Menina de olho no fundo
(Os Contos de Belazarte)
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Belazarte me contou:
Você é músico, e do conservatório
grande lá da avenida São João, por isso há de se divertir com o caso...
O maestro Marchese era maestro
uma ova, foi mas violinista duma companhia de operetas, isso sim. Até me
contaram que na Itália ele esfregava rabecão num barzinho de Gênova, não sei,
Chegou aqui, virou maestro. Mas como não tinha bastante aluno particular, botou
uma espécie de escola de música diurne
e serale numa casinha da avenida
Rangel Pestana, lá no Brás. Cinco mil-réis mensais por cabeça, trazendo
instrumento. O maestro ensinava tudo, canto, piano, violino, cavaquinho,
sanfona. Choveu aluno que nem passarão no rio Negro tempo de migrar. O Marchese
não dava mais conta do recado e precisou de tomar uns professores de ajuda.
Mesmo no Brás tinha um moço muito
bonzinho, coitado! que estudava violino com o professor Bastiani, colega de
você. Pra encurtar: o maestro Marchese mandou chamar o Carlos da Silva Gomes, e
lá ficou seu Gomes como professor de viola e artinha 110 conservatório. Ia me
esquecendo de contar que a tal escola se chamava Conservatório Giacomo Puccini.
A empresa progredia. Até a gente
mais endinheirada do bairro principiou botando os filhos lá, ficava mais perto
e não carecia de acompanhar ninguém na cidade. O Marchese, esse então virou rei
da música do Brás. No cinema torcia o nariz porque a orquestrinha não prestava
e o saxofone tinha desafinado. No dia seguinte toda a gente falava pra seu Fifo
que o saxofone estava desafinando e crocotó! maré vazava pro pesado do
saxofone. Seu Fifo mandava falar pra ele que não careciam mais de saxofone na
orquestrinha e quem que arranjava saxofonista novo? já sabe: o maestro Marchese
já de brilhantão no dedo e quatro marchesinhos com bastante macarrão na barriga
lá em casa. Até sala-de-visitas arranjou no lar, com piano a prestação e
retrato do Giacomo Puccini.
O maestro bem que gostava de
ficar com todas as alunas que lhe pareciam gente mais arranjada, porém, quando
a filha do Bermudes foi se matricular, parafusou, parafusou e afinal achou melhor
colocar a moça no curso de seu Gomes. Não vê que a Dolores sempre botava umas
olhadas pra ele e a Pascoalina não era coisa de que a gente não fizesse caso
não: desconfiando, era capaz dalgum escândalo dos diabos. Por isso o maestro
falou pra mãe da mocinha que a sinhora vai vedere que num stantinho sua filha
fica una artista, lo giuro! Seu Gomes é un professore molto bon, ah questo!...
proprio la minha scuola!
A mãe da Dolores até saiu bem
contente porque tinha vindo pro bairro, fazia tempo, recém-casada ainda...
Sabia que a família de seu Gomes era gente fina, parente dos Prados. Tinham
continuado pobres. Ela, da casinha de porta e janela fora subindo até aquele
número 25 assobradado. E agora a filha estava aprendendo com o parente dos
Prados. Sorriu numa satisfa que lhe inchava toda a banha, oitenta-e-nove quilos
pra mais. Tirou o chapéu de renda preta, procurou na manga da blusa o lenço
marcado M. S. B., Marina Sarti Bermudes, e limpou o orvalho do bigodinho. Foi
no quintal, colheu não sei quantas dúzias de margaridas, botou numa cesta e
mandou a criada levar na casa de seu Gomes que a filha mandava.
Dolores era um desses tipos que o
Brasil importa a mãe e o pai pra bancar que também dá moça linda. Direitinho
certas indústrias de São Paulo... Da terra e da nossa raça não tinha nada,
porém se pode afirmar que tinha o demais, porque não havia ninguém mais
brasileiro que ela. Falassem mal do Brasil perto dela pra ver o que sucedia!
