Marcha Fúnebre
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O deputado Cordovil não podia pregar olho uma noite de agosto de 186... Viera cedo do Cassino Fluminense, depois da retirada do Imperador, e durante o baile não tivera o mínimo incômodo moral nem físico. Ao contrário, a noite foi excelente; tão excelente que um inimigo seu, que padecia do coração, faleceu antes das dez horas, e a notícia chegou ao Cassino pouco depois das onze.
Naturalmente concluis que ele ficou alegre
com a morte do homem, espécie de vingança que os corações adversos e fracos
tomam em falta de outra. Digo-te que concluis mal; não foi alegria, foi
desabafo. A morte vinha de meses, era daquelas que não acabam mais, e moem,
mordem, comem, trituram a pobre criatura humana. Cordovil sabia dos
padecimentos do adversário. Alguns amigos, para o consolar de antigas injúrias,
iam contar-lhe o que viam ou sabiam do enfermo, pregado a uma cadeira de
braços, vivendo as noites horrivelmente, sem que as auroras lhe trouxessem
esperanças, nem as tardes desenganos. Cordovil pagava-lhes com alguma palavra
de compaixão, que o alvissareiro adotava, e repetia, e era mais sincera naquele
que neste. Enfim acabara de padecer; daí o desabafo.
Este sentimento pegava com a piedade humana.
Cordovil, salvo em política, não gostava do mal alheio. Quando rezava, ao
levantar da cama: “Padre Nosso, que estás no céu, santificado seja o teu nome,
venha a nós o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu;
o pão nosso de cada dia nos dá hoje; perdoa as nossas dívidas, como nós
perdoamos aos nossos devedores”... não imitava um de seus amigos que rezava a
mesma prece, sem todavia perdoar aos devedores, como dizia de língua; esse
chegava a cobrar além do que eles lhe deviam, isto é, se ouvia maldizer de
alguém, decorava tudo e mais alguma coisa e ia repeti-lo a outra parte. No dia
seguinte, porém, a bela oração de Jesus tornava a sair dos lábios da véspera
com a mesma caridade de ofício.
Cordovil não ia nas águas desse amigo; perdoava
deveras. Que entrasse no perdão um tantinho de preguiça, é possível, sem aliás
ser evidente. Preguiça amamenta muita virtude. Sempre é alguma coisa minguar
força à ação do mal. Não esqueça que o deputado só gostava do mal alheio em
política, e o inimigo morto era inimigo pessoal. Quanto à causa da inimizade,
não a sei eu, e o nome do homem acabou com a vida.
— Coitado! descansou, disse Cordovil.
Conversaram da longa doença do finado. Também
falaram das várias mortes
deste mundo, dizendo Cordovil que a todas
preferia a de César, não por motivo do ferro, mas por inesperada e rápida.
— Tu
quoquê? perguntou-lhe um colega rindo.
Ao que ele, apanhando a alusão, replicou:
— Eu, se tivesse um filho, quisera morrer às
mãos dele. O parricídio, estando fora do comum, faria a tragédia mais trágica.
Tudo foi assim alegre. Cordovil saiu do baile
com sono, e foi cochilando no carro, apesar do mal calçado das ruas. Perto de
casa, sentiu parar o carro e ouviu rumor de vozes. Era o caso de um defunto,
que duas praças de polícia estavam levantando do chão.
— Assassinado? perguntou ele ao lacaio, que
descera da almofada para saber o que era.
— Não sei, não, senhor.
— Pergunta o que é.
— Este moço sabe como foi, disse o lacaio,
indicando um desconhecido, que falava a outros.
O moço aproximou-se da portinhola, antes que
o deputado recusasse ouvi-lo. Referiu-lhe então em poucas palavras o acidente a
que assistira.
— Vínhamos andando, ele adiante, eu atrás.
Parece que assobiava uma polca. Indo a atravessar a rua para o lado do Mangue,
vi que estacou o passo, a modo que torceu o corpo, não sei bem, e caiu sem
sentidos. Um doutor, que chegou logo, descendo de um sobradinho, examinou o
homem e disse que “morreu de repente”. Foi-se juntando gente, a patrulha levou
muito tempo a chegar. Agora pegou dele. Quer ver o defunto?
