Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Âncora a pique, o belo steamer
partia, aproado à barra de onde devia rumar ao Rio Grande do Sul.
Um dos pilotos, à borda, sobre o castelo, presidia à faina de
suspender, ultimando-a, a olhar cuidadosamente, com um dos marinheiros, o içar
lento do ferro ao pequeno mas forte turco recurvo, para o aboçar ao alto, no
lugar costumado, sem que as suas grossas e angulosas unhas ou patas pudessem
raspar a pintura ou enjambrar por acaso nalguma chapa do casco.
Florianópolis, risonha e resplendendo ao sol vivo e de ouro da
manhã pela sua casaria branca dominada de torres de igrejas, fugia à ré pouco a
pouco, a diminuir e a esconder-se vagarosa e gradativamente na profusa e
rendilhada vegetação dos seus outeiros e morros...
Os passageiros, à tolda, eram ainda em grande número — apesar dos
que haviam já desembarcado em Santos e Paranaguá — e agora todos da terra dos
pampas ou que para ali se destinavam, pois Florianópolis era o derradeiro porto
de escala e a cidade do Rio Grande o ponto terminal da viagem, de onde o vapor
devia regressar ao Rio. Para os que demandavam Porto Alegre — e constituíam a
maior parte — havia correspondência com o vaporzinho Estrela, que completava a linha até a capital rio-grandense, porque
o Órion, como o Sírio, o Saturno e o
Júpiter, pelo seu grande calado, não podiam singrar a lagoa dos Patos e ter
acesso até aquela capital.
Que alegres e grazinantes passageiros esses, sobretudo às
ancoragens nos portos ou quando o navio em singradura em águas plácidas, como
essas da vasta baía sul de Santa Catarina!
Entretanto, o Vítor Vale, um dos passageiros, deixara as álacres
rodas dos camaradas esparsos pelo tombadilho e se isolara a um canto pouco
frequentado dos balaustres de ré. Olhava daí, obcecadamente e alheado de tudo, o
lento e saudoso recuar e desaparecer da sua cidade natal, que não via havia
vinte anos e onde se demorara apenas duas horas. “Uma verdadeira visita de
médico — lamentava ele intimamente — depois de tão longa ausência!” Porém, à
volta da missão a que ia, desforrar-se-ia disso opulentamente — prometia a si
mesmo — deleitando-se em descansar, por um ou dois meses, nesse maternal
regaço, para ele carinhoso e sagrado.
E tristemente entrara a desfiar, dentro da alma, recordações e
venturas passadas na quadra límpida e risonha da sua infância já morta,
arremessando ansiosamente para trás, para terra, o seu meigo olhar de exilado,
de prisioneiro do navio e do Mar, apegando-se, ainda, derradeiramente, numa
longa, arrastada e adorativa despedida, não só pela emotividade vivíssima da
visão o dos demais órgãos dos sentidos, como pelos filões invisíveis e
radiantes do espírito, à sua amada Florianópolis que pouco e pouco se afundava
nas vagas...
Estava assim, nessa atitude contemplativa e nostálgica quando, de
repente, junto das suas, umas mãos muito lindas, brancas, finas, princezais,
cheias de anéis que faiscavam por aros de ouro cravejados de pedrarias que
pareciam microscópicos astros, pousaram delicada e docemente no corrimão dos
balaustres. E logo um vulto tentador de mulher — a dona dessas mãos
encantadoras — surgiu ao seu lado, voltado todo para ele. “Vênus Afrodite!”
exclamou de si para si, despertando de súbito mas alegremente do seu sonho
melancólico.
Sim, era Vênus Afrodite, surgindo-lhe, não das espumas do Egeu,
mas das águas catarinenses, por sobre a ampla tolda do steamer. Era sem dúvida uma Vênus, pela graça e beleza, essa
passageira rio-grandense que, gracejadora inteligente e inquieta,
aristocraticamente espirituosa e galante, como se fora a encarnação mesma da
Verve, vivia, desde a saída do Rio, a enredar a todos na teia de ouro
sutilíssima dos seus atados gracejos.
E ela agora, vibrada decerto pelo romantismo excessivo do Vítor,
lançava por sobre ele, como nunca, esse luminoso zaimph do seu requintado espírito, dizendo-lhe, com a sua boca
pequenina e grega, fresca e rosada como um morango ou um botão de flor
entreaberto, com os olhos muito fixos sobre os do rapaz, mas uns desses belos e
grandes olhos negros rasgados que parece estarem a abrir perenemente janelas de
ilusões e encantos sobre aqueles a quem fitam:
— Já sei que a sua cidade natal lhe arrebata agora o coração e o
espírito para todo o resto da viagem e, talvez mesmo, para toda a sua excursão
ao Rio Grande... Não é verdade? Diga...