Desbaratava logo com o amaldiçoado que vem comer o pão da gente, agora! pra que
não ficou lá na sua terra morrendo de fome! vá saindo!... Ah! perto de mim você
não fala do Brasil, não porque eu dou pra trás, sabe! Eu sei bem que a Itália é
mais bonita, mais bonita o quê!... uma porcariada de casas velhas, isso sim, e
gente ruim, só calabrês assassino é que se vê!... Aqui tem cada amor de
bangalozinho!... e a estação da Luz, então! Você nunca, aposto, que já entrou
no teatro Municipal! Se entrou, foi pro galinheiro, não viu o fuaiér! Itália...
A nossa catedral... aquilo é gótico, sabe! não está acabada mas falaram pra mim
que vai ter as torres mais compridas do mundo!
E Dolores ficava muito bonita na
irritação, com cada olho enorme lá no fundo relumeando que nem esmeralda. Era
uma belezinha. Esguia, bem feita, com tudo saltadinho, ombros descidos, pescoço
penujado de iereré. Então do pescoço pra cima! Morena, com cada jambinho
madurando nas faces que se a gente provasse uma vez só, virava no sufragante
ijucapirama do amor. Cabelo cor-de-castanha pra mais claro, cheio de muitos
cachos de verdade que ela ainda não tivera coragem de cortar pra seguir a moda
das amigas. Quando for pra suspender, eu corto em vez de suspender, falava. E
aqueles crespos lhe rodeavam tão bem a cor! dando pra boniteza dela uma
esquisitice rara com que a gente primeiro carecia se acostumar. A boca não era
grande coisa mas não prejudicava. E os olhos, Nossa Senhora! tinha verde de
bredo com vagalume estrelando por cima, num Cruzeiro do Sul de noite e dia.
Estava pra fazer dezessete. Era
bem educadinha, isto é... tinha seguido o curso dum colégio meio econômico mas
bem frequentado. Ainda se obstinava no francês, como as amigas faziam, e
experimentava as danças da moda com a melhor professora da cidade. Contava
muitas amigas ali da Vila Buarque, que é bairro de pobreza escondida, e tinha
sobre elas a ascendência respeitável de quem não manda reformar vestido. Andava
nuns trinques!...
Era natural que revolucionasse o
curso de seu Gomes, pois foi. Já sabia seus vibratos de violino aprendido no
colégio e até terceira posição ia bem direitinho. Faltava afinação mas não
faltava inteligência. O Gomes principiou alimentando a ideia de que a Dolores
era bem capaz de fazer a notoriedade dele como professor.
Logo simpatizara com ela. Mas não
envenene o caso não, era simpatia de amizade apenas. E um poucadinho de ambição
também. Professor é sempre assim: por mais pura que seja a amizade dele por
aluno, há sempre uma esperancinha de perpetuação enfeiando o sentimento. Não
dizem, porém a gente percebe que estão procedendo como se dissessem: Isto quem
fez fui eu. Seu Gomes imaginou que a Dolores ia fazer a celebridade dele e teve
simpatia por ela. Em amor não pensou e, franqueza: nem sentiu nada diante dela.
Era sossegado, meio tímido e chegara aos vinte- e-quatro sem nunca ter chamego
por ninguém.
Nem sabia se casava ou não. Tinha
primeiro que arranjar reputação de professor bom, o que já é bastante difícil
pra mestre “juvenal”, como chamam aos solteirões no Nordeste. Aliás, sem
querer, outro dia, seu Gomes levantara os olhos, saudara a vizinha, uma creio
que modista. Até encafifara porque nunca tirava chapéu pra vizinho. Não sabia
por que tirara, ia tão distraído, foi de repente. Mas, saudara uma vez e
continuou saudando.
Outra razão importante acabou por
destruir qualquer vontade que ele pudesse ter de se enguiçar pela Dolores. Ela
era vivinha, foi logo se chegando pra maiores intimidades. Que que ele havia de
fazer! tinha que falar “muito obrigado” por causa das margaridas, por causa dos
cravos, por causa dos bolinhos que era quase toda semana iam parar na casa
dele.
— Então o senhor gostou, é? Ainda
hei de mandar pro senhor mas é um bolo que eu faço, esse sim! Mas precisa figos
cristalizados e o empório não tinha. Quando eu for na cidade, trago. Papai? a
gente encomenda pra ele, o pobre! esquece.
