Marujos
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O quarto das
seis ia começar. Tinha tocado a sineta, e a sonoridade metálica da sua última
badalada aérea prolongava-se extraordinariamente, ondulando no convés, sob as
velas, e ecoando sobre a infinita amplidão das águas, com uma vaga e
espiritualíssima vibração elegíaca, que sutilizava ainda mais os misteriosos
eflúvios das ondas e a melancolia eteral das ave-marias. Já o sol desfalecera de todo sepultado no
ocaso, e de seus funerais incomparáveis e assombrosamente pomposos de rei do
Espaço e do Dia, só ficara a manchar ainda luminosamente o céu e o mar escurecidos, no ponto onde
ambos se uniam, como uma gigantesca orla sulferina de semimortas lavas e
brilhos, ou antes, um trágico e imensurável debrum de sangue flamante no fundo
recuado e perdido do horizonte longínquo.
O capitão
assomara então à larga porta da câmara que abria sobre a vasta tolda, e esta
ficou para logo alumiada por uma tênue faixa de luz que jorrava do fundo, do
farolim, já aceso, oscilando nos balanços, pendurado ao teto branco. Era um
forte velho colossal, de uma ombratura de gigante, esse hercúleo lobo marinho,
cuja alvíssima barba em colar e cujos pequenos olhos faiscantes, no rosto largo
e leonino, de uma austeridade e energia invencíveis, sob o seu boné de feltro
ou lona, faziam tremer os tripulantes quando o trovão da sua voz sugestiva e
dominante estalava do alto por todos os recantos do navio, ordenando
serenamente as manobras — fosse entre as calmas preciosas da Bonança, fosse
entre o tumultuar desolador dos vendavais ou ciclones. Apenas lançara um geral
e rápido olhar para a proa, tudo fotograficamente fixando de relance, na sua
admirável retina iniludível — subiu a grandes e pesadas passadas o tombadilho
e, ouvindo em silêncio o piloto que lhe entregava o quarto, foi até à gaiuta e
tomando da ardósia encaixilhada encaminhou-se com ela para o farol de bombordo,
a cuja luz escarlate pôs-se a ler o rumo e as ocorrências da última singradura
andada. O marinheiro do leme olhava-o disfarçada e humildemente, atento agora
de corpo e alma até para as nonadas da navegação, porque sabia que com aquele
homem o mínimo desvio de guinada poder-lhe-ia valer uma acre ou borrascosa
advertência, senão mesmo um pescoção. O piloto, descendo apressado a breve
escada do salto, mergulhou logo no beliche onde, vestido como estava, se
estirou de um só movimento e se afundou num sono de âncora em águas fundas e
plácidas. Bendito o repouso dessa cansada alma de marujo que, apenas o sino
voltasse a cantar, à meia-noite, ter-se-ia de erguer prestamente para a
estremunhada vigília do quarto da alva, sempre tão áspera e tão álgida, tão
custosa de passar!...
Mas a galera
corria serenamente com o vento doce do largo, debaixo daquele céu noturnal,
radiosamente picado do fogo etéreo dos astros como, à noite, pelas grandes
festas católicas, se apresenta, picada do fogo das velas, a nave das catedrais.
Havia
dezesseis dias que a terra se perdera de vista, popa fora, por um crepúsculo
rosado. Daquele último porto de partida na costa da África austral até ao
paralelo de 27º sul, onde nesse instante singravam, a rumo de noroeste — os
ventos do quadrante oposto impeliram-nos felizmente com excelente viagem.
Durante esses quase três anos de mar, em aventuroso giro ocasional de
circunavegação, tocando nos principais pontos litorais dos quatro continentes —
América, Eurásia, África, Australásia — sulcando todos os oceanos, em cruzeiros
de comércio, nem um só dos dezoito tripulantes do bravo casco veleiro onde
tremulava altivamente o pavilhão auriverde, tinha tornado a avistar sequer de
longe, nas largas travessias atlânticas, os montes e costas das terras vizinhas
da Pátria, quanto mais esta, e os seus arraiais, freguesias e cidades, quase
sempre pousados dos seios ocultos de baías e golfos, fora da ampla visão do
alto mar. De sorte que a nostalgia e a saudade dos lares, de que essas almas de
heróis vinham carregadas e sobrecarregadas, aguçavam-se agora intensamente,
irreprimivelmente, com os esplendores e calmas das duas últimas semanas andadas
e com a proximidade alentadora e alegre das brasileiras plagas, a surgirem, em
mais duas ou três manhãs, ou três tardes, sob o longo gurupés balouçante, à
proa singradora da Águia.
