Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
I
.......... Ao dar com o padre Teófilo falando
a uma senhora, ambos sentadinhos no banco da igreja, e a igreja deserta, confesso
que fiquei espantado. Note-se que conversavam em voz tão baixa e discreta, que
eu, por mais que afiasse o ouvido e me demorasse a apagar as velas do altar,
não podia apanhar nada, nada, nada. Não tive remédio senão adivinhar alguma
coisa. Que eu sou um sacristão filósofo. Ninguém me julgue pela sobrepeliz rota
e amarrotada nem pelo uso clandestino das galhetas. Sou um filósofo sacristão.
Tive estudos eclesiásticos, que interrompi por causa de uma doença e que
inteiramente deixei por outro motivo, uma paixão violenta, que me trouxe à
miséria. Como o seminário deixa sempre um certo vinco, fiz-me sacristão aos
trinta anos, para ganhar a vida. Venhamos, porém, ao nosso padre e à nossa
dama.
II
Antes de ir adiante, direi que eram primos.
Soube depois que eram primos, nascidos em Vassouras. Os pais dela mudaram-se
para a Corte, tendo Eulália (é o seu nome) sete anos. Teófilo veio depois. Na
família era uso antigo que um dos rapazes fosse padre. Vivia ainda na Bahia um
tio dele, cônego. Cabendo-lhe nesta geração envergar a batina, veio para o
seminário de São José, no ano de mil oitocentos e cinquenta e tantos, e foi aí
que o conheci. Compreende-se o sentimento de discrição que me leva a deixar a
data no ar.
III
No seminário, dizia-nos o lente de retórica:
— A teologia é a cabeça do gênero humano, o
latim a perna esquerda, e a retórica a perna direita.
Justamente da perna direita é que o Teófilo
coxeava. Sabia muito as outras coisas: teologia, filosofia, latim, história
sagrada; mas a retórica é que lhe não entrava no cérebro. Ele, para
desculpar-se, dizia que a palavra divina não precisava de adornos. Tinha então
vinte ou vinte e dois anos de idade, e era lindo como São João.
Já nesse tempo era um místico; achava em
todas as coisas uma significação recôndita. A vida era uma eterna missa, em que
o mundo servia de altar, a alma de sacerdote e o corpo de acólito; nada
respondia à realidade exterior. Vivia ansioso de tomar ordens para sair a
pregar grandes coisas, espertar as almas, chamar os corações à Igreja, e
renovar o gênero humano. Entre todos os apóstolos, amava principalmente São
Paulo.
Não sei se o leitor é da minha opinião; eu
cuido que se pode avaliar um homem pelas suas simpatias históricas; tu serás
mais ou menos da família dos personagens que amares deveras. Aplico assim
aquela lei de Helvetius: "O grau de espírito que nos deleita dá a medida
exata do grau de espírito que possuímos". No nosso caso, ao menos, a regra
não falhou. Teófilo amava São Paulo, adorava-o, estudava-o dia e noite, parecia
viver daquele converso que ia de cidade em cidade, à custa de um ofício
mecânico, espalhando a boa nova aos homens. Nem tinha somente esse modelo,
tinha mais dois: Hildebrando e Loiola. Daqui podeis concluir que nasceu com a
fibra da peleja e do apostolado. Era um faminto de ideal e criação, olhando
todas as coisas correntes por cima da cabeça do século. Na opinião de um
cônego, que lá ia ao seminário, o amor dos dois modelos últimos temperava o que
pudesse haver perigoso em relação ao primeiro.
— Não vá o senhor cair no excesso e no
exclusivo, disse-lhe um dia com brandura; não pareça que, exaltando somente a
Paulo, intenta diminuir Pedro. A igreja, que os comemora ao lado um do outro,
meteu-os ambos no Credo; mas veneremos Paulo e obedeçamos a Pedro. Super hanc petram...
Os seminaristas gostavam do Teófilo,
principalmente três, um Vasconcelos, um Soares e um Veloso, todos excelentes
retóricos. Eram também bons rapazes, alegres por natureza, graves por
necessidade e ambiciosos. Vasconcelos jurava que seria bispo; Soares
contentava-se com algum grande cargo; Veloso cobiçava as meias roxas de cônego
e um púlpito. Teófilo tentou repartir com eles o pão místico dos seus sonhos,
mas reconheceu depressa que era manjar leve ou pesado demais, e passou a
devorá-lo sozinho. Até aqui o padre; vamos agora à dama.