— Mas dona Dolores...
— Pra que que o senhor me chama
“dona”, fica tão feio! Pois não sou sua aluna! Fale “Dores”, “Dores” como fiz
me chamarem lá em casa. “Dores”, “você”, e pronto!
Ele achava graça naquela voz de
criança.
— Pois então chamo. Ia dizendo
que você não deve se incomodar assim comigo...
— Me incomodar! Não fale isso,
seu Carlos!
— Mas sua mãe, Dolores...
— Dores! “Dolores” é espanhol,
não gosto! Sou tão brasileira como o senhor, fique sabendo! Já não basta esse
Bermudes tão feio que não posso mudar... Fale “Dores”! São tão bonitos os nomes
brasileiros... Carlos da Silva Gomes! Ah, se eu tivesse um nome assim!
— Pois eu acho Dolores um nome
bem bonito.
— Ora, seu Carlos!... O senhor
vai me chamar “Dores”, chama? Não custa nada pro senhor e fico tão feliz! Diga
que chama!
— Pois chamo... a senhora...
— Olhe! “Dores”, “você”.
— Espere um pouco também! deixe
eu me acostumar. No começo a gente confunde... Dores.
Ela fechou os ombros numa
expressão de gosto alegre. Riu.
— Do que você está rindo?
— Eu sempre falo que consigo tudo
dos meus professores! Já no colégio era assim. O professor de aritmética me
avisou que eu tomava bomba, e tomava mesmo porque tenho horror de aritmética,
credo! Pois apostei com as colegas, não estudei mesmo nada e passei!
— E como é que você fez!
— Ah, isso... são cá uns
segredinhos! A gente não estuda mas... ihi... então pra que que a gente tem
olhos então!...
— Dolores!
— Ora, seu Carlos! são uns
professores coiós, qualquer coisa já pensam que a gente está doida por eles...
a gente aproveita, é lógico!
— Mas Dolores...
— Dores!
— Você é uma criança, Dores! Teve
coragem de namorar o professor só pra passar!
— Namorar? que nada! Olhava dum
certo jeitinho e ele é que pensava que eu estava namorando. Ihi... quando
chegou no exame, fez a prova e disfarçando botou na minha carteira, foi só
copiar! Distinção! As outras é que estrilaram! Outro coió é o professor de
francês, tamanho velho!... Uma vez se queixou pra mamãe e ela me bateu. Espera
aí, seu caixadoclos, que eu faço você ficar manso!... do que que o senhor está
se rindo tanto, seu Carlos!
— Pois Dores, eu sou seu
professor e você vem contar isso pra mim!
Dolores ficou séria de repente. E
apertando a mão dele com força:
— Seu Carlos, o senhor não vá
pensar que trato o senhor desse jeito quando... ah, não!
Já se ria outra vez. Retirou a
mão. E por faceirice, num gesto de inocência fingida:
— Posso contar pro senhor porque
já sei com quem estou tratando.
— Ah, isso, você pode ter
certeza, Dores! Já falei que você tem jeito pra música mas se não estudar,
comigo é que você não passa nem que remexa os olhares mais arrevesados desse
mundo!
— Ihi... não é arrevesado que a
gente faz, seu Carlos!
— Então como é?
— Não tem palavra pra explicar,
só fazendo... Mas diante do senhor tenho vergonha!
E ficou tal qual um jenipapo,
roxa de vergonha sem razão. E o verde fundo dos olhos fuzilando... Seu Gomes
pensou a palavra “bonita” e fez a menina repetir mais três vezes a escala de ré
maior.
— Dores, você carece estudar
mais! Olhe que lição você me trouxe! Assim não serve porque afinal nós dois
perdemos tempo à toa. Não estou aqui pra isso não!
— Oh, seu Carlos...
E num átimo ele se viu todo
coberto de esmeraldas tristes. Percebeu que fora ríspido demais, melhorou:
— Dores, você não sabe... Um
professor, se é deveras professor, quer bem as alunas como... filhas, Dores.
