo curvou levemente a cabeça.
— Muito agradeço essa prova de bondade, disse
ele, e sinto realmente não poder corresponder ao desejo de sua cunhada. Estou
pronto porém a lá ir apresentar-lhe os meus respeitos no dia e hora que me
designar.
— Quer que lhe diga uma coisa? disse
alegremente o comerciante. Eu não sou homem de etiqueta; sou cá do povo.
Simpatizo com o senhor, e sei a simpatia que minha cunhada lhe tem. Faça uma
coisa: venha jantar conosco domingo.
Adolfo não pôde conter a sua alegria.
Evidentemente não contava com tamanha maré de felicidade. Agradeceu e aceitou o
convite de Rodrigo e saiu.
No domingo seguinte, apresentou-se Adolfo em
casa do comerciante. Ia de ponto em branco, sem que esta expressão se deva
entender no sentido da alta elegância fluminense. Adolfo era pobre e vestia com
apuro relativamente à sua classe. Estava longe porém do rigor e da opulência
aristocrática.
D. Pulquéria recebeu o pretendente com
aquelas carícias que as velhas de bom coração costumam ter. Rodrigo desfez-se
em solícitos cumprimentos. Só Miloca parecia indiferente. Estendeu-lhe a ponta
dos dedos, e nem olhou para ele enquanto o mísero namorado murmurou algumas
palavras relativas ao desastre. O introito foi mau. D. Pulquéria percebeu isso,
e tratou de animar o rapaz, falando-lhe com animada familiaridade.
Nunca a filha de Rodrigo parecera tão formosa
aos olhos de Adolfo. A mesma severidade lhe dava um ar distinto e realçava a
incomparável beleza das suas feições. Mortificava-o, é verdade, a indiferença;
mas podia ele esperar mais alguma coisa logo da primeira vez?
Miloca tocou piano a convite do pai. Era
excelente pianista, e entusiasmou deveras o pretendente, que não pôde disfarçar
a sua impressão e murmurou um respeitoso cumprimento. Mas a moça limitou-se a
um gesto de cabeça, acompanhado de um olhar que parecia dizer: “O senhor
entende disto?”.
Durante o jantar, a velha e o cunhado fizeram
galhardamente as honras da casa. Adolfo ia perdendo a pouco e pouco as maneiras
cerimoniosas, conquanto a atitude de Miloca lhe acanhasse o espírito. Era
inteligente, polido e galhofeiro; a boa vontade dos olhos e as qualidades reais
dele venceram em pouco tempo grande caminho. No fim do jantar era um conhecido
velho.
— Tenho uma ideia, disse Rodrigo quando
chegaram à sala. Vamos dar um passeio?
A ideia foi aceita por todos, exceto por
Miloca que declarou estar incomodada, pelo que a ideia ficou sem execução.
Adolfo saiu de lá mal impressionado; e teria
desistido da empresa, se o amor não fosse engenhoso em derrubar imaginariamente
todas as dificuldades deste mundo. Continuou a frequentar a casa de Rodrigo, onde
era recebido com verdadeira satisfação, menos por Miloca que parecia cada vez
mais indiferente ao namorado.
Vendo que a situação do rapaz não melhorava,
e parecendo-lhe que a sobrinha não acharia melhor marido do que ele, interveio
D. Pulquéria, não por meio da autoridade, mas com as armas dóceis da persuasão.
— Acho singular, Miloca, a maneira por que
tratas o Sr. Adolfo.
— De que maneira o trato? perguntou a moça
mordendo os beiços.
— Secamente. E não compreendo isto porque ele
é um excelente moço, muito bem-educado, e além disso já nos prestou um serviço
em ocasião séria.
— Tudo isso é verdade, respondeu Miloca, mas
eu não sei como quer que o trate. Meu modo é esse. Não posso afetar o que não
sinto; e a sinceridade creio que é uma virtude.
— É também a virtude do Sr. Adolfo, observou
D. Pulquéria sem parecer abalada com a sequidão da sobrinha; devias ter
reparado que é um moço muito sincero, e eu...