— Não, obrigado. Já se pode passar?
— Pode.
— Obrigado. Vamos, Domingos.
Domingos trepou à almofada, o cocheiro tocou
os animais, e o carro seguiu até à Rua de São Cristóvão, onde morava Cordovil.
Antes de chegar à casa, Cordovil foi pensando
na morte do desconhecido. Em si mesma, era boa; comparada à do inimigo pessoal,
excelente. Ia a assobiar, cuidando sabe Deus em que delícia passada ou em que
esperança futura; revivia o que vivera, ou antevia o que podia viver, senão
quando, a morte pegou da delícia ou da esperança, e lá se foi o homem ao eterno
repouso. Morreu sem dor, ou, se alguma teve, foi acaso brevíssima, como um
relâmpago que deixa a escuridão mais escura.
Então pôs o caso em si. Se lhe tem acontecido
no Cassino a morte do Aterrado? Não seria dançando; os seus quarenta anos não
dançavam. Podia até dizer que ele só dançou até aos vinte. Não era dado a
moças, tivera um afeição única na vida, — aos vinte e cinco anos, casou e
enviuvou ao cabo de cinco semanas para não casar mais. Não é que lhe faltassem
noivas, — mormente depois de perder o avô, que lhe deixou duas fazendas.
Vendeu-as ambas e passou a viver consigo, fez duas viagens à Europa, continuou
a política e a sociedade. Ultimamente parecia enojado de uma e de outra, mas
não tendo em que matar o tempo, não abriu mão delas. Chegou a ser ministro uma
vez, creio que da Marinha, não passou de sete meses. Nem a pasta lhe deu
glória, nem a demissão desgosto. Não era ambicioso, e mais puxava para a
quietação que para o movimento.
Mas se lhe tivesse sucedido morrer de repente
no Cassino, ante uma valsa ou quadrilha, entre duas portas? Podia ser muito
bem. Cordovil compôs de imaginação a cena, ele caído de bruços ou de costas, o
prazer turbado, a dança
interrompida... e dali podia ser que não; um
pouco de espanto apenas, outro de susto, os homens animando as damas, a
orquestra continuando por instantes a oposição do compasso e da confusão. Não
faltariam braços que o levassem para um gabinete, já morto, totalmente morto.
“Tal qual a morte de César”, ia dizendo
consigo.
E logo emendou:
“Não, melhor que ela; sem ameaça, nem armas,
nem sangue, uma simples queda e o fim. Não sentiria nada.”
Cordovil deu consigo a rir ou a sorrir,
alguma coisa que afastava o terror e deixava a sensação da liberdade. Em
verdade, antes a morte assim que após longos dias ou longos meses e anos, como
o adversário que perdera algumas horas antes. Nem era morrer; era um gesto de
chapéu, que se perdia no ar com a própria mão e a alma que lhe dera movimento.
Um cochilo e o sono eterno. Achava-lhe um só defeito, — o aparato. Essa morte
no meio de um baile, defronte do Imperador, ao som de Strauss, contada,
pintada, enfeitada nas folhas públicas, essa morte pareceria de encomenda.
Paciência, uma vez que fosse repentina.
Também pensou que podia ser na Câmara, no dia
seguinte, ao começar o debate do orçamento. Tinha a palavra; já andava cheio de
algarismos e citações. Não quis imaginar o caso, não valia a pena; mas o caso
teimou e apareceu de si mesmo. O salão da Câmara, em vez do Cassino, sem damas
ou com poucas, nas tribunas. Vasto silêncio. Cordovil em pé começaria o
discurso, depois de circular os olhos pela casa, fitar o ministro e fitar o
presidente: “Releve-me a Câmara que lhe tome algum tempo, serei breve, buscarei
ser justo...” Aqui uma nuvem lhe taparia os olhos, a língua pararia, o coração
também, e ele cairia de golpe no chão. Câmara, galerias, tribunas ficariam
assombradas. Muitos deputados correriam a erguê-lo; um, que era médico,
verificaria a morte; não diria que fora de repente, como o do sobradinho do
Aterrado, mas por outro estilo mais técnico. Os trabalhos seriam suspensos,
depois de algumas palavras do presidente e escolha da comissão que acompanharia
o finado ao cemitério...
