11/26/2017

Milagre de Natal (Conto), de Lima Barreto


Milagre de Natal
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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O bairro do Andaraí é muito triste e muito úmido. As montanhas que enfeitam a nossa cidade aí tomam maior altura e ainda conservam a densa vegetação que as devia adornar com mais força em tempos idos. O tom plúmbeo das árvores como que enegrece o horizonte e torna triste o arrabalde.

Nas vertentes dessas mesmas montanhas, quando dão para o mar, este quebra a monotonia do quadro e o sol se espadana mais livremente, obtendo as coisas humanas, minúsculas e mesquinhas, uma garridice e uma alegria que não estão nelas, mas que se percebem nelas. As tacanhas casas de Botafogo se nos afigura assim; as bombásticas “vilas” de Copacabana, também; mas, no Andaraí, tudo fica esmagado pela alta montanha e sua sombria vegetação.

Era numa rua desse bairro que morava Feliciano Campossolo Nunes, chefe de seção do Tesouro Nacional, ou antes e melhor: subdiretor. A casa era própria e tinha na cimalha este dístico pretensioso: “Vila Sebastiana”. O gosto da fachada, as proporções da casa não precisam ser descritos: todos conhecem um e as outras. Na frente, havia um jardinzinho que se estendia para a esquerda, oitenta centímetros a um metro, além da fachada. Era o vão que correspondia à varanda lateral, quase a correr todo o prédio.

Campossolo era um homem grave, ventrudo, calvo, de mãos polpudas e dedos curtos.

Não largava a pasta de marroquim em que trazia para a casa os papéis da repartição com o fito de não lê-los; e também o guarda-chuva de castão de ouro e forro de seda. Pesado e de pernas curtas, era com grande dificuldade que ele vencia os dois degraus dos “Minas Gerais” da Light, atrapalhado com semelhantes cangalhas: a pasta e o guarda-chuva de “ouro”. Usava chapéu de coco e cavanhaque.

Morava ali com uma mulher mais a filha solteira e única, a Mariazinha.

A mulher, d. Sebastiana, que batizara a vila e com cujo dinheiro a fizeram, era mais alta do que ele e não tinha nenhum relevo de fisionomia, senão um artificial, um aposto. Consistia num pequeno pince-nez de aros de ouro, preso, por detrás da orelha, com trancelim de seda. Não nascera com ele, mas era como se tivesse nascido, pois jamais alguém havia visto d. Sebastiana sem aquele adendo, acavalado no nariz, fosse de dia, fosse de noite. Ela, quando queria olhar alguém ou alguma coisa com jeito e perfeição, erguia bem a cabeça e toda d. Sebastiana tomava um entono de magistrado severo.

Era baiana, como o marido, e a única queixa que tinha do Rio cifrava-se em não haver aqui bons temperos para as moquecas, carurus e outras comidas da Bahia, que ela sabia preparar com perfeição, auxiliada pela preta Inácia, que, com eles, viera do Salvador, quando o marido foi transferido para São Sebastião. Se se oferecia portador, mandava-os buscar; e quando aqui chegavam e ela preparava uma boa moqueca, esquecia-se de tudo, até que estava muito longe da sua querida cidade de Tomé de Sousa.

Sua filha, a Mariazinha, não era assim e até se esquecera que por lá nascera: cariocara-se inteiramente. Era uma moça de vinte anos, fina de talhe, poucas carnes, mais alta que o pai, entestando com a mãe, bonita e vulgar. O seu traço de beleza eram os seus olhos de topázio com estivas negras. Nela, não havia nem invento, nem novidade como as outras.

Eram estes os habitantes da “Vila Sebastiana”, além de um molecote que nunca era o mesmo. De dois em dois meses, por isso ou por aquilo, era substituído por outro, mais claro ou mais escuro, conforme a sorte calhava.

Em certos domingos, o Sr. Campossolo convidava alguns dos seus subordinados a irem almoçar ou jantar com eles. Não era um qualquer. Ele os escolhia com acerto e sabedoria. Tinha uma filha solteira e não podia pôr dentro de casa um qualquer, mesmo que fosse empregado de fazenda.