E nessa
deliciosa e feliz expectativa que lhes dera a voz prognosticadora, e raramente
falível, do capitão, em matéria náutica, o qual, ao observar o sol nessa manhã,
trovejara a sorrir: “Camaradas, daqui a dois ou três dias estaremos em casa” —
nessa deliciosa e feliz expectativa, o coração de cada um começava já de se
expandir e cantar, à primeira aura da incomparável ventura almejada, qual é,
para o marinheiro, o santo regresso ao lar após longas e trabalhosas viagens.
Por isso, todos, nessa noite em que o bom tempo timbrava em trazê-los com amor
à terra natal, tanto quanto lhes permitia a folga da faina, ora suave,
ocupavam-se em ir dispondo desde logo as suas coisas para o desejadíssimo desembarque,
após as últimas labutas e lupas da amarração e ancoragem.
Assim, à
proa, no interior do vasto rancho talhado em triângulo, cortado a beliches de
alto a baixo contra as amuradas, os velhos marinheiros e moços de convés
arrumavam as suas caixas de pinho pintado, à chama de ouro de uma lanterna
suspensa a um dos pés de carneiro da escada. E, no meio de um cheiro de umidade
salitrosa, alcatrão, lona e mialhar — cheiro agradável e higiênico, fundamente
peculiar a todos os recantos de bordo dos navios à vela — palrando
incessantemente, numa voz rude e grossa, enrouquecida em geral pelos ventos
frios do mar, cada um dobrava a sua roupa, peça a peça, e acomodava com carinho
os variados objetos destinados a presentes à família e comprados aqui e além, na
viagem, em os portos onde haviam tocado. Entre fazendas em metros e roupas já
feitas para os filhos, as esposas, as irmãs, as mães, os sobrinhos, os
afilhados e comadres, avultavam as quinquilharias — sabonetes, espelhos,
pentes, caixinhas de segredo, fitas, rendas, lenços, brinquedos, e, sobretudo,
os grandes e pequenos registros representando a Senhora dos Navegantes, o
Cristo, São Sebastião, Santo Antônio, São João. E reviam tudo isso miudamente,
com enternecimento e afeto, citando o nome dos entes queridos a quem iam ser
dados. Num grupo, aqui, dominava um homem de longas barbas e cabelos anelados
já encinzados de neve, que hilarizava os circunstantes fazendo livres ditos
marujos a propósito de um polichinelo de molas que se deslocava todo em piruetas
macabras sob a guizalhada festiva das suas vestes variegadas de clown; num outro, ali, um marinheiro,
pachorrento e artista, com uma doentia minúcia de operário chinês, dava os
últimos toques ao casco e aparelho de um delicado e lindíssimo barquinho, que era
uma admirável miniatura da Águia e
que destinava ao filhinho mais moço, um que deixara ainda a gatinhar quando
saíra para aquela viagem; num outro ainda, além, comentavam-se, a altas
gargalhadas maliciosas, os berloques e vidrinhos de essência barata para as
namoradas... Um belo rapaz, rosado e louro, ainda inteiramente imberbe, só e
acocorado junto ao seu beliche, num recanto isolado, desdobrava e dobrava,
lenta e cuidadosamente, com as suas mãos calosas e rijas, um corte de
mole-mole: era noivo, e aquele seria decerto o vestido que a amada havia de
levar, sob o véu transparente e a nevada grinalda de flor de laranjeira, no dia
feliz do seu noivado...
Isto se dava
no bico de proa onde estava a agente de folga e a de quarto embaixo. Lá acima,
no convés, onde o vento lufava varrendo a imensa amplidão enoitada das águas e
bojando as velas a um bordo, a cena era totalmente outra na vigília das
singraduras, das viradas e das manobras náuticas.