Aqui parou D. Pulquéria por um artifício que
lhe pareceu excelente: esperou que a curiosidade de Miloca lhe pedisse o resto.
Mas a sobrinha parecia completamente ausente dali, e não deu mostras de querer
saber o resto do período.
D. Pulquéria fez um gesto de despeito, e não
disse palavra, enquanto Miloca folheava os jornais em todos os sentidos.
— Não acho casa, disse ela depois de algum
tempo.
— Casa? perguntou D. Pulquéria admirada.
— É verdade, minha tia, disse Miloca
sorrindo, eu pedi a papai para que nos mudássemos daqui. Acho isto muito feio:
não faria mal que morássemos em algum bairro mais bonito. Papai disse que sim,
e eu ando a ler os anúncios...
— Ainda agora sei disso, disse D. Pulquéria.
— Casas aparecem muitas, continuou a moça,
mas as ruas não prestam. Se fosse no Catete...
— Estás doida? perguntou D. Pulquéria; lá as
casas são mais caras do que aqui, e além disso transtornaria o negócio de teu
pai. Admira como ele consente em
semelhante coisa!
Miloca pareceu não atender às objeções da
tia. Esta, que era sagaz, e vivia com a sobrinha havia muito tempo, atinava com
a razão do recente capricho. Levantou-se e pôs a mão na cabeça da moça.
— Miloca, por que hás de ser assim?
— Assim como?
— Por que hás de olhar tanto para cima?
— Se titia está de pé, respondeu
maliciosamente a moça, eu hei de por força olhar para cima.
D. Pulquéria achou graça à resposta evasiva
que a sobrinha lhe deu e não pôde reter um sorriso.
— Tonta! lhe disse a boa velha.
E acrescentou:
— Tenho pensado muito em ti.
— Em mim? perguntou ingenuamente Miloca.
— Sim; nunca pensaste no casamento?
— Nunca.
— E se aparecesse um noivo digno de ti?
— Digno de mim? Conforme; se eu o amasse...
— O amor vem com o tempo. Há bem perto de nós
alguém que te ama, um moço digno de toda a estima, laborioso, grave, um marido
como não há muitos.
Miloca desatou a rir.
— E titia viu isso primeiro que eu? perguntou
ela. Quem é esse achado?
— Não adivinhas?
— Não posso adivinhar.
— O Adolfo, declarou D. Pulquéria depois de
um minuto de hesitação.
Miloca franziu o sobrolho; depois deu uma
nova risada.
— De que te ris?
— Acho engraçado. Com que então o Sr. Adolfo
dignou-se olhar para mim? Não tinha percebido; não podia esperar tamanha
felicidade. Infelizmente, não o amo... e por mais digno que seja o noivo, se eu
o não amar vale para mim o mesmo que um vendedor de fósforos.
— Miloca, disse a velha contendo a indignação
que lhe causavam estas palavras da sobrinha, o que acaba de dizer não é bonito,
e eu...
— Perdão, titia, interrompeu Miloca, não se
dê por ofendida; respondia gracejando a uma notícia que também me pareceu gracejo.
A verdade é que eu não desejo casar-me. Quando vier a minha hora, saberei
tratar seriamente o noivo que o céu me destinar. Creio porém que não há de ser
o Sr. Adolfo, um pé-rapado...
Aqui a boa velha cravou um olhar de
indignação na sobrinha, e saiu. Miloca levantou os ombros e foi tocar umas
variações de Thalberg.
CAPÍTULO
3
A causa de Adolfo estava condenada, e parece
que ele ajudava o seu triste destino. Já vemos que Miloca aborrecia nele a sua
não brilhante condição social, que era aliás um ponto de contato entre ambos,
coisa que a moça não podia compreender. Adolfo, entretanto, além desse pecado
original, tinha a mania singular de fazer discursos humanitários, e mais do que
discursos, ações; perdeu-se de todo.