Cordovil quis rir da circunstância de
imaginar além da morte, o movimento e o saimento, as próprias notícias dos
jornais, que ele leu de cor e depressa. Quis rir, mas preferia cochilar; os
olhos é que, estando já perto de casa e da cama, não quiseram desperdiçar o
sono, e ficaram arregalados.
Então a morte, que ele imaginara pudesse ter
sido no baile, antes de sair, ou no dia seguinte em plena sessão da Câmara,
apareceu ali mesmo no carro. Supôs ele que, ao abrirem-lhe a portinhola, dessem
com o seu cadáver. Sairia assim de uma noite ruidosa para outra pacífica, sem
conversas, nem danças, nem encontros, sem espécie alguma de luta ou
resistência. O estremeção que teve fez-lhe ver que não era verdade.
Efetivamente, o carro entrou na chácara, estacou, e Domingos saltou da almofada
para vir abrir-lhe a portinhola. Cordovil desceu com as pernas e a alma vivas,
e entrou pela porta lateral, onde o aguardava com um castiçal e vela acesa o
escravo Florindo. Subiu a escada, e os pés sentiam que os degraus eram deste
mundo; se fossem do outro, desceriam naturalmente. Em cima, ao entrar no
quarto, olhou para a cama; era a mesma dos sonos quietos e demorados.
— Veio alguém?
— Não, senhor, respondeu o escravo distraído,
mas corrigiu logo: Veio, sim, senhor; veio aquele doutor que almoçou com meu
senhor domingo passado.
— Queria alguma coisa?
— Disse que vinha dar a meu senhor uma boa
notícia, e deixou este bilhete — que eu botei ao pé da cama.
O bilhete referia a morte do inimigo; era de
um dos amigos que usavam contar-lhe a marcha da moléstia. Quis ser o primeiro a
anunciar o desenlace, um alegrão, com um abraço apertado. Enfim, morrera o
patife. Não disse a coisa assim por esses termos claros, mas os que empregou
vinham a dar neles, acrescendo que não atribuiu esse único objeto à visita.
Vinha passar a noite; só ali soube que Cordovil fora ao Cassino. Ia a sair,
quando lhe lembrou a morte e pediu ao Florindo que lhe deixasse escrever duas
linhas. Cordovil entendeu o significado, e ainda uma vez lhe doeu a agonia do
outro. Fez um gesto de melancolia e exclamou a meia voz:
— Coitado! Vivam as mortes súbitas!
Florindo, se referisse o gesto e a frase ao
doutor do bilhete, talvez o fizesse arrepender da canseira. Nem pensou nisso;
ajudou o senhor a preparar-se para dormir, ouviu as últimas ordens e
despediu-se. Cordovil deitou-se.
— Ah! suspirou ele estirando o corpo cansado.
Teve então uma ideia, a de amanhecer morto.
Esta hipótese, a melhor de todas, porque o apanharia meio morto, trouxe consigo
mil fantasias que lhe arredaram o sono dos olhos. Em parte, era a repetição das
outras, a participação à Câmara, as palavras do presidente, comissão para o
saimento, e o resto. Ouviu lástimas de amigos e de fâmulos, viu notícias
impressas, todas lisonjeiras ou justas. Chegou a desconfiar que era já sonho.
Não era. Chamou-se ao quarto, à cama, a si mesmo: estava acordado.
A lamparina deu melhor corpo à realidade.
