Manoel de Oliveira
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
A história da mágoa que o levou a
uma semiloucura, ele me contou muitas vezes de um modo inalterável. Cabinda de
nação, ele viera muito menino da Costa d’África e um português hortelão o
comprara e lhe ensinara o ofício de plantar couves.
O seu senhor tinha uma grande
horta pelas bandas da rua do Pinheiro, no Catete, e logo que o pobre Manoel —
era esse o nome do meu cabinda — cresceu um pouco, pela manhã, com verduras
cuidadosamente contadas pelo senhor, ele saía para o Catete e Botafogo a vender
couves, repolhos, cenouras etc. Levavam as verduras e legumes preços marcados,
mas ele as podia vender mais caro, ficando para si o excedente. Durante anos,
Manoel de Oliveira, pois, como era costume, veio a usar sobrenome do senhor,
fez ele isso, ao sol e à chuva, juntando nas mãos do senhor os seus lucros
diários. Quando chegou a certa quantia estipulada, o Oliveira, dono da horta,
deu-lhe a sua carta de alforria.
Não sabia da companhia do seu
antigo senhor e com ele continuava a trabalhar, mediante salário.
Habituado a economizar,
continuava a fazê-lo, mas não sem que, de quando em quando, comprasse o seu
“gasparinho”. Um belo dia, a sorte bafejou-o e a loteria deu-lhe um conto de
réis, que ele guardou nas mãos do patrão.
Por esse tempo, veio Manoel de
Oliveira a conhecer uma pretinha escrava que acudia pelo nome de Maria Paulina.
A comborça interessou-o e ele, à vista das condições de fortuna em que estava,
resolveu agir os preliminares indispensáveis, tomar estado. Libertou a rapariga,
comprou uns móveis toscos, alugou um tugúrio e foi morar com a Maria Paulina.
As coisas correram bem até certo tempo. De manhã, lá ia Manoel de Oliveira para
a horta, apanhava o tabuleiro e corria à freguesia.
Aí, pelas onze horas, meio-dia,
passava pela sua casa, almoçava com a Maria Paulina, voltava para a horta, após
o almoço, a fim de molhar os canteiros do patrão.
Assim, ia correndo a sua vida,
quando ele teve a honra, na sua humildade, de ser objeto de drama. Maria
Paulina fugiu...
O fato abalou o pobre preto em
todo o seu ser. Ficou meio pateta, deu em falar sozinho, abandonou a horta e
deixou-se errar a esmo pela cidade, dormindo aqui e ali.
A polícia apanhou-o e meteu-o no
asilo de mendigos. Daí foi enviado para a ilha do Governador e internado numa
espécie de colônia de pedintes que o governo imperial fundou nos seus últimos
anos de existência.
Vindo a República foram essas
colônias, pois eram duas, transformadas nas atuais de alienados.
Meu pai foi, em 1890, nomeado
para um pequeno emprego delas. Fomos todos morar lá e foi então que eu conheci
Manoel de Oliveira.
Sóbrio, trabalhador e
disciplinado, o velho preto cabinda não sofria nenhum constrangimento. Era até
encarregado de uma seção importante que superintendia com o mais acrisolado
devotamento. Manoel dirigia a ceva dos porcos e, para eles, cozinhava.
Vivia independente de toda e
qualquer vigilância, debaixo do terreiro anexo ao chiqueiro, vigiando a
caldeirada dos suínos, resmungando e balbuciando a sua dor eterna.
Muito menino — eu tinha nove anos
—, apesar de não ser muito regular, corria toda a colônia e dependências.
O edifício principal era um
antigo convento de beneditinos. A igreja dividia duas alas desiguais; e tudo
olhava o sol levante. A ala direita era quase toda ela guarnecida de largas
janelas em arco pleno; mas a esquerda era mesquinha e sem interesse.
Tendo passado a minha primeira
meninice na cidade, aqueles aspectos eram para mim inteiramente raros. As
árvores, os pássaros, cavalos, porcos, bois, enfim, todo aquele aspecto
rústico, realçado pelo mar próximo, enchia minha meninice de sonho e
curiosidade.
O velho Oliveira dava-me sempre
mimos. Era uma fruta, era um bodoque, era uma batata-doce assada no braseiro do
seu fogão, ele sempre tinha um presente para mim. Eu o amei desde aí e, quando,
há anos, o levei para o cemitério de Inhaúma, foi como se enterrassem muitas
esperanças da minha meninice e a adolescência, na sua cova...
Apesar dos rigores
regulamentares, ele ia até nossa casa levar isso ou aquilo; e às vezes, lá se
demorava, fazendo este ou aquele serviço.
Por fim, o médico deu-lhe alta e
ele veio morar definitivamente conosco. Pude então conhecê-lo melhor e apreciar
a grandeza de sua alma e a singularidade de suas opiniões.
Coisa curiosa! Oliveira tinha em
grande conta a sua dolorosa Costa d’África.
Se eu motejava dela, o meu
humilde amigo dizia-me:
— Seu “Lifonso”, o senhor diz que
lá não há quem saiba ler. Pois olhe: os doutores daqui, quando querem saber
melhor, vão estudar lá.
Além de ter este singular e geral
orgulho pela África, ele tinha um particular pela “nação”. Para ele, cabinda
era a nacionalidade mais perfeita e superior da Terra. Nem todo negro podia ser
cabinda.
— Manoel, Nicolau é cabinda?
— Qual o quê! Aquele negro
feiticeiro por ser cabinda; aquilo é congo ou boca de benguela.
As suas opiniões políticas eram
curiosas. Tinha, como todo o nosso homem do povo, uma grande veneração pelo
imperador, até exagerada.
Ele me dizia:
— Seu Lifonso: não houve no mundo
imperador como o daqui; todas as nações tinham inveja do Brasil por causa dele.
Entretanto, e apesar de não
gostar da República, ele informava que o governo de sua terra era melhor que o
daqui, porque lá havia, ao mesmo tempo, imperador e presidente da República.
O seu grande amor era a horta. O
seu antigo senhor tinha-lhe inventado esse gesto que não o largou até a hora da
morte.
Havia muita coisa de singular e
curioso nessa pobre alma de negro que me acompanhou durante quase trinta anos,
através de todas as vicissitudes.
Devo-lhe muito de amor e
devotamento.
Conto um pequeno fato. Quando
minha família atravessou uma crise aguda; quando veio a nossa tragédia
doméstica, Manoel de Oliveira chegou-se a mim e emprestou-me cem mil-réis que
economizara.
Muitos outros fatos se passaram
entre nós dessa natureza, e, agora, que o desalento me invade, não posso
relembrar essa figura original de negro, sem considerar que o que faz o encanto
da vida, mais do que qualquer outra coisa, é a candura dos simples e a
resignação dos humildes...
chorei
ResponderExcluir