11/03/2017

Milagre de Maio (Conto), de Virgílio Várzea


Milagre de Maio

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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E deixa-me sonhar a vida inteira.
Antero de Quental.
  
Pan-pan-pan

E uma voz feminina, muito límpida e muito doce, vibrou cristalinamente:

— Acorda!

Em sobressalto, e meio tonto, ergui-me.

Nas frinchas das janelas, nas frinchas da porta, traços de ouro fulgiam. Seria manhã?

Corro, abro o postigo — e um largo jorro de sol deslumbrou-me, banhou-me todo, iluminando tudo. Por cima da minha cabeça, junto do teto branco, o meu canário amarelo rompeu a cantar, nuns agudos triunfantes, batendo alegre as pontas das asitas louras. Suspendo a vidraça: a rua toda resplende! E lá acima limpidamente, purissimamente se desdobra o Céu azul...

Mas quem seria que bateu? quem seria que falou?

Um pressentimento, uma superstição de coisas tristes ou alegres abatem-se sobre o meu espírito, invadem-me, apoderam-se de mim, de envolta com uma intensa curiosidade de saber que ocorrência sobrenatural ou real, feliz ou infeliz, teria sobrevindo ao meu ser, ao meu destino, à minha vida.

Penso, reflito a espaços: algum rendez-vous olvidado, algum compromisso esquecido?

Não, nenhum.

Mas bateram, falaram... Olho, procuro, rebusco ansiosamente. E ninguém à minha janela, à minha porta, ninguém!

Súbito, um alvoroço íntimo, fundo, delicioso como uma afeição que brota, apossou-se do meu coração, enchendo-o de um júbilo, de uma esperança, de um encanto indefinidos. E logo experimentei um desejo vivo, insofrido e ardente de ver, ouvir e falar a alguém que eu tinha visto, e ouvido, e falado, por instantes, uma vez, outrora, numa noite feliz, já remota — a Lili, uma criatura ideal, muito loura, contando apenas treze anos, de olhos azuis e mãos de lírio, radiante de beleza e de graça, que a Sorte me deparara ao acaso, entre músicas e cânticos divinos, à celebração de uma festa católica numa igreja de província...

Seria ela? Não sei. O que sei é que o seu nome e o seu claro, inefável perfil, me vieram de repente à lembrança, numa arrebatação inaudita.

Mas eram já passados três anos e eu nunca mais lhe falara, nem nunca mais a vira. E verdadeiramente não sabia quem era, além de que procedia de uma formosa mãe brasileira e de um forte e rico pai inglês, da Escócia, um Apolo boreal, filho de “lords da clã, convertidos a Roma”, na frase incomparável e artística do imortal Eça, num dos seus imortais livros — o Primo Basílio...

Sim — pensei, então, por fim — era decerto a Lili, que tinha chegado, que estava ali, e que, por uma alta sugestão espiritual, um fluido etéreo ou psíquico, disso viera avisar-me, batendo e falando à minha janela, como um astro que raia e passa no alto fulgindo...

E, numa ansiedade avassaladora e crescente, vesti-me e saí, a correr atrás daquele mistério. Na rua, dirigi-me casualmente para a igrejinha do bairro, onde se rezava, louvava, cantava, glorificava e coroava Maria, a Virgem Santíssima.

Era o último dia de Maio. Moças graciosas e meninas alegres, em bandos rumorosos e festivos, entravam no templo, vestidas de branco, carregadas de flores, com os chapéus e as fitas ao vento...

Entrei também, nervoso, ansioso, numa palpitação. Imediatamente, um incomparável júbilo e uma grande felicidade sacudiram a minh'alma.

Dentro, na espaçosa nave rendilhada e florida, em meio à variegada e aristocrática multidão que a enchia, uma esplêndida cabeça de ouro destacava, entre todas, num alto e belo corpo feminino, que se mantinha ereto e de pé, num triunfo escultural de linhas, ao lado de outro que representava uma matrona, de cabelos também louros mas grisalhos, tendo formas tão fascinantes e estéticas que lembravam a Vênus de Milo.

Ao soar vago e avançante dos meus passos nas lajes, a linda cabeça fulva voltou-se, num mover rápido e inefável — e seus divinos olhos azuis fitaram-me, e seus lábios sorriram-me, encantadoramente.

— Lili! gritei então dentro em mim, enlevado e triunfal.