Quer que elas progridam, que fiquem tocando muito bem... Você, Dores... você
precisa aproveitar os dotes que tem! De todas as minhas alunas é a mais bem
dotada, é... é a melhor, estude, faz favor! Você já me disse que gosta muito de
mim como professor...
— Gosto muito!
— ...pois então, estude... pra me
fazer feliz!
— Seu Carlos, eu vou estudar
muito agora!
— Então vá!
— ‘Té quinta, seu Carlos!
— ‘Té mais.
Ficou sozinho na sala, todo cheio
de esmeraldas alegres. Não percebia que tinha melhorado por demais a zanga, eis
como os casos principiam, meu caro. A gente vai melhorar e daí que a joça
destempera duma vez. Seu Gomes ficara zangado por timidez. A palavra “bonita”
avisou que se ele não pusesse reparo seria o bobão próximo. E ainda restava um
certo despeito de classe por ver os professores tão brincados por uma criança,
então zangou meio sem razão. Mas tristura de olho no fundo quem que aguenta?
Seu Gomes acalmou fácil. Não sentiu mais nada que continuasse a palavra
“bonita” e quis carinhosamente fazer estudar mais, uma aluna de que esperava
muita coisa. Pôs ambição no conselho e a boba da mocinha sentiu um golpe bom
dentro da impaciência. Saiu feliz sem saber de que, porém mesmo nesse dia inda
foram quase duas horas de ré maior.
Seu Gomes sorumbático puxou a
cigarreira pra fumar. Viu a cara embaçada na tampa de prata. E daquela cara
regular dum moreno pálido, com o cabelo crespo negrejando sobre as entradas,
descia um corpo que não era fraco não: capaz de aguentar com a dona que
encostasse nele. E seu Gomes piazinho inda machucara muito uma unha. Ficara
aquela mancha preta grande que até dava espírito pra mão. Saiu sorumbático.
Aquela menina era bem capaz de fazer dele... isso não, que não era nenhum leso!
A Serafina. (É a vizinha). Não podia ser acaso não. De primeiro inda era só
de-tarde, hora mesmo da gente estar na janela, mas agora ao meio-dia, pronto:
sorrindo pálido pra saudação dele. Serafina. Doce nome... Todas as raças são
iguais... Seu Gomes entardeceu num sossego largado, muito suave. Sorriu livre,
tornando a pensar na Dolores, que sapequinha! Enfim, fora bom porque agora
sabia com quem estava tratando.
E ensinou a Dolores com muito
carinho, com imensa amizade, cada vez mais íntima e mais amizade.
E depois: ela progredia. Muito
preguiçosa, porém seu Gomes logo descobriu que falando com certo jeitinho, voz
mais baixa meio surda... só fazendo, a Dores saía dali e estudava até umas
quatro horas por dia durante uma semana. Pois então, queria que ela estudasse?
duas três vezes por mês falava do tal jeitinho. Isso chovia esmeralda de
bandeirante numa conta em cima dele. Até, no fim desse mesmo ano, quando o
maestro Marchese disse que bisognava arranjare qualque músicas pra la signorina
tocare náa festa, nem seu Gomes precisou se incomodar muito: a signorina teve
um sucesso com o Noturno de Chopin transcrito.
Estamos três anos depois dessa
festa e lá por dezembro Dolores recebe o diploma do Giacomo Puccini. E sempre a
mesma coisa como carinha bonita mas anda mais desmerecida. Estuda muito agora e
toca de deveras com espírito o que toca. Era considerada a melhor aluna do
“Giacomo”, como se falava no Brás, deixando rabi o nome do conservatório. O
Marchese andava enciumado e sei que andou chamando umas colegas da Dolores na
sala da diretoria, perguntando umas coisas, filho-da-mãe!...
Uhm, me esquecia... meses antes
ela ficara noiva. Seu Gomes fora na casa dela acertar umas músicas, de repente
ela mostrou a aliança de prata na mão direita:
— Já reparou?
— Já. Não sabia que a minha Dores
estava casada, o que você carece mas é estudar mais, sabe!
— Não estou casada não, seu
Carlos! As noivas é que usam aliança de prata.
— Você está noiva, Dores!
