Marinaro
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Magnífica
essa noite transparente de junho no palacete da Estrela, que flamejava todo aceso
com os seus altos torreões rendilhados, como um antigo castelo da média idade,
destacando num viso de colina, ao centro dum vasto parque florido e cheio de
árvores seculares.
Celebrava-se
o aniversário nupcial dos viscondes de Vilar. E no vasto salão, todo em pompas
de veludo e brocado, entre jarras lavoradas da China e as preciosidades
custosas de uma opulenta coleção de arte, os perfis excelsos, ebúrneos ou de um
moreno ambarado de vaporosas criaturas ideais, emergindo delicadamente, num
conjunto de esplendor e de graça, da leveza cetinosa das toaletes fidalgas.
A Sra. Viscondessa,
muito alegre e elegante no seu belo vestido de faille cor de musgo outonal, impressionava como sempre, os
convivas, com a sua pele de jambo, o seu rosto largo de assíria e a sua alta
estatura de beleza bárbara, que fazia evocar
de repente a linha dominadora que tem, nas gravuras bíblicas, a rainha
de Sabá.
Todos, em
volta, a festejavam com frases e gestos aristocráticos, em pequenos grupos
zumbidores, dispostos, aqui e ali, pela sala. Ela sorria jovialmente, numa
expansão e alvoroço adoráveis, correspondendo com o seu espírito borbulhante a
todas essas homenagens.
E de roda em
roda, por entre os grupos festivos que a aclamavam, entornando sorrisos e
olhares, numa auréola de perfumes e brilhos e num rumor de sedas caras, a senhora
Viscondessa dirigiu-se para um recanto afastado de janelas, por onde entravam
frescura e aromas, e trêmulas, invasoras ramagens, enlaçando caprichosamente,
com as volutas elásticas, os balaústres artísticos dos balcões de mármore.
Aí
esperava-a, há muito, num silêncio e meditação de exilado, um belo rapaz
vigoroso, de grandes olhos melancólicos e negros cabelos ondeados, a quem ela
acenou docemente com os seus dedos claros onde os anéis faiscavam, murmurando
numa voz rouca e vaga, muito límpida e sonora, como de ouro e luar:
— Venha agora, Carlos. Vamos para aquela outra sala, ali onde
está o piano... Vai ouvir as nossas músicas de outrora, aquelas romanzas que amava... Lembra-se?... Há
que anos foi isso!... E que paraíso antes da sua primeira viagem! Mas depois...
que de tristezas e lágrimas!
Ele,
sorrindo com os seus dentes muito alvos, uma radiação de alegria no semblante
queimado, externando a máscula profissão aventurosa dos que levam a existência
embalada no mar, deixou imediatamente os balaústres de mármore, seguindo
submissamente a senhora Viscondessa, ao mesmo tempo que lhe dizia de manso,
ereto e alto ao seu lado:
— É verdade, Tilinha, quanta saudade! Que de esplendor já extinto!
E como os anos passam rápidos!...
E lentamente
atravessaram o salão, entrando na outra sala.
A senhora
Viscondessa encaminhou-se para o lado do piano e, antes de sentar-se à
banquinha, parou um momento em frente à pequena estante Renascença de ébano
incrustado, que ostentava profusamente, por entre cadernos dispersos, grossos
álbuns de músicas e libretos de óperas escolhidas, em ricas encadernações
douradas. Toda inclinada, com o seu lindo torso robusto estalando o corpete
magnífico cor de musgo outonal, que a envolvia majestosamente como uma couraça,
ia dizendo ao rapaz, num cicio amoroso, a voz meio comprimida pela postura
curvada:
— Então, esperou muito? Não. Por que, pois, há de ser sempre
o impaciente de outrora? Que organismo, que não muda nunca! Estava a dizer que eu me demoraria uma eternidade... Não
foi assim. Aqui estou, pertenço-lhe toda, sou sua... Pode falar, desatar-se
todo em queixumes, como dantes... Vá!... Também há talvez doze anos que nos não
vemos, não há?... Que horror! que imensa ausência fatal. E ainda me está bem
viva na memória a sua despedida, numa noite de Natal... O que eu não sofri, nos
primeiros dois anos! Você viu pelas minhas cartas... Mas como eu era tola! E
você a divertir-se muito bem lá pelo sul da Itália. Mas acabou-se, não lhe
recrimino, hoje sou outra... E o passado está passado...