IV
Agora a dama. No momento em que os vi falar
baixinho na igreja, Eulália contava trinta e oito anos de idade. Juro-lhes que
era ainda bonita. Não era pobre; os pais deixaram-lhe alguma coisa. Nem casada;
recusou cinco ou seis pretendentes.
Este ponto nunca foi entendido pelas amigas.
Nenhuma delas era capaz de repelir um noivo. Creio até que não pediam outra
coisa, quando rezavam antes de entrar na cama, e ao domingo, à missa, no momento
de levantar a Deus. Por que é que Eulália recusava-os todos? Vou dizer desde já
o que soube depois. Supuseram-lhe, a princípio, um simples desdém, — nariz
torcido, dizia uma delas; — mas, no fim da terceira recusa, inclinaram-se a
crer que havia namoro encoberto, e esta explicação prevaleceu. A própria mãe de
Eulália não aceitou outra. Não lhe importaram as primeiras recusas; mas,
repetindo-se, ela começou a assustar-se. Um dia, voltando de um casamento,
perguntou à filha, no carro em que vinham, se não se lembrava que tinha de
ficar só.
— Ficar só?
— Sim, um dia hei de morrer. Por ora tudo são
flores; cá estou para governar a casa; e você é só ler, cismar, tocar e
brincar; mas eu tenho de morrer, Eulália, e você tem de ficar só...
Eulália apertou-lhe muito a mão, sem poder
dizer palavra. Nunca pensara na morte da mãe; perdê-la era perder metade de si
mesma. Na expansão de momento, a mãe atreveu-se a perguntar-lhe se amava alguém
e não era correspondida. Eulália respondeu que não. Não simpatizara com os
candidatos. A boa velha abanou a cabeça; falou dos vinte e sete anos da filha,
procurou aterrá-la com os trinta, disse-lhe que, se nem todos os noivos a
mereciam igualmente, alguns eram dignos de ser aceitos, e que importava a falta
de amor? O amor conjugal podia ser assim mesmo; podia nascer depois, como um
fruto da convivência. Conhecera pessoas que se casaram por simples interesse de
família e acabaram amando-se muito. Esperar uma grande paixão para casar era
arriscar-se a morrer esperando.
— Pois sim, mamãe, deixe estar...
E, reclinando a cabeça, fechou um pouco os
olhos para espiar alguém, para ver o namorado encoberto, que não era só
encoberto, mas também e principalmente impalpável. Concordo que isto agora é
obscuro; não tenho dúvida em dizer que entramos em pleno sonho.
Eulália era uma esquisita, para usarmos a
linguagem da mãe, ou romanesca, para empregarmos a definição das amigas. Tinha,
em verdade, uma singular organização. Saiu ao pai. O pai nascera com o amor do
enigmático, do arriscado e do obscuro; morreu quando aparelhava uma expedição
para ir à Bahia descobrir a "cidade abandonada". Eulália recebeu essa
herança moral, modificada ou agravada pela natureza feminil. Nela dominava
principalmente a contemplação. Era na cabeça que ela descobria as cidades
abandonadas. Tinha os olhos dispostos de maneira que não podiam apanhar
integralmente os contornos da vida. Começou idealizando as coisas, e, se não
acabou negando-as, é certo que o sentimento da realidade esgarçou-se-lhe até
chegar à transparência fina em que o tecido parece confundir-se com o ar.
Aos dezoito anos, recusou o primeiro
casamento. A razão é que esperava outro, um marido extraordinário, que ela viu
e conversou, em sonho ou alucinação, a mais radiosa figura do universo, a mais
sublime e rara, uma criatura em que não havia falha ou quebra, verdadeira
gramática sem irregularidades, pura língua sem solecismos.
Perdão, interrompe-me uma senhora, esse noivo
não é obra exclusiva de Eulália, é o marido de todas as virgens de dezessete anos.