Ela abaixou a cabeça, rindo manso
e mandou lá do fundo um feixe de esmeraldas pra seu Gomes. Ele estava sério.
Antes de mais nada, se lembrou da aluna, tanta trabalheira de estudo e pronto!
se apaixonava pelo primeiro sarambé que aparecia.
— Meus parabéns. Não sabia.
— O senhor... parece que não
gostou, seu Carlos!
— Gostei, Dores. Mas acho que é
uma pena você casar já, tão moça. E depois: por causa dos seus estudos que vão
tão bem.
— Seu Carlos não quer, eu não
caso!
— Não quero? Deus me livre,
Dores! Pois... eu quero é que você seja feliz. Você gosta dele, naturalmente é
rapaz bom...
Falando, o mal-estar em que
ficara desde o princípio do diálogo foi se substituindo pela imagem da vizinha
costureira. Apoiou-se na imagem e sentiu chão firme.
— Não gosto nem desgosto... Mamãe
com papai que quiseram, diz que é bom partido. E muito simpático, bonzinho...
— Pois seja feliz, Dores. Mas
vamos continuar a lição.
E a lição voou apesar duma certa
distração na sala. Dolores tocou como nunca. Humilde, riso impassível meio
amarelo, muito calma. Seu Gomes saiu satisfeitíssimo.
— Eu não devia dizer, Dores...
mas é uma pena se você casar logo! Com mais dois anos eu punha você artista,
garanto.
— Já falei! é só o senhor não
querer que eu não caso, seu Carlos!
— Case sim, Deus me livre agora
de andar desmanchando casamento de ninguém! ‘Té mais.
— ‘Té quinta, seu Carlos!
Seu Gomes saiu. Todo coberto de
esmeraldas tristes. O mais engraçado é que pouco depois uma pessoa que conhecia
bem os Bermudes afirmou pra ele que a Dolores não estava noiva. Não compreendeu
nada e, indagando, ela tornou a afirmar que estava. Então é porque estava e não
se incomodou mais com aquilo. Sarambé era ele que não entendia, e não os moços
que tiram as moças da casa dos pais! Dolores continuou representando o noivado
por mais de mês. Era assunto que lhe permitia dizer que casava com aquele como
podia casar com qualquer um e não tinha mais esperança neste mundo. Um dia
apareceu sem aliança na aula.
— Que-dele o anel, Dores?
— Acabou-se tudo, seu Carlos!
Agora o senhor pode ficar sossegado que não caso mais, ouviu! Se um dia me
casar há de ser com o consentimento do senhor!
— Mas, Dores, eu não quero tomar
essa responsabilidade, não! Olhe, você quer uma palavra de amigo? essas coisas
a gente não vai fazendo e desfazendo assim à toa!
— Ah, só pra experimentar um
pouco... eu não gostava dele!
— Mas fez o pobre moço sofrer!
— Ara, isso todos nós sofremos,
seu Carlos! Porque a gente não há de gostar duma pessoa e ser logo
correspondida!
E principiou chorando, muito
nervosa, ali mesmo na sala, podiam ver. Seu Gomes espantadíssimo.
— Que é isso, Dores! não faça
assim!
— Ah, seu Carlos... sou uma
desgraçada!...
— Sossegue, Dores! Pode passar
alguém, não fica bonito ver você chorando assim!
Dolores soluçando muito sacudida,
apagava esmeraldas no lencinho. Já sorria:
— Você tá nervosa, vá pra casa.
Olhe: não se esqueça de repassar a Ave-Maria pra missa de domingo.
— Sei, seu Carlos.
Suspirou fundo que doía, foi-se
embora.
Pois não durou nem vinte dias,
seu Gomes recebeu o cartão em que “Temos a honra de participar a vossa
excelência e excelentíssima Família que contratamos o casamento de nossa
adorada filha Dolores Sarti Bermudes com o sr. Agostinho Nardelli. Alonso
Bermudes”, rua tal, etc. Desta vez era certo. Escreveu agradecendo e com os
votos.
Casar... é. Seu Gomes já estava
com quatrocentos mil-réis das lições. E com moça boa, trabalhadeira... Mesmo
que não ajudasse no ganho, ao menos que fizesse os próprios vestidos...