Miloca não era cruel; pelo contrário, tinha
sentimentos caridosos; mas, como ela mesma disse um dia ao pai, nunca se deve
dar esmola sem luvas de pelica, porque o contato da miséria não aumenta a
grandeza da ação. Um dia, em frente da casa, caiu uma preta velha ao chão,
abalroada por um tílburi; Adolfo, que ia a entrar, correu à infeliz, levantou-a
nos braços e levou-a à botica da esquina, onde a deixou curada. Agradeceu ao
céu o ter-lhe proporcionado o ensejo de uma bela ação diante de Miloca que
estava à janela com a família, e subiu alegremente as escadas. D. Pulquéria
abraçou o herói; Miloca mal lhe estendeu a ponta dos dedos.
Rodrigo e D. Pulquéria conheciam o caráter da
moça e procuravam modificá-lo por todas as maneiras, lembrando-lhe que o
nascimento dela não era tão brilhante que pudesse ostentar tamanho orgulho. A
tentativa era sempre inútil. Duas causas havia para que ela não mudasse de
sentimentos: a primeira era proveniente da natureza; a segunda da educação.
Rodrigo estremecia a filha, e buscou dar-lhe uma educação esmerada. Fê-la
entrar como pensionista em um colégio, onde Miloca ficou em contato com as
filhas das mais elevadas senhoras da capital. Afeiçoou-se a muitas delas, cujas
famílias visitou desde a infância. O pai tinha orgulho em ver que a filha era
assim tão festejada nos primeiros salões, onde aliás ele nunca passou de um
intruso. Miloca bebeu assim um ar que não era precisamente o do armarinho da
Cidade Nova.
Que vinha pois fazer o mísero Adolfo nesta
galera? Não era assim o marido que a moça sonhava; a imaginação da orgulhosa
dama aspirava a maiores alturas. Podia não exigir tudo quanto quisera ter, um
príncipe ou um duque se os houvesse cá disponíveis; mas entre um príncipe e
Adolfo a distância era enorme. Donde resultava que a moça não se limitava a um
simples desdém; tinha ódio ao rapaz porque a seus olhos era grande afronta, não
já nutrir esperanças, mas simplesmente amá-la.
Para completar esta notícia do caráter de
Miloca, é mister dizer que ela sabia do amor de Adolfo muito antes que o pai e
a tia tivessem conhecimento dele. Adolfo estava persuadido que a filha de
Rodrigo nunca tinha reparado nele. Iludia-se.
Miloca possuía essa qualidade excepcional de
ver sem olhar. Percebeu que o rapaz gostava dela, quando o via na igreja ou em
alguma partida em casa de amizade no mesmo bairro. Perceber isto foi
condená-lo.
Ignorando todas estas coisas, Adolfo atribuía
à sua má ventura o não ter ganho a menor polegada de terreno. Não ousava
comunicar as suas impressões ao comerciante nem à cunhada, posto descobrisse
que ambos eram favoráveis ao seu amor. Meditou longamente no caso, e resolveu
dar um golpe decisivo.
Um ex-comerciante abastado da vizinhança
casou uma filha, e convidou a família de Rodrigo para as bodas. Adolfo também
recebeu convite e não deixou de comparecer, disposto a espreitar ali uma
ocasião de falar a Miloca, o que não lhe fora possível nunca em casa dela. Para
os amantes multidão quer dizer
solidão. Não acontece o mesmo com os pretendentes. Mas Adolfo tinha um plano
feito; alcançaria dançar com ela, e nessa ocasião soltaria a palavra decisiva.
A fim de obter uma concessão que julgava difícil na noite do baile, pediu-lhe
uma quadrilha, na véspera, em casa dela, em presença da tia e do pai. A moça
concedeu-lha sem hesitação, e se o rapaz pudesse penetrar no espírito dela, não
teria aplaudido, como fez, a sua resolução.
Miloca estava deslumbrante na sala do baile,
e ofuscou completamente a noiva, objeto da festa. Se Adolfo estivesse nas boas
graças dela, teria sentido legítimo orgulho ao ver a admiração que ela
despertava em torno de si. Mas para um namorado repelido não há pior situação
do que ver desejado um bem que lhe não pertence. A noite foi pois um suplício
para o rapaz.