Cordovil espancou as ideias fúnebres e esperou que as alegres tomassem conta
dele e dançassem até cansá-lo. Tentou vencer uma visão com outra. Fez até uma
coisa engenhosa, convocou os cinco sentidos, porque a memória de todos eles era
aguda e fresca; foi assim evocando lances e rasgos longamente extintos. Gestos,
cenas de sociedade e de família, panoramas, repassou muita coisa vista, com o
aspecto do tempo diverso e remoto. Deixara de comer acepipes que outra vez lhe
sabiam, como se estivesse agora a mastigá-los. Os ouvidos escutavam passos
leves e pesados, cantos joviais e tristes, e palavra de todos os feitios. O
tato, o olfato, todos fizeram o seu ofício, durante um prazo que ele não
calculou.
Cuidou de dormir e cerrou bem os olhos. Não
pôde, nem do lado direito, nem do esquerdo, de costas nem de bruços. Ergueu-se
e foi ao relógio; eram três horas. Insensivelmente levou-o à orelha a ver se
estava parado; estava andando, dera-lhe corda. Sim, tinha tempo de dormir um
bom sono; deitou-se, cobriu a cabeça para não ver a luz.
Ah! foi então que o sono tentou entrar,
calado e surdo, todo cautelas, como seria a morte, se quisesse levá-lo de
repente, para nunca mais. Cordovil cerrou os olhos com força, e fez mal, porque
a força acentuou a vontade que tinha de dormir; cuidou de os afrouxar, e fez
bem. O sono, que ia a recuar, tornou atrás, e veio estirar-se ao lado deles,
passando-lhe aqueles braços leves e pesados, a um tempo, que tiram à pessoa
todo movimento. Cordovil os sentia, e com os seus quis conchegá-los ainda mais...
A imagem não é boa, mas não tenho outra à mão nem tempo de ir buscá-la. Digo só
o resultado do gesto, que foi arredar o sono de si, tão aborrecido ficou este
reformador de cansados.
— Que terá ele hoje contra mim? perguntaria o
sono, se falasse.
Tu sabes que ele é mudo por essência. Quando
parece que fala é o sonho que abre a boca à pessoa; ele não, ele é a pedra, e
ainda a pedra fala, se lhe batem, como estão fazendo agora os calceteiros da
minha rua. Cada pancada acorda na pedra um som, e a regularidade do gesto torna
aquele som tão pontual que parece a alma de um relógio. Vozes de conversa ou de
pregão, rodas de carro, passos de gente, uma janela batida pelo vento, nada
dessas coisas que ora ouço, animava então a rua e a noite de Cordovil. Tudo era
propício ao sono.
Cordovil ia finalmente dormir, quando a ideia
de amanhecer morto apareceu outra vez. O sono recuou e fugiu. Esta alternativa
durou muito tempo. Sempre que o sono ia a grudar-lhe os olhos, a lembrança da
morte os abria, até que ele sacudiu o lençol e saiu da cama. Abriu uma janela e
encostou-se ao peitoril. O céu queria clarear, alguns vultos iam passando na
rua, trabalhadores e mercadores que desciam para o centro da cidade. Cordovil
sentiu um arrepio; não sabendo se era frio ou medo, foi vestir um camisão de
chita, e voltou para a janela. Parece que era frio, porque não sentia mais
nada.
A gente continuava a passar, o céu a clarear,
um assobio da estrada de ferro deu sinal de trem que ia partir. Homens e coisas
vinham do descanso, o céu fazia economia de estrelas, apagando-as à medida que
o sol ia chegando para o seu ofício. Tudo dava ideia de vida. Naturalmente a ideia
da morte foi recuando e desapareceu de todo, enquanto o nosso homem, que
suspirou por ela no Cassino, que a desejou para o dia seguinte na Câmara dos
Deputados, que a encarou no carro, voltou-lhe as costas quando a viu entrar com
o sono, seu irmão mais velho, — ou mais moço, não sei.
Quando veio a falecer, muitos anos depois,
pediu e teve a morte, não súbita, mas vagarosa, a morte de um vinho filtrado,
que sai impuro de uma garrafa para entrar purificado em outra; a borra iria
para o cemitério. Agora é que lhe via a filosofia; em ambas as garrafas era
sempre o vinho que ia ficando, até passar inteiro e pingado para a segunda.
Morte súbita não acabava de entender o que era.
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