Cento-e-cinquenta pro aluguel, cento-e-cinquenta pra comerem. Inda restava cem
pro que desse e viesse. Nessa noite seu Gomes teve um sonho bem desagradável.
Era uma rua, num beco, tapado por um casarão no fundo. A vizinha estava numa
janela alugável aí por uns trezentos mil-réis por mês. Mas na outra calçada a
mãe da Dores sacudia as banhas numa risada sem educação, dizendo: “É muito!”
Seu Gomes apesar da vergonha continuou andando e saudou a modista, pra que
saudou! Saiu de dentro do chapéu dele um papagaio com um cinzeiro de prata no
bico. Dentro do cinzeiro está todo o meu dinheiro, pensava o sonho assustado.
Seu Gomes ficou num desespero enorme e resolveu subir pelo poste pra ver se agarrava o papagaio. A vizinha rindo pálido falou assim:
— Quer que ajude? Seu Gomes
implorou:
— Me ajude, Serafina!
Nem bem falou, a modista já
estava agarrada nas costas dele. Chê... ficou difícil de trepar no poste com
mais aquele peso nas costas, ficou impossível de trepar. Também não era preciso
mais porque desaparecera o papagaio e estava tão bom que seu Gomes mexia na
cama até que o chão se abriu. Seu Gomes com a Serafina caíram e o sonhador
acordou com uma sede louca.
Dolores se explicou bem sobre o
primeiro noivado secreto. O segundo é que não durou três meses, dona Marina
contou pra seu Gomes que tinham desmanchado porque o moço não prestava. Essas
coisas não aborreciam seu Gomes porque por uma curiosa inversão de papéis o
tímido substituía secretamente a Dolores pela Serafina naquele casa-não-casa e
tanto falar em casamento cotidianizava na hesitação dele a evidência do
casamento: precisava se casar. E tudo isso prova também que ele não estava de
todo inocente a respeito da Dores. Mas o importante no momento era preparar bem
o Pugnani-Kreisler pra festa de formatura.
Estava nisso quando a Dores
apareceu inquieta na lição. Era nesse tempo que parecia mais magrinha, olhos
cada vez mais no fundo, toda a gente imaginando que era o estudo. Outra aluna
estava ali, falou baixinho:
— Preciso falar muito com o
senhor!
— Pois fa...
— Fale baixo! Tenho um assunto
muito importante pra dizer pro senhor. Vá amanhã na missa e suba no coro, vou
tocar. É coisa muito séria, seu Carlos!
Ele reparou que era coisa muito
séria mesmo. Aqueles olhos, aquela boca tremendo entre angústia e autoridade...
Passou meio inquieto uma parte da noite. Foi na missa.
Dolores desfiou uma lengalenga
muito atrapalhada, cheia de reticências, de vergonhas, que já estavam falando
muito deles, que não havia nada porém o senhor sabe como é boca do mundo, as
colegas, seu Carlos!... e os olhos dela encheram-se de lágrimas, as colegas
vivem bulindo comigo, que o senhor gosta de mim, mas eu sei que não gosta!
foram contar pra seu Marchese, ele mandou me chamar, vive falando pra mim que,
quihihi... eu sei que o senhor é tão bom, é tão sério, mas ele vive me falando
que o senhor não presta, que está me namorando por causa do meu dinheiro, que
ficou muito feio pra mim!... Toda a gente já sabe! que eu devia largar da aula
com o senhor, e que depois o senhor não casa comigo, tá só se divertindo, seu
Carlos!... eu sei que o senhor é incapaz de me enganar mas ele mandou chamar
mamãe, falou tudo pra ela, ela me deu uma surra, seu... seu Carlos! me deu duas
bofetadas na cara, quihi, quihihi... e chorava de não falar mais.
— Mas o que você está me
contando, Dores!... Será possível!
— É possível sim! Toda a gente
caçoa de mim por causa do senhor! Nunca falei nada porque eu gosto muito do
senhor, não quis que o senhor ficasse triste. Sabe? meu noivado desmanchou só
por sua causa, foram contar tudo pro Agostinho! outro dia no baile ninguém mais
não queria dançar comigo porque diziam que eu estava ocupada! “Ocupada”! seu
Carlos! falaram assim mesmo! De já-hoje quando o senhor entrou não viu a cara
que a organista fez!...