E ajoelhei, porque Ela e a matrona que estava a seu lado (a mãe, decerto) e as demais pessoas ajoelharam também.

E logo, partindo do coro e avassalando toda a nave, cânticos místicos reboaram, glorificando Maria, a Virgem Santíssima, que duas meninas coroavam e que, sobre a alvura imaculada do seu flamante altar florido, sorria idealizadoramente, para o Céu e para Deus, numa auréola de esplendor...

No rumor gazil e doce da saída, em que a emanação vaga das flores, do incenso e a capitosa fragrância dos corpos e vestes femininas embalsamavam o ambiente, inebriando e idealizando tudo, vim levado suavemente até a porta do templo, numa onda embevecedora de meridionais ou tropicais fisionomias olímpicas, onde os olhos radiavam como minúsculos astros negros de graça e sedução supremas, encontrando, já de pé ao umbral, tentadora e magnífica na sua beleza setentrional de loura anglo-brasileira, a Lili, ao lado da mãe, ambas trajadas de branco e com os largos, leves chapéus de verão pousados galantemente à cabeça, como gigantescas borboletas de neve com asas de gaze ou neblina. Olhavam, como quem procura e chama, a rica fila de carros e automóveis ligeiros que estrepitavam no adro em rodantes movimentos. E eu fitava a adorada criatura edênica, que via pela segunda vez na minha torturada e ansiosa vida de artista e de sonhador, cheio de idealismo e paixão, e sentia-me, sem saber como nem por que, apunhalado impiedosamente pelo pressentimento e a ideia de que era aquele, talvez, o derradeiro e aflitivo instante que a teria sob os meus olhos e sob o meu desejo. Sim, porque eu tinha diante de mim a linda enseada azul serena que se desdobra para Guanabara e para o vasto Atlântico além, e que parecia incessantemente acenar-lhe, arrastando-a e atraindo-a para o seu seio ondulante, onde a Aventura e o Sonho, as Emoções e as Viagens, cantam e arrebatam as almas, executando as vagnerianas sinfonias do Mar, à orquestração atroadora do Vento e da Vaga, de mãos dadas às Sereias...

Mas um automóvel cor de ouro, como o sol que jorrava do Azul ao momento, encostou silencioso e precipite ao amplo batente de cantaria da grande porta da igreja.

Lili fitou-me então, por segundos, enlevada e deslumbradoramente. E, a um aceno da mãe, num passo grácil e largo de grande ave marinha, subiu com ela para o automóvel cor de ouro, que voou como uma flecha perdendo-se eletricamente no meio da multidão de veículos de toda a espécie que desciam para a city.

E, emudecido e algemado num êxtase, eu a segui, por um voar de minutos emocionante e fremente, vendo os seus cabelos de um louro de sol reluzirem como um astro, sob o leve véu de bruma que esvoaçava ao vento...

À tarde, no alto varandim balaustrado da Glória, eu cismava nostalgicamente a olhar a ampla baía, onde um steamer pairava, num fumegar de partida, ao lado de Villegagnon, à ponta de Coligny, quando um amigo me bateu ao ombro de repente, segredando-me com afeto:

— Então? Já sei que viu hoje a Lili...

— Sim... Mas onde está ela agora? murmurei quase sonambulamente, olhando ainda a baía.

O meu amigo sorriu expressivamente e tornou apontando o mar ao largo:

— Ali, a bordo do Aragon, que vai levá-la decerto para algum novo destino...

E contou-me que ela vinha do Prata com a mãe e seguia para a Europa. Soubera-o pelo Charles Wilson, da Mala Real Inglesa. E abalou no primeiro bonde que corria em direção à cidade, deixando-me ainda mais desolado e mais triste.

Voltei a olhar a baía, admirável como sempre, porém mais nostálgica e saudosa nessa hora vespertina. Já o Aragon suspendia...

— Na verdade (pensava eu comigo) devia ser assim mesmo... A Felicidade para os artistas passa sempre como um meteoro, como um relâmpago: surge, fulge, desaparece instantaneamente... Que desventura inaudita!...

E lá ia a Lili Atlântico em fora, para a Inglaterra, para a Escócia, para o seu castelo dos Grampians, e eu nunca mais a veria!...

Por muito tempo então, segui, com o olhar, desolado, o enorme casco balouçante do Aragon, que, por fim, se perdeu de todo no horizonte nevoento do Mar infinito...

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