Afinal chegou a quadrilha concedida. Adolfo
atravessou a sala trêmulo de comoção e palpitante de incerteza, e estendeu a
mão a Miloca. A moça levantou-se com a graça do costume e acompanhou o par.
Durante as primeiras figuras, Adolfo não ousou dizer palavra sobre coisa
nenhuma. Ao ver porém que o tempo corria, e era necessário uma decisão,
dirigiu-lhe algumas palavras banais como são as primeiras palavras de um homem
pouco afeito a tais empresas.
Pela primeira vez Miloca encarou o namorado,
e, longe do que se poderia supor, não havia em seu gesto a menor sombra de
aborrecimento; pelo contrário, parecia animar o novel cavalheiro a mais
positivo ataque.
Animado com esse introito, Adolfo foi direto
ao coração do assunto.
— Talvez, D. Emília, disse ele, talvez tenha
notado que eu...
E parou.
— Que o senhor... o quê? perguntou a moça que
parecia saborear a perplexidade do rapaz.
— Que eu sinto...
Nova interrupção.
Era chegada a Chaine des Dames. Miloca deixou o rapaz meditar nas dificuldades da
sua posição.
“Sou um asno, dizia Adolfo consigo. Pois que
razão me arriscarei a deixar para depois uma explicação que vai em tão bom
caminho? Ela parece disposta...”
No primeiro intervalo reatou a conversação.
— Dir-lhe-ei tudo de uma vez... Amo-a. Miloca
fingiu-se admirada.
— A mim? perguntou ela ingenuamente.
— Sim... atrevi-me a... Perdoa-me?
— Com uma condição.
— Qual?
— Ou antes, com duas condições. A primeira é
que se há de esquecer de mim; a segunda é que não há de voltar lá à casa.
Adolfo
olhou espantado para a moça e durante alguns segundos não achou resposta que
lhe dar. Preparou-se para tudo, mas aquilo ia além dos seus cálculos. A única
coisa que lhe pôde dizer foi esta pergunta:
— Fala sério?
Miloca fez um gesto de cólera, que reprimiu
logo; depois sorriu e murmurou:
— Que se atreva a amar-me, é muito, mas
injuriar-me, é demais!
— Injúria pede injúria, retorquiu Adolfo.
Miloca desta vez não olhou para ele.
Voltou-se para o cavalheiro que ficava próximo e disse:
— Quer conduzir-me ao meu lugar?
Deu-lhe o braço e atravessou a sala, no meio
do pasmo geral. Adolfo humilhado, vendo-se alvo de todas as vistas, procurou
esquivar-se. D. Pulquéria não viu o que se passou; estava conversando com a
dona da casa em uma saleta contígua; Rodrigo jogava nos fundos da casa.
Aquele misterioso lance teatral foi o assunto
das palestras durante o resto da noite. Impossível foi porém saber a causa
dele. O dono da casa, sabedor do acontecimento, pediu desculpa dele à filha de
Rodrigo, pois julgava ter parte indireta nele pelo fato de haver convidado
Adolfo. Miloca agradeceu a atenção, mas nada revelou do que se passara.
Nem o pai nem a tia souberam de nada; no dia
seguinte porém recebeu Rodrigo uma longa carta de Adolfo relatando o sucesso da
véspera e pedindo desculpa ao velho de ter dado causa a um escândalo. Nada
ocultou do que se passara, mas absteve-se de moralizar a atitude da moça.
Rodrigo conhecia o defeito da filha e não lhe foi difícil perceber que a causa
primordial do acontecimento fora ela. Todavia não lhe disse nada. D. Pulquéria
porém foi menos discreta na primeira ocasião que se lhe ofereceu, disse amargas
verdades à sobrinha, que lhas ouviu sem replicar.
CAPÍTULO
4
Felizes aqueles cujos dias correm com a
insipidez de uma crônica vulgar. Geralmente os dramas da vida humana são mais
toleráveis no papel que na realidade.
Poucos meses depois da cena que deixamos
relatada, a família de Miloca sofreu um grave revés pecuniário; Rodrigo perdeu
o pouco que tinha, e não tardou que a este acontecimento sucedesse outro não
menos sensível: a morte de D. Pulquéria. Reduzido à extrema pobreza e achacado
de moléstias, Rodrigo viveu ainda alguns meses atribulado e aborrecido da vida.