— Meu Deus! mas se nunca houve
nada, Dores! como é que...
— Tenho sofrido, seu Carlos!
tenho sofrido muito!... dizem que estou doente, doença nada!... É tudo por sua
causa mesmo!... mas eu sei que o senhor não gosta de mim e não queria que o
senhor soubesse disso mas... quihihi... não posso mais!... e mamãe me falou pra
mim que quer falar com o senhor...
— Pois falo, Dores! Sempre tratei
você como minha aluna e não tenho medo de ninguém!
— Vá amanhã lá em casa mas... seu
Carlos! eu não quero largar do senhor! não deixe me darem pra outro professor!
com outro eu não estudo mais!...
Seu Gomes olhou com dó aquele
corpinho magro estalando. Segurou-lhe as mãos que apertavam os lábios querendo
gritar. Quis levantar-lhe a cabeça, porém estava desamparada, tornou a cair pra
frente com os lábios colados na mão dele num beijo de fogo molhado. Tirou
rápido a mão. Desceu a escadinha do coro, partiu. Estava com a mão insuportável
com a lembrança do beijo, estava tonto. Estava nem querendo pensar. Seguia com
muita pressa, louco pra chegar em casa porque parece mesmo que a casa da gente
nos protege de tudo.
Em casa lhe deram o recado que o
maestro Marchese pedia pra seu Gomes ir falar com ele, foi.
— Bom-dia.
— Bom-dia, s'accomodi.
Professore, mandei chamar o signore por causa dum assunto molto serio! Il
Giacomo é un stabilimento sério! Qui non si fa scherzi com moças, signor
professore! Si lei aveva l’intenzione di namorare careceva de andare noutro...
— Seu Marchese, o senhor dobre a
língua já, ouviu! O senhor tirou alguma coisa a limpo pra saber se estou
namorando, hein! Fique sabendo que eu não estou disposto a aguentar insulto de
ninguém e faço o senhor calar a boca já!
— Ma non dzangate! non
dzan-ga-te, signor professore! non cé mica male in quello que eu disse! Sei
molto bene que lei é honestíssimo ma che posso fare, io! todos falam!
S'accomodi, per favore!
— Tou bem de-pé.
— Ma non dzangate, signor
fessore!... Stó falando sul serio! Sono un povero uomo con quatro figlioli in
casa, si! signor professore, che belleza de criancinhas! non posso expulsare
questa ragazza Bermudes sinon m'isculhamba tutta la vida! Sono inrovinato, Dia
Santo! non posso mandare la ragazza s’imbora! é ó non é!...
— Isso é o de menos, seu
Marchese... o senhor... ponha a Dolores no seu curso, não me incomodo.
Seu Gomes tinha pensado primeiro
em se retirar do Giacomo, porém lembrou dos cem mil-réis, se acovardou. Pois é:
Dolores passava pro curso do outro e tudo se arranjava.
— Ma, signore professore, non
basta! Bermudes ‘stá uma fera! e io ho paúra dun scandalo!... Bisogna dare una
satisfazione a tutto il Brás!...
Seu Gomes estava cansado. Era
muito frouxo pra pelejar mais.
— Está bem, seu Marchese, eu saio
do Giacomo.
— Bravo! Se vede que lei é um
bravo moço! sempre falei pra todos que lei é um bravo moço!
— Já sei. Passe bem.
— Ah, ma o signore se esquece o
dinheiro, isto nó! Mancano cinco dias ma il Giacomo paga tutta la mensalitá.
Tante grazie, signor professore, tante grazie!...
Á rivederlo!
Careceu de gritar o “rivederlo”,
seu Gomes já ia longe. Chegou em casa abatido, nem almoçou. De repente lhe veio
aquela vontade de resolver tudo aquele dia mesmo, pegou no chapéu, foi pra casa
da Dores.
O violino parou e dois olhos
relampearam na sombra da janela. Dolores veio correndo abrir a porta.
— O que foi!