À sombra do
mastro grande, a uma das amuradas, à meia nau da galera, o gajeiro grande, um
velho quase octogenário, contava aos oito moços da sua companha de gávea alguns
fatos extraordinários dos seus longos anos de mar e, entre eles, o de um
terrível naufrágio na Guiné, ao tempo do tráfico dos escravos. E dizia, na sua
expressão rude e cortada de pragas, mas pinturesca e de uma larga verdade:
“Aquilo é que era navegar, raios de Deus! com o perigo por todos os lados: se
se escapava das lestadas, trombas e calmas arrenegadas do Golfo, tinha-se logo
pela proa, ou pela popa, ou pela alheta, ou por um bordo, os diabos dos
corsários, ou então os brigues de guerra ingleses
que andavam ali para recambiar a negrada. E agora verás a inferneira das
manobras, das viradas, das fugas e bordejos de não mais acabar, com a
artilharia a roncar e a despejar fumo e balázios de levar bordas, panos e
mastros pelos ares, quando nos não mandavam a todos direitinhos para o fundo do
mar, a engordar os tubarões que não largavam a esteira do barco, aos bandões,
como manjuba na costa pela quadra estival. Mas se não se podia fugir ou lutar,
e se atravessava, e se ferravam velas, à espera que os tais ingleses ou corsários viessem por fim à
fala ou encostassem, a coisa era ainda pior, porque os estupores carregavam o
navio e companha e, depois de despejarem toda a carga no lugar de onde saíra, abandonavam tudo mais sem recursos em
qualquer praia deserta da África. Fora por isso que o velho Sumares, de uma
feita, pegado a carregar em Lahô, deixara amarras por mão e não podendo ganhar
o mar largo — onde ninguém o vencia — meteu o Espadarte no cabo de Palmas onde a gente escapou por milagre,
passando quase um mês a caminhar dia e noite pela praia para a Serra Leoa,
todos já quase nus e a comermos mariscos ou raízes de mandioca crua para não
cairmos em poder das hordas bárbaras do interior, que papavam gente como os
tubarões ou os selvagens...
No entanto,
os vigias de proa, a fim de sacudirem o torpor das longas horas vazias, na bela
bordada feliz, sem faróis de outros navios a acusar para a popa, cantavam em
coro uma das velhas cantigas marujas de outrora:
Que linda manhã de rosas
Levam os Nautas no mar;
Vão alegres, vão cantando
Ao som do seu navegar.
Mas a sineta
rompera a badalar as doze. Era meia-noite, e
o céu mostrava-se cada vez mais esplendorosamente estrelado. Ia entrar o
quarto da alva. Em pouco, o piloto surgiu no tombadilho e retomou o seu posto
ao cata-vento, enquanto o capitão, o velho lobo do oceano, por sua vez, agora,
recolhia também a descansar.
Nesse último
trecho da viagem, o moço piloto — um robusto rapaz de pouco mais de trinta anos
— era o único que regressava à Pátria sem os grandes contentamentos que a todos
alacrizavam. Entretanto fora ele sem dúvida um dos que mais satisfeitos e
cheios de esperança partiram para esses grandes e lucrativos cruzeiros da Águia: e isto porque, estando noivo, ia arredondar um pecúlio de soldadas
para, ao seu regresso, casar. Mas ao chegar a Padang, em Sumatra, um dos pontos
certos do globo onde devia tocar a galera na sua volta ao Brasil — encontrara
uma carta da madrinha participando-lhe a morte da mãe, havia seis meses, na sua
vila natal. Era a última das viagens da galera nos mares da Oceania, pois que
de Padang iria à Colônia do Cabo e daí — como sucedera — rumaria direito ao
Brasil. Essa perda esmagadora, quando já de volta à Pátria, tornara-o estranho
e indiferente para todo o resto da viagem, pusera-o de certo modo sombrio e
desolara-lhe inominadamente a alma. Tal dor também empanara logo o brilho e
alegria do seu próximo noivado, e esse sentimento não o deixava pensar mais
noutra coisa que não fosse a santa criatura finada. E no instante mesmo em que
entrava para o quarto da alva, era essa intensa ideia funerária o que estava
ali apunhalando de infinita desolação e saudade. — Que triste, pela primeira
vez (pensava), esse seu regresso à Pátria!...
Assim,
apenas o capitão desceu para a câmara e foi rendido o homem do leme, o moço
piloto foi encostar-se à balaustrada de popa e, deixando pender sobre as ondas
a sua pobre e fatigada cabeça, quedou-se a chorar longamente, em silêncio...
Mas a
gloriosa luz da manhã enchia já de róseos clarões triunfais o límpido azul do
firmamento e as primeiras gaivotas da pátria surgiam, esvoaçando alegremente em
torno aos mastros oscilantes da Águia.
No outro dia,
pela tarde, a galera fundeava no porto, após dois anos e oito meses de longas
mas rendosas viagens ao longo de todos os continentes e através de todos os
mares do Globo.
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