E ria-se, ria-se a perder, deliciosa e arrebatadoramente,
mostrando na linda boca de romã muito madura uns dentes miudinhos e brancos
como as mais raras pérolas de Ofir.
E ele dizia-lhe de manso, gloriado e agradecido, mas fundamente
temeroso da imensa dominação e prestígio dessa grande flor humana, tentadora e
inaudita:
— Sim, ó Deusa irresistível!... Mas deixa-me, por agora e por um
instante somente, com a tua olímpica beleza e o teu divino espírito!... Oh!
deixa-me, deixa-me, fascinantíssima e gaúcha, Afrodite, só entregue à minha
saudade de exilado e de artista!...
E ela a enredá-lo mais e mais na teia de ouro da sua verve, da sua
beleza, do seu espírito...
Mas o Órion já
transpunha a barra, e Florianópolis se sumia de todo na doce curva longínqua do
seu golfo azulino. E as águas da costa, de Naufragados para o sul,
mostravam-se, como rara, rarissimamente se tem visto, numa calma e bonança
indizíveis.
No entanto, Vênus Afrodite, a soberba Vênus Afrodite sulista, não
deixava o Vítor Vale dizer-lhe agora magnética e musicalmente:
— Mas que viagem, meu amigo! Que viagem deliciosa e feliz! Um
verdadeiro “mar de rosas” como se diz tão pitorescamente na expressiva
linguagem marítima.
O Vítor tornou-lhe então, respeitoso mas num grande enlevo íntimo:
— É verdade, ó Deusa! Vamos aqui em mar de rosas... Mas a maior
rosa deste mar és tu mesma ó Afrodite!...
Ela lançou-se a rir de novo, como sempre, com viva e ardente
delícia.
A revoada de gaivotas que nos acompanhava pela popa, desde a saída
do ancoradouro, como uma bizarra guarda de honra alada e límpida, aumentava
consideravelmente, tornando-se imensa nuvem, com os bandos de companheiras que
se lhe vinham juntar, ao instante, partindo das ilhotas próximas, por entre as
quais ia singrando o vapor, como as dos Papagaios, as das Três Irmãs, as dos
Corais...
Afrodite pôs-se então a falar das gaivotas, das grazinantes,
graciosas e alvoroçadas gaivotas que, pinturescamente, agora, como em despedida
final aos de bordo — pois que o Órion ganhava
já a toda a força o mar alto, embora com a costa quase sempre à vista —
envolviam, em voos brancos recurvos, suavíssimos e contínuos, o ar em torno e o
steamer.
E, achegando-se mais ao Vítor Vale, murmurou-lhe amorosa e
tremulamente:
— Olhe, Vítor. Como elas andam alegres, livres e felizes, as
gaivotas!... Nascem, amam e morrem tranquilas e suavemente, a esvoaçar sempre
ao sol, sobre a costa e sobre as águas... Quem lhes não há de invejar o
destino!...
— Sim, bela Deusa! as gaivotas são bem mais felizes que os
homens!...
E assim foram os dois, entre os outros passageiros, a gracejar e a
brincar, durante um dia e uma noite, a bordo do belo Órion, por essas ásperas e revoltas ondas do sul, tornadas então,
excepcionalmente, em verdadeiro “mar de rosas”...
***
Fora bem um sonho para o Vítor Vale toda essa esplêndida
travessia, sonho de que só despertou já à barra do Rio Grande.
Quando o Órion, na sua
rota ligeira, aproou por fim à barra e apareceu, já sem névoas, a bela terra
gaúcha, correndo nordeste-sudoeste, como a rainha do sul, o Vítor que, qual os
demais passageiros, a contemplava num encanto, tendo Afrodite ao seu lado, a
gorjear como sempre coisas de Arte e de Espírito, exclamou com efusão, a
lisonjear gentilmente damas e cavalheiros gaúchos que enxameavam a tolda e,
sobretudo, a lisonjear a formosíssima Deusa que, perfeitamente sabedora da
missão a que ele ia, tanto e tanto o distinguira em toda aquela viagem:
— Salve, grande Estado dos pampas, terra de heróis legendários e
de mulheres bonitas!...
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