— Quero falar com sua mãe já.
— Sente, seu Carlos. Mamãe não
está mas eu mando chamar, é aqui pertinho! E foi bom porque assim a gente pode
combinar primeiro. Maria, vá chamar mamãe na casa de seu Almeida, fale pra ela
que seu Gomes está aqui, ela já sabe.
Houve um momento de silêncio. Ela
tomara um ar tímido de viada, rostinho baixo. De repente seu Gomes ficou todo
coberto de esmeraldas alegres. Dores sorriu:
— Então?...
— Não tem nada, Dores, não se
luta com boca de povo. Mas você carece ter paciência também!
A frase deixara a coitadinha
supliciada de novo. Seu Gomes sentiu uma vontade de machucar inda mais quem lhe
roubava tanto cem mil-réis seguro.
— Acabo de ser expulso do
Giacomo.
— Seu Carlos!...
Ele ficou com dó. Remediou:
— Não se incomode não! A vida tem
mesmo dessas... A gente põe tanta esperança numa coisa ahn... tudo escapa de
repente.
Dores chorando.
— Você que carece de ser mais
enérgica, vai pra outro professor, paciência. Pra que você não continua com o
Bastiani? Ao menos vai pra melhor.
— Eu não quero, seu Carlos! não
largue de mim!... deixe eu ficar com o senhor!...
Ele estava muito calmo,
carinhoso, piorando tudo.
— Tomara eu ficar com você,
Dores, mas não pode ser, se acalme! Olhe, você se forma e depois continua com
o...
— Não continuo com ninguém! seu
Carlos... é mamãe! fale pra ela, o senhor consegue, fale!
A gordura de dona Marina
enlambuzou a porta.
— Já está chorando outra vez! que
menina.... Não se incomode, seu Gomes, etc.
Foi uma explicação muito simples,
os dois procederam bonito de verdade. A lealdade sem recantos da dona
fortificou seu Gomes. Só que um pouco atrapalhados pela Dores que se metia
chorando, falando bobices até que dona Marina lhe deu aquele tabefe na boca.
Então seu Gomes não pôde suportar!
— Dona Marina, não vim aqui pra
ver a senhora bater na sua filha. Acho que não temos mais nada pra explicar.
Quanto aos estudos dela, quando a senhora quiser, vá lá em casa que dou a
recomendação pro Bastiani, passe bem. Adeus, Dores.
Então é que foi a história. Ela
agarrou na mão, no braço dele, olho veio vindo e ficou saltado bem na frente
feito holofote verde.
— Não! o senhor não larga de mim!
Me leve daqui! é mentira! Nem podia falar, feito louca.
— É mentira! não largue de mim,
eu gosto tanto do senhor! Eu morro! É tudo mentira! Ninguém está falando mal de
nós! Fui eu que falei pras colegas! Eu! Eu não posso ficar sem o senhor! Nem
que seja só pra estudar! mamãe! Fui eu que falei pro diretor! me deixe com o
senhor!...
Era grito já.
Seu Gomes voltou com uma piedade
amarga.
— Dores, você...
Ela apertou-o nos braços, mais
baixa, esfregando o queixo no peito dele. Dona Marina brutaça arrancando a
filha. Seu Gomes com doçura se desenlaçando. Dores gritava, dando cotoveladas
na mãe, “Me largue! me largue!” rouca duma vez. “Eu quero ir com ele!...”
Mas seu Gomes bem percebia que
agora era tarde pra começar o amor. Havia uma modista inteirinha entre os dois
e três anos de costume com a modista no sentimento. Meio sorrindo desapontado:
— Que criançada, Dores!
— Não!!
Foi o grito maior, se escutou da
rua. Seu Gomes fugiu pela porta.
Ela ficara parada, presa na
cintura pelos braços da mãe, ofegando, boca aberta, cada olho destamanho bem na
frente brilhando claro claro. Só deu tento de se com a bofetada. Não ardeu. Nem
essa nem as outras nem os cocres e tabefes pelas costas peito cabeça. Foi
chorando pra cama, com uma dor de angústia aguda, sem ninguém dentro do corpo.
Mas três meses depois estava
curada.
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