Perdão, digo-lhe eu, há uma diferença entre Eulália e as outras, é que as
outras trocam finalmente o original esperado por uma cópia gravada, antes ou
depois da letra, e às vezes por uma simples fotografia ou litografia, ao passo
que Eulália continuou a esperar o painel autêntico. Vinham as gravuras, vinham
as litografias, algumas muito bem acabadas, obra de artista e grande artista,
mas para ela traziam o defeito de ser cópias. Tinha fome e sede de
originalidade. A vida comum parecia-lhe uma cópia eterna. As pessoas do seu
conhecimento caprichavam em repetir as ideias umas das outras, com iguais
palavras, e às vezes sem diferente inflexão, à semelhança do vestuário que
usavam, e que era do mesmo gosto e feitio. Se ela visse alvejar na rua um
turbante mourisco ou flutuar um penacho, pode ser que perdoasse o resto; mas
nada, coisa nenhuma, uma constante uniformidade de ideias e coletes. Não era
outro o pecado mortal das coisas. Mas, como tinha a faculdade de viver tudo o
que sonhava, continuou a esperar uma vida nova e um marido único.
Enquanto esperava, as outras iam casando.
Assim perdeu ela as três principais amigas: Júlia Costinha, Josefa e Mariana.
Viu-as todas casadas, viu-as mães, a princípio de um filho, depois de dois, de
quatro e de cinco. Visitava-as, assistia ao viver delas, sereno e alegre,
medíocre, vulgar, sem sonhos nem quedas, mais ou menos feliz. Assim se passaram
os anos; assim chegou aos trinta, aos trinta e três, aos trinta e cinco, e
finalmente aos trinta e oito em que a vemos na igreja, conversando com o padre
Teófilo.
V
Naquele dia mandara dizer uma missa por alma
da mãe, que morrera um ano antes. Não convidou ninguém: foi ouvi-la sozinha.
Ouviu-a, rezou, depois sentou-se no banco.
Eu, depois de ajudar à missa, voltei para a
sacristia, e vi ali o padre Teófilo, que viera da roça duas semanas antes e
andava à cata de alguma missa para comer. Parece que ele ouviu do outro
sacristão ou do mesmo padre oficiante o nome da pessoa sufragada; viu que era o
da tia e correu à igreja, onde ainda achou a prima no banco. Sentou-se ao pé
dela, esquecido do lugar e das posições, e falaram naturalmente de si mesmos.
Não se viam desde longos anos. Teófilo visitara-as logo depois de ordenado
padre; mas saiu para o interior e nunca mais soube delas, nem elas dele.
Já disse que não pude ouvir nada. Estiveram
assim perto de meia hora. O coadjutor veio espiar, deu com eles e ficou
justamente escandalizado. A notícia do caso chegou, dois dias depois, ao bispo.
Teófilo recebeu uma advertência amiga, subiu à Conceição e explicou tudo: era
uma prima, a quem não via desde muito. O padre coadjutor, quando soube da
explicação, exclamou com muito critério que o ser parente não lhe trocava o
sexo nem supria o escândalo.
Entretanto, como eu tinha sido companheiro do
Teófilo no seminário e gostava dele, defendi-o com muito calor e fiz chegar o
meu testemunho ao Palácio da Conceição. Ele ficou-me grato por isso, e daí veio
a intimidade de nossas relações. Como os dois primos podiam ver-se em casa,
Teófilo passou a visitá-la, e ela a recebê-lo com muito prazer. No fim de oito
dias, recebeu-me também; ao cabo de duas semanas era eu um dos seus familiares.
Dois patrícios que se encontram em plaga
estrangeira e podem finalmente trocar as palavras mamadas na infância não
sentem maior alvoroço do que estes dois primos, que eram mais que primos:
moralmente eram gêmeos. Ele contou-lhe a vida e, como os acontecimentos
acarretassem os sentimentos, ela olhou para dentro da alma do primo e achou que
era a sua mesma alma e que, em substância, a vida de ambos era a mesma. A
diferença é que uma esperou quieta o que o outro andou buscando por montes e
vales; no mais, igual equívoco, igual conflito com a realidade, idêntico
diálogo de árabe e japonês.
— Tudo o que me cerca é trivial e chocho,
dizia-lhe ele.