Aos que mais constantemente convidava, eram os terceiros escriturários Fortunato Guaicuru e Simplício Fontes, os seus braços direitos na seção. Aquele era bacharel em Direito e espécie de seu secretário e consultor em assuntos difíceis; e o último chefe do protocolo da sua seção, cargo de extrema responsabilidade, para que não houvesse extravio de processos e se acoimasse a sua subdiretoria de relaxada e desidiosa. Eram eles dois os seus mais constantes comensais, nos seus bons domingos de efusões familiares. Demais, ele tinha uma filha a casar e era bom que...

Os senhores devem ter verificado que os pais sempre procuram casar as filhas na classe que pertencem: os negociantes com negociantes ou caixeiros; os militares com outros militares; os médicos com outros médicos e assim por diante. Não é de estranhar, portanto, que o chefe Campossolo quisesse casar sua filha com um funcionário público que fosse da sua repartição e até da sua própria seção.

Guaicuru era de Mato Grosso. Tinha um tipo acentuadamente índio. Malares salientes, face curta, mento largo e duro, bigodes de cerdas de javali, testa fugidia e as pernas um tanto arqueadas. Nomeado para a alfândega de Corumbá, transferira-se para a delegacia fiscal de Goiás. Aí, passou três ou quatro anos, formando-se, na respectiva faculdade de Direito, porque não há cidade do Brasil, capital ou não, em que não haja uma. Obtido o título, passou-se para a Casa da Moeda e, desta repartição, para o Tesouro. Nunca se esquecia de trazer o anel de rubi, à mostra. Era um rapaz forte, de ombros largos e direitos; ao contrário de Simplício que era franzino, peito pouco saliente, pálido, com uns doces e grandes olhos negros e de uma timidez de donzela.

Era carioca e obtivera o seu lugar direitinho, quase sem pistolão e sem nenhuma intromissão de políticos na sua nomeação.

Mais ilustrado, não direi; mas muito mais instruído que Guaicuru, a audácia deste o superava, não no coração de Mariazinha, mas no interesse que tinha a mãe desta no casamento da filha. Na mesa, todas as atenções tinha d. Sebastiana pelo hipotético bacharel:

— Por que não advoga? — perguntou d. Sebastiana, rindo, com seu quádruplo olhar altaneiro, da filha ao caboclo que, na sua frente e a seu mando, se sentavam juntos.

— Minha senhora, não tenho tempo...

— Como não tem tempo? O Felicianinho consentiria — não é Felicianinho? Campossolo fazia solenemente:

— Como não, estou sempre disposto a auxiliar a progressividade dos colegas. Simplício, à esquerda de d. Sebastiana, olhava distraído para a fruteira e nada dizia. Guaicuru, que não queria dizer que a verdadeira razão estava em não ser a tal faculdade “reconhecida”, negaceava:

— Os colegas podiam reclamar.

D. Sebastiana acudia com vivacidade:

— Qual o quê! O senhor reclamava, senhor Simplício?

Ao ouvir o seu nome, o pobre rapaz tirava os olhos da fruteira e perguntava com espanto:

— O quê, dona Sebastiana?

— O senhor reclamaria se Felicianinho consentisse que o Guaicuru saísse, para ir advogar?

— Não.

E voltava a olhar a fruteira, encontrando-se rapidamente com os olhos de topázio de Mariazinha. Campossolo continuava a comer e d. Sebastiana insistia:

— Eu, se fosse o senhor, ia advogar.

— Não posso. Não é só a repartição que me toma o tempo. Trabalho em um livro de grandes proporções.

Todos se espantaram. Mariazinha olhou Guaicuru; d. Sebastiana levantou mais a cabeça com pince-nez e tudo; Simplício que, agora, contemplava esse quadro célebre nas salas burguesas, representando uma ave, dependurada pelas pernas e fazendo pendant com a ceia do Senhor — Simplício, dizia, cravou resolutamente o olhar sobre o colega, e Campossolo perguntou:

— Sobre o que trata?

— Direito administrativo brasileiro.

— Deve ser uma obra de peso.

— Espero.

Simplício continuava espantado, quase estúpido a olhar Guaicuru.

Percebendo isto, o mato-grossense apressou-se:

— Você vai ver o plano. Quer ouvi-lo?