Ergueu-se,
com um dos álbuns de músicas que tinham gravadas a ouro na capa as suas
iniciais, e dando alguns passos sentou-se à banquinha, folheando rapidamente o
livro com os seus dedos brancos, onde os anéis faiscavam. De repente estacou
numa página azulada, representando, em fino esquisso romano, uma “marinha” luarenta e saudosa no golfo de Nápoles. Voltou a folha,
que estava coroada no alto por esta palavra nostálgica — MARINARO: aquietou-a com um movimento da mão espalmada, e
prorrompeu a solfejar baixo pianotando uns compassos. Depois virou-se para o
rapaz, que se inclinara de leve sobre o grande móvel de cauda, e ciciou com os
olhos cheios de uma luz de ternura, num suspiro de saudade:
— Preste bem atenção, Carlos... Veja se se recorda... Esta romanza, que eu vou cantar, era a sua
predileta... Lá no sul, pelo menos, você não queria outra... Era a “inspirada", como você dizia, que evocava tão bem as melancolias
de bordo, a solidão do oceano e a espiritualidade ideal das viagens...
E atacou o teclado, com um
movimento adorável dos braços roliços, curvos em arco, que corriam e se
curvavam continuamente sobre a vasta barra flexível de marfim alvo. Com os
belos olhos escuros, de longos cílios bastos, começou a passar os hieróglifos
das pautas ao mesmo tempo que seus dedos artísticos turbilhonavam sobre as
teclas, e, balançando a cabeça graciosa num vaivém ritmado, lançou a sua voz de
soprano, vaga e celestial, que entrou a ondular na sala:
Guarda... le
nuvole dh’alte biancheggiano
Lassú nel
ciel...
Son l’alme amabile que si rincontrano
Nel Glauco
vel...
Ele então,
num enlevo, sentindo o canto penetrar-lhe o coração, acordando-lhe antigas
saudades de um alegre tempo passado, que lhe aparecia agora numa radiação
inatingível de passagem eteral, fixava-a docemente, e, ao terminar da estrofe
primeira, murmurou numa acentuação sussurrada:
— Que lindo, Tilinha! Que lindo este Marinaro! Se me não hei de lembrar!...
Ela ergueu
para ele, sorrindo, os seus grandes olhos negros, umedecidos num longo fluído
lânguido que arrebatava a alma, e, com a bela garganta escultural, de um
contorno unido e forte, túmida outra vez de gorjeios, soltou de novo a voz
maviosa, movendo, ao compasso lento da música, a encantadora cabeça de
columbina ideal. E a segunda estrofe marulhosa da romanza adejou no ar, pondo um vivo frêmito tremulante de
arrebatamento e de amor na mornidão do ambiente suave:
Laggiú piú
libere l’onde si baciano,
Ninfe dei
mar!
La notte é esplêndida, le stelle
brilano:
Vivere é amar!...
E
prosseguia, com grande execução, desfiando artisticamente as estâncias
melancólicas daquela balada de mar.