Miloca mostrou nesses dias amargos uma grande
força de ânimo, maior do que se podia esperar daquele espírito quimérico. Bem
sabia ela que o seu futuro era negro e nenhuma esperança poderia vir animá-lo.
Todavia, parecia completamente alheia a essa ordem de considerações.
Rodrigo faleceu repentinamente uma noite em
que parecia começar a recobrar a saúde. Era o último golpe que vinha ferir a
moça, e esse não o suportou ela com a mesma coragem até ali manifestada. Uma
família da vizinhança ofereceu-lhe asilo logo na noite do dia em que se
enterrou o pai. Miloca aceitou o favor, disposta a dispensá-lo por qualquer
maneira razoável e legítima.
Não tinha muito que escolher. Só uma carreira
lhe estava aberta: a do professorado. A moça resolveu-se a ir ensinar em algum
colégio. Custava-lhe isto ao orgulho, e era com certeza a morte de suas
esperanças aristocráticas. Mas segundo ela disse a si mesma, era isso menos humilhante
do que comer as sopas alheias. Verdade é que as sopas eram servidas em pratos
modestos...
Nesse projeto estava, — apesar de combatido
pela família que tão afetuosamente lhe abrira as portas, — quando apareceu em
cena um anjo enviado do céu. Era uma de suas companheiras de colégio, casada de
fresco, que vinha pedir-lhe o obséquio de ir morar com ela. Miloca recusou o
pedido com alguma resolução; mas a amiga vinha disposta a esgotar todos os
argumentos possíveis até vencer as repugnâncias de Miloca. Não lhe foi difícil;
a altiva órfã cedeu e aceitou.
Leopoldina era o nome da amiga que lhe
aparecera como um deus ex machina,
acompanhada pelo marido, jovem deputado do Norte, governista inabalável e
aspirante a ministro. Quem conversava com ele durante meia hora, nutria logo
algumas dúvidas sobre se os negócios do Estado ganhariam muito em que ele os
dirigisse. Dúvida realmente frívola, que ainda não fechou a ninguém as avenidas
do poder.
Leopoldina era o contraste de Miloca; tanto
uma tinha de altiva, imperiosa e seca, quanto a outra de dócil, singela e
extremamente afável. E não era esta a única diferença. Miloca era sem dúvida
uma moça distinta; mas era mister estar só. A sua distinção precisava não ser
comparada com outra. Nesse terreno também Leopoldina lhe levava muita vantagem.
Tinha uma distinção mais própria, mais natural, mais inconsciente. Onde porém
Miloca lhe levava a melhor era nos dotes físicos, o que não quer dizer que
Leopoldina não fosse bela.
Para ser exato devo dizer que a filha de Rodrigo
não aceitou alegremente, nos primeiros dias, a hospitalidade de Leopoldina.
Orgulhosa como era, doía-lhe a posição dependente em que se achava. Mas isso
durou pouco, graças à extrema habilidade da amiga, que empregou todos os
esforços para disfarçar a aspereza das circunstâncias, colocando-a na posição
de pessoa de família.
Alcançara Miloca os seus desejos. Vivia numa
sociedade bem diferente daquela em que vivera a família. Já não via todas as
tardes o modesto boticário da esquina ir jogar o gamão com o pai; não suportava
as histórias devotas de D. Pulquéria; não via à mesa uma velha doceira amiga de
sua casa; nem parava à porta do armarinho quando voltava da missa nos domingos.
Era muito outra sociedade, era a única que ela ambicionava e compreendia.
Aceitaram todos a posição em que Leopoldina tinha a amiga; muitas das moças que
lá iam foram suas companheiras de colégio; tudo lhe correu fácil, tudo se lhe
tornou brilhante.