Todos, menos Mariazinha, responderam, quase a um tempo só:

— Quero.

O bacharel de Goiás endireitou o busto curto na cadeira e começou:

— Vou entroncar o nosso Direito administrativo no antigo Direito administrativo português. Há muita gente que pensa que no antigo regime não havia um Direito administrativo. Havia. Vou estudar o mecanismo do Estado nessa época, no que toca a Portugal. Vou ver as funções dos ministros e dos seus subordinados, por intermédio de letra morta dos alvarás, portarias, cartas régias e mostrarei então como a engrenagem do Estado funcionava; depois, verei como esse curioso Direito público se transformou, ao influxo de concepções liberais; e, como ele transportado para aqui com d. João vi, se adaptou ao nosso meio, modificando-se aqui ainda, sob o influxo das ideias da Revolução.

Simplício, ouvindo-o falar assim dizia com os seus botões: “Quem teria ensinado isto a ele?”.

Guaicuru, porém, continuava:

— Não será uma seca enumeração de datas e de transcrição de alvarás, portarias etc. Será uma coisa inédita. Será coisa viva.

Por aí parou e Campossolo com toda a gravidade disse:

— Vai ser uma obra de peso.

— Já tenho editor!

— Quem é? — perguntou o Simplício.

— É o Jacinto. Você sabe que vou lá todo o dia, procurar livros a respeito.

— Sei; é a livraria dos advogados — disse Simplício sem querer sorrir.

— Quando pretende publicar a sua obra, doutor? — perguntou d. Sebastiana.

— Queria publicar antes do Natal, porque as promoções serão feitas antes do Natal, mas...

— Então há mesmo promoções antes do Natal, Felicianinho?

— Creio que sim. O gabinete já pediu as propostas e eu já dei as minhas ao diretor.

— Devias ter-me dito — ralhou-lhe a mulher.

— Essas coisas não se dizem às nossas mulheres; são segredos de Estado — sentenciou Campossolo.

O jantar foi acabando triste, com essa história de promoções para o Natal. D. Sebastiana quis ainda animar a conversa, dirigindo-se ao marido:

— Não queria que me dissesses os nomes, mas pode acontecer que seja o promovido o doutor Fortunato ou... o “seu” Simplício, e eu estaria prevenida para uma “festinha”.

Foi pior. A tristeza tornou-se mais densa e quase calados tomaram café. Levantaram-se todos com o semblante anuviado, exceto a boa Mariazinha, que procurava dar corda à conversa. Na sala de visitas, Simplício ainda pôde olhar mais duas vezes furtivamente os olhos topazinos de Mariazinha, que tinha um sossegado sorriso a banhar-lhe a face toda; e se foi. O colega Fortunato ficou, mas tudo estava tão morno e triste que, em breve, se foi também Guaicuru.

No bonde, Simplício pensava unicamente em duas coisas: no Natal próximo e no “Direito” de Guaicuru. Quando pensava neste, perguntava de si para si: “Quem lhe ensinou aquilo tudo? Guaicuru é absolutamente ignorante”. Quando pensava naquilo, implorava: “Ah! Se Nosso Senhor Jesus Cristo quisesse...”.

Vieram afinal as promoções. Simplício foi promovido porque era muito mais antigo na classe que Guaicuru. O ministro não atendera a pistolões nem a títulos de Goiás.

Ninguém foi preterido; mas Guaicuru, que tinha em gestação a obra de um outro, ficou furioso sem nada dizer.

D. Sebastiana deu uma consoada à moda do Norte. Na hora da ceia, Guaicuru, como de hábito, ia sentar-se ao lado de Mariazinha, quando D. Sebastiana, com pince-nez e cabeça, tudo muito bem erguido, chamou-o:

— Sente-se aqui a meu lado, doutor, aí vai sentar-se o “seu” Simplício. Casaram-se dentro de um ano; e, até hoje, depois de um lustro de casados
ainda teimam.

Ele diz:

— Foi Nosso Senhor Jesus Cristo que nos casou. Ela obtempera:

— Foi a promoção.

Fosse uma coisa ou outra, ou ambas, o certo é que se casaram. É um fato. A obra de Guaicuru, porém, é que até hoje não saiu...

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