Arrebatado,
o apaixonado sonhador do oceano, juntamente com a música inefável, sentia
desfilarem-lhe n’alma, cantando, como um tropel de
visões que vão levadas para o Nada, lembranças vívidas e fúlgidas
daquela época brilhante, agora morta para sempre, em que ele amava a Tilinha — ora exultando a seu lado, nos vagares de terra, sob
dias dourados; ora gemendo de amor, nas viagens longínquas, pelas noites
consteladas ou torvas, à borda oscilante das naves. Não tirava os olhos de
sobre o busto dela, contornado esculturalmente pelo corpete magnífico cor de
musgo outonal, detendo-os, nesse instante, na formosíssima cabeça elevada, que
se movia, com o canto, num boleio ritmado. Os seus cabelos espessos, de um
lindo negro de amora dantes, e que lhe pendiam às vezes esparsos
descuidadamente sobre as largas espáduas, estavam agora precocemente
tingindo-se, aqui e ali, de leves malhas nevadas. E o seu rosto florente, onde
os grandes olhos fulgiam com uma negrura de conta negra molhada, subia de
gracilidade e encanto, assim prendendo e deslumbrando, na fascinação
irresistível de uma evocação do passado, à maneira de uma dessas marquesas
antigas, que viesse deslizando do fundo do grande século, numa espiral de
minuete, com ondulações ronronantes de seda e os cabelos polvilhados...
Embalado pelas notas, ia revendo,
em fugidias notações de saudade, as paragens luminosas de uma estância volvida:
tudo lhe vogava no espírito lentamente, em laivos preciosos e saudosos, mas
esvaídos de coloração e aroma, como velhas pétalas emurchadas. E o que lhe
pontilhava de luz dolorosa e irônica os filões emocionais, era o eletrismo de
certas células, avivando-lhe, em mágoa íntima, aquela falta irremediável do seu
desprendimento por ela, que o levara, num delírio por outra, a destronar de
repente do coração a sua imagem sagrada, fazendo-o derribar, num instante, como
numa rajada, a sua torre de afeições —
quando byronianamente vagava, numa viagem romanesca, pelas
costas da Dalmácia. Pungia-lhe aquela situação, vazia e deserta como uma estepe
gelada, onde mal se mantinha ainda uma derradeira floração de afetos, que lhe
brotava do peito, numa ânsia de ilusões e sonhos, em esforços desesperados para
a Felicidade e para a Glória, no seio estéril de uma quadra já morta — campo santo dos seus vinte anos, povoado de desejos e beijos que não
cantaram jamais, afogados na infinita vastidão oceânica e na melancolia brumal
das viagens...
Mas a romanza findava por um apelo implorativo
e gemente, em que a voz rouca e triste de um nauta apaixonado, tremulando em smorzandos suaves, ondulava e fugia por
sobre o mar espumoso, velado de um filó de luar, para longe, para longe, onde
um perfil de Visão se afundava entre a escumilha nevoenta de uma alvura de
praia:
Sorgi ed
ascoltami el prego fervido
Del marinar...
Viene sul
mare, viene, accompagnami:
Vivere é amar!...
Palmas e
bravos ruidosos romperam no salão, em prolongados aplausos.
Ele correu
então para ela que findou num stacato admirável,
toda risonha e alegre, envolvendo-o no clarão veludoso e bendito dos seus olhos
nanquinados — e, tomando-lhe as mãos com
ardor, cobriu-as de beijos rápidos, segredando-lhe melancolicamente, numa voz
trêmula e rouca, que chorava:
— Ah! Tilinha, que dolorosas saudades de outrora à tua voz
despertaram em minha alma! Quanto me sinto agora desventuroso! E como tudo está
mudado!...
Ela
ergueu-se e deu uns passos para fora do piano, enternecida e numa idealidade,
porque ainda o amava; e, com as mãos nas mãos dele, numa arrebatação, balbuciou
meigamente:
— Mas eu te amo ainda, Carlos! Eu te amo, querido Marinaro!...
E
suspendeu-se, porque uma multidão de convivas alastrou de repente a sala,
repetindo-se os aplausos:
— Bravos! bravos! Sra. Viscondessa. Que romanza admirável!...
***
Horas
depois, quando a festa acabou e ele descia a escadaria de mármore sob o esplendor
delicioso do céu estrelado, ia pensando desoladamente na sua vida atual, tão
vazia e monótona como a vastidão infinita do oceano onde andava. E numa
palpitação e numa nostalgia que lhe oprimiam a alma, sentia ainda cantar-lhe no
cérebro, como um estribilho de dolorosa verdade, este belo verso final da romanza:
“Vivere é
amar!...”
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