Uma só coisa, porém, vinha de quando em
quando escurecer o espírito de Miloca. Ficaria ela sempre naquela posição, que
apesar de excelente e brilhante, tinha a desvantagem de ser equívoca? Esta
pergunta, cumpre dizê-lo, não lhe surgia no espírito por si mesma, mas como
prelúdio de outra ideia, capital para ela. Por outras palavras, o que a agitava
principalmente era o problema do casamento. Casar-se, mas casar-se bem, eis o
fim e a preocupação de Miloca. Não faltava onde escolher. Iam à casa de
Leopoldina muitos rapazes bonitos, elegantes, distintos, e não poucos ricos.
Talvez Miloca ainda não sentisse amor verdadeiro por nenhum deles; mas essa
circunstância era puramente secundária no sistema adotado por ela.
Parece que Leopoldina também pensara nisso,
porque mais de uma vez tocara nesse assunto com a liberdade que lhe dava a
afeição. Miloca respondia evasivamente, mas não repelia de todo a ideia de um
consórcio feliz.
— Por ora, acrescentava ela, ainda o meu
coração não bateu; e o casamento sem amor é uma coisa terrível, penso eu; mas
quando vier o amor, espero em Deus que serei feliz. Sê-lo-ei?
— Sê-lo-ás, respondeu comovida a amiga
hospitaleira. Nesse dia conta que eu te ajudarei.
Um beijo terminava estas confidências.
Infelizmente para Miloca, estes desejos
pareciam longe da realização. Dos rapazes casadeiros nenhum contestava a beleza
da moça; mas corria entre eles uma teoria de que a mais bela mulher deste mundo
precisa de não vir com as mãos abanando.
Ao cabo de dois anos de inúteis esperanças,
Miloca transigiu com a sua altivez, trocou o papel de praça que pede assédio
pelo de exército sitiador.
Um primo segundo de Leopoldina foi o seu
primeiro objetivo. Era um jovem bacharel, formado poucos meses antes em São
Paulo, rapaz inteligente, alegre e franco. Os primeiros fogos das baterias de
Miloca produziram efeito; sem ficar apaixonado de todo, começou a gostar da
rapariga. Infelizmente para ela, coincidiu este ataque de frente com um ataque
de flanco, e a praça foi tomada por uma rival mais feliz.
Não desanimou a moça. Dirigiu os seus tiros
para outro ponto, desta vez não pegaram as bichas, o que obrigou a bela
pretendente a lançar mão de terceiro recurso. Com mais ou menos felicidade,
andou Miloca nesta campanha durante um ano, sem alcançar o seu máximo desejo.
A derrota não lhe quebrou o orgulho; antes
lhe deu um toque de azedume e hipocondria, que a fez um tanto insuportável.
Mais de uma vez pretendeu deixar a casa da amiga e ir professar em algum
colégio. Mas Leopoldina resistia sempre a esses projetos, já mais veementes que
ao princípio. O despeito parecia aconselhar à bela órfã o completo esquecimento
de seus planos matrimoniais. Compreendia agora que, talvez pela mesma razão com
que ela recusara o amor de Adolfo, recusavam-lhe agora o amor dela. A punição,
dizia ela consigo, fora completa.
A imagem de Adolfo surgiu então em seu
espírito atribulado e abatido. Não se arrependeu do que fizera; mas lamentou
que Adolfo não estivesse em posição cabal de lhe realizar os seus sonhos e
ambições.
“Se assim fosse, pensava Miloca, eu seria
hoje feliz, porque esse amava-me.”
Tardias queixas eram aquelas. O tempo corria,
e a moça com o seu orgulho se definhava na solidão povoada da sociedade a que
aspirava desde os tempos da sua mediania.
CAPÍTULO
5
Uma noite, estando no teatro, viu em um
camarote fronteiro duas moças e dois rapazes; um dos rapazes era Adolfo. Miloca
estremeceu; involuntariamente, não de amor, não de saudade, mas de inveja.
Seria uma daquelas moças esposa dele? Ambas eram distintas, elegantes; ambas
formosas. Miloca perguntou a Leopoldina se conhecia os dois rapazes; o marido
da amiga foi quem lhe respondeu:
— Só conheço um deles; o mais alto.
O mais alto era Adolfo.
— Parece-me que também o conheço, disse
Miloca, e foi por isso que lho perguntei. Não é um empregado do Tesouro?