Com efeito, gastara o aço da mocidade em
divulgar uma concepção que ninguém lhe entendeu. Enquanto os três amigos mais
chegados do seminário passavam adiante, trabalhando e servindo, afinados pela
nota do século, Veloso cônego e pregador, Soares com uma grande vigararia,
Vasconcelos a caminho de bispar, ele Teófilo era o mesmo apóstolo e místico dos
primeiros anos, em plena aurora cristã e metafísica. Vivia miseravelmente,
costeando a fome, pão magro e batina surrada; tinha instantes e horas de
tristeza e de abatimento: confessou-os à prima...
— Também o senhor? perguntou ela.
E as suas mãos apertaram-se com energia:
entendiam-se. Não tendo achado um astro na loja de um relojoeiro, a culpa era
do relojoeiro; tal era a lógica de ambos. Olharam-se com a simpatia de
náufragos, — náufragos e não desenganados, — porque não o eram. Crusoé, na ilha
deserta, inventa e trabalha; eles não; lançados à ilha, estendiam os olhos para
o mar ilimitado, esperando a águia que viria buscá-los com as suas grandes asas
abertas. Uma era a eterna noiva sem noivo, outro o eterno profeta sem Israel;
ambos punidos e obstinados.
Já disse que Eulália era ainda bonita. Resta
dizer que o padre Teófilo, com quarenta e dois anos, tinha os cabelos grisalhos
e as feições cansadas; as mãos não possuíam nem a maciez nem o aroma da
sacristia, eram magras e calosas e cheiravam ao mato. Os olhos é que
conservavam o fogo antigo, era por ali que a mocidade interior falava cá para
fora, e força é dizer que eles valiam só por si todo o resto.
As visitas amiudaram-se. Afinal íamos passar
ali as tardes e as noites e jantar aos domingos. A convivência produziu dois
efeitos, e até três. O primeiro foi que os dois primos, frequentando-se, deram
força e vida um ao outro; relevem-me esta expressão familiar: — fizeram um
pique-nique de ilusões. O segundo é que Eulália, cansada de esperar um noivo
humano, volveu os olhos para o noivo divino e, assim como ao primo viera a
ambição de São Paulo, veio-lhe a ela a de Santa Teresa. O terceiro efeito é o
que o leitor já adivinhou.
Já adivinhou. O terceiro foi o caminho de
Damasco, — um caminho às avessas, porque a voz não baixou do céu, mas subiu da
terra; não chamava a pregar Deus, mas a pregar o homem. Sem metáfora,
amavam-se. Outra diferença é que a vocação aqui não foi súbita como em relação
ao apóstolo das gentes; foi vagarosa, muito vagarosa, cochichada, insinuada,
bafejada pelas asas da pomba mística.
Note-se que a fama precedeu ao amor.
Sussurrava-se desde muito que as visitas do padre eram menos de confessor que
de pecador. Era mentira; eu juro que era mentira. Via-os, acompanhava-os,
estudava esses dois temperamentos tão espirituais, tão cheios de si mesmos, que
nem sabiam da fama, nem cogitavam no perigo da aparência. Um dia vi-lhes os
primeiros sinais do amor. Será o que quiserem, uma paixão quarentona, rosa
outoniça e pálida, mas era, existia, crescia, ia tomá-los inteiramente. Pensei
em avisar o padre, não por mim, mas por ele mesmo; mas era difícil, e talvez
perigoso. Demais, eu era e sou gastrônomo e psicólogo; avisá-lo era botar fora
uma fina matéria de estudo e perder os jantares dominicais. A psicologia, ao
menos, merecia um sacrifício: calei-me.
Calei-me à toa. O que eu não quis dizer,
publicou-o o coração de ambos. Se o leitor me leu de corrida, conclui por si
mesmo a anedota, conjugando os dois primos; mas, se me leu devagar, adivinha o
que sucedeu. Os dois místicos recuaram; não tiveram horror um do outro nem de
si mesmos, porque essa sensação estava excluída de ambos, mas recuaram,
agitados de medo e de desejo.
— Volto para a roça, disse-me o padre.
— Mas por quê?
— Volto para a roça.
Voltou para a roça e nunca mais cá veio. Ela, é claro que tinha achado
o marido que esperava, mas saiu-lhe tão impossível como a vida que sonhou. Eu,
gastrônomo e psicólogo, continuei a ir jantar com Eulália aos domingos. Considero que alguma coisa deve
subsistir debaixo do sol, ou o amor ou o jantar, se é certo, como quer
Schiller, que o amor e a fome governam este mundo.
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