— Talvez fosse, respondeu o deputado; agora é
um amável vadio.
— Como assim?
— Herdou do padrinho, explicou o deputado.
Leopoldina que tinha assentado o binóculo
para ver as moças perguntou:
— Será casado com alguma daquelas moças?
— Não; é amigo da família, respondeu o
deputado; e parece que não está disposto a casar.
— Por quê? aventurou Miloca.
— Dizem que teve um amor infeliz outrora.
Miloca estremeceu de alegria, e pôs o
binóculo para o camarote de Adolfo. Este pareceu perceber que era objeto das
indagações e conversas das três personagens, e já havia conhecido a antiga
amada; todavia, disfarçou e conversou alegremente com as moças do seu camarote.
Depois de algum silêncio, disse Miloca:
— Parece que o senhor acredita em romances;
pois há quem conserva assim um amor a ponto de não querer casar?
E como se se arrependesse desta generalidade,
emendou: Nos homens é difícil encontrar tamanha constância às afeições
passadas.
— Nem eu lhe disse que ele conservava essa
afeição, observou o deputado; esse amor infeliz do meu amigo Adolfo...
— É teu amigo? perguntou Leopoldina.
— É, respondeu o marido. E continuou: Esse
amor infeliz do meu amigo Adolfo serviu para lhe dar uma triste filosofia a
respeito de amores. Jurou não casar...
— E onde escreveu esse juramento?
— Não acredita que ele o cumpra? perguntou
sorrindo o marido de Leopoldina.
— Francamente, não, respondeu Miloca.
Dias depois levou o deputado à casa o seu
amigo Adolfo e o apresentou às duas senhoras. Adolfo falou a Miloca como pessoa
de seu conhecimento, mas nenhuma palavra ou gesto revelou aos donos da casa o
sentimento que ele tivera outrora. A mesma Miloca compreendeu que tudo estava
extinto no coração do rapaz; mas não era fácil reviver a chama apagada? Miloca
contava consigo, e reuniu todas as suas forças para uma luta suprema.
Infelizmente era verdade o que dissera o
marido de Leopoldina. Adolfo parecia ter mudado completamente. Já não era o
rapaz afetuoso, e tímido de outro tempo; mostrava-se agora gelado em coisas do
coração. Não só o passado estava extinto, como nem era possível criar-lhe
nenhum presente. Miloca compreendeu isto no fim de alguns dias, e todavia não
desanimou.
Animou-a nesse propósito Leopoldina, que
percebeu a tendência da amiga para o rapaz sem todavia conhecer uma sílaba do
passado que havia entre ambos. Miloca negou a princípio, mas conveio-lhe dizer
tudo, e mais do que isso, não pôde resistir, porque ela começava a amar deveras
o rapaz.
— Não desanimes, lhe disse a amiga; estou que
hás de triunfar.
— Quem sabe? murmurou Miloca.
Esta pergunta foi triste e desanimada. Era a
primeira vez que ela amava, e isto lhe pareceu uma espécie de castigo que a
Providência lhe infligia.
— Se ele me não corresponder, pensava Miloca,
sinto que serei a mais desgraçada de todas as mulheres.
Adolfo percebeu o que se passava no coração
da moça, mas pensou que era menos sincero o afeto que ela nutria. Quem lhe
pintou claramente a situação foi o marido de Leopoldina, a quem esta havia
contado tudo, com a certeza talvez da indiscrição dele.
Se Adolfo ainda a amasse, seriam ambos
felicíssimos; mas sem o amor dele que esperança teria a moça? Digamos a verdade
toda; Adolfo era em toda a extensão da palavra um rapaz cínico, mas cobria o
cinismo com uma capa de seda, que o fazia apenas indiferente; de maneira que se
algum raio de esperança podia entrar no ânimo de Miloca bem depressa se lhe
devia esvaecer.
E quem arrancará a esperança de um coração
que ama? Miloca continuava a esperar, e de certo tempo em diante alguma coisa
lhe fazia crer que a esperança não seria vã. Adolfo parecia começar a reparar
nela, e a ter alguma simpatia. Estes sintomas foram crescendo a pouco e pouco,
até que Miloca teve um dia certeza de que o dia da sua felicidade estava
próximo. Contara com a sua admirável beleza, com os vivos sinais do seu afeto,
com algum germe do passado não de todo extinto no coração de Adolfo. Um dia
acordou confiada de que todas estas armas lhe haviam dado o triunfo.
Não tardou que começasse o período epistolar.
Seria coisa fastidiosa reproduzir aqui as cartas que os dois namorados trocaram
durante um mês. Qualquer das minhas leitoras (sem ofensa de ninguém) conhece
mais ou menos o que se diz nesse gênero de literatura. Copiarei todavia dois
trechos interessantes de ambos. Seja o primeiro de Adolfo:
...Como poderia crer que eu houvesse
esquecido o passado? Doloroso foi ele para mim, mas ainda mais que doloroso,
delicioso; porque o meu amor me sustentava naquele tempo, e eu era feliz, posto
não fosse amado. A ninguém mais amei senão a ti; mas confesso que até há pouco,
o mesmo amor que te votei outrora já havia desaparecido. Tiveste o condão de
reavivar uma chama já apagada. Fizeste um milagre, que eu tinha por impossível.
E confesso hoje, confesso sem hesitação, que
tu vieste acordar um coração morto, e morto por ti mesma. Bem hajas tu! teu,
serei teu até à morte!...
A estas calorosas expressões, respondia
Miloca com igual ardor. De uma de suas cartas, a quinta ou sexta, copio estas
palavras:
... Obrigada, meu Adolfo! tu és generoso, tu
soubeste perdoar, porque soubeste amar outra vez aquela a quem devias ter ódio.
Bem cruel fui eu em não conhecer a grandeza de tua alma! Hoje que te
compreendo, choro lágrimas de sangue, mas ao mesmo tempo agradeço ao céu o
ter-me dado a maior ventura desta vida, que é lograr a ventura que uma vez se
repeliu... Se tu soubesses como eu te amo, escrava, pobre, mendiga, castigada
por ti e desprezada por ti, amo-te, amar-te-ei sempre! etc., etc.
Numa situação como esta, o desenlace parecia
claro; nada obstava que se casassem dali a um mês. Miloca era maior e não tinha
nenhum parente. Adolfo era livre. Tal era a solução prevista por Leopoldina e
seu marido; tal era a de Miloca.
Mas quem sabe o que nos guarda o futuro? E a
que desvairamentos não arrasta o amor quando os corações são fracos? Um dia de
manhã Leopoldina achou-se só; Miloca tinha desaparecido. Como, e por quê, e de
que modo? Ninguém o soube. Com quem desaparecera, soube-se logo que fora
Adolfo, que não voltou à casa do deputado.
Deixando-se arrastar pelo rapaz a quem amava,
Miloca apenas consultou o seu coração; quanto a Adolfo, nenhuma ideia de
vingança o dominara; cedeu a sugestões de libertinagem.
Durante cerca de um ano, ninguém soube dos
dois fugitivos. A princípio soube-se que estavam na Tijuca; depois
desapareceram dali sem que Leopoldina alcançasse a notícia deles.
Um ano depois do acontecimento narrado acima,
reapareceu na corte o fugitivo Adolfo. Correu logo que vinha acompanhado da
interessante Miloca. Casados? Não; e esse passo dado no caminho do erro foi
funesto à ambiciosa moça. Que outra coisa podia ser? O mal engendra o mal.
Adolfo parecia estar aborrecido da aventura;
e todavia Miloca ainda o amava como no princípio. Iludiu-se a respeito dele,
nesses últimos tempos, mas afinal compreendeu que entre a atual situação e o
fervor dos primeiros dias havia um abismo. Ambos arrastaram a cadeia durante um
ano mais, até que Adolfo embarcou para Europa sem dar notícia de si à infeliz
moça.
Miloca desapareceu tempos depois. Uns dizem
que se fora à cata de novas aventuras; outros que se matara. E havia razão para
ambas estas versões. Se morreu a terra lhe seja leve!
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