Maniápolis
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Éramos três a conversar: eu, o
Beltrando e o Antunes. Este último, um velho rapaz, grande de coração, mas
medíocre, que nas nossas conversas figura como o elemento neutro indispensável
à eletrição constante de uma conversa que se preza. O Beltrando.
Dizia o Beltrando:
— Sob e sobre um frágil mundo
humano talvez existam outros muitos, e pode acontecer até que sociedades
desconhecidas coexistam com a nossa, cruzando-se o caminho dela, baralhando-se
com o seu destino...
— Como não as vemos, não as
sentimos? — objetou ainda o Antunes.
— Não é razão — retruquei eu. — A
evidência fornecida pelos sentidos muitas vezes é falível. Mergulhando uma vara
no mar, os olhos afirmam-na quebrada, entretanto?... Há quem afirme que as
formigas não se apercebem da nossa existência.
— Por falar nisso, vou contar uma
história a vosmessê — emendou o Beltrando. Narrou então o seguinte:
Certa manhã, não sei como,
despertei fora do meu quarto e em lugar desconhecido. Não estava sonhando;
certifiquei-me bem disso; abri desmascaradamente os olhos, vi o sol, as
árvores, as casas pela janela aberta do aposento estranho; palpei
cuidadosamente os meus membros; dei murros na cara e largas passadas pelo tal
quarto. Fiz tudo, enfim, que me pudesse dar a máxima certeza de que estava
completamente acordado. Como me parecesse que a hora estava adiantada, vesti-me
apressadamente e saí ainda abotoando alguns botões do colete. Logo ao dar-me
fora de portas, o aspecto da rua intimidou-me. As casas eram baixas,
excepcionalmente baixas; algumas mesmo tinham um metro de altura. Demais, não
era calçada, em franco contraste com aquela em que morava, perfeitamente
revestida de um lençol de asfalto liso e miúdo.
Não tinha passeios de espécie
alguma e no centro duas ou três filas paralelas de pedregulhos ligeiramente espacejados,
pontiagudos, erguiam-se um pouco acima do solo barrento, como se fossem renques
de troncos apontados de anos, decepados.
Tinha dado algumas centenas de
passos em tão extravagante rua, quando avistei distante um que pulava de um
pedregulho para outro em grande desenvoltura. Avançava rapidamente; às vezes
oscilava, pendulando para esquerda, para direita, justamente como os
equilibristas do circo. Aproximou-se. Eu lhe dirigi a palavra:
— É favor dizer-me que horas são?
— É estrangeiro?
A pergunta atarantava-me, eu
tinha dormido no meu país, na minha rua, no meu quarto... Olhei as casas
baixinhas, as pedras ao jeito de monumentos bretões, e respondi:
— Creio... sim.
— Logo vi; o modo de perguntar
não é o nosso; a sintaxe é errônea. Aqui diríamos — São horas quê?
Depois eu tive ocasião de reparar
que a língua daquela região era mais ou menos a nossa, diferente dela somente
no modo de agrupar as palavras.
Lá não era admitido dizer — Adão
foi feito do barro que Deus amassou; o correto seria Adão barro feito do Deus
amassou que. Observara-se uma determinada hierarquia de palavras:
Os substantivos, em primeiro,
adjetivos, particípios, estes em seguida, afinal as partículas de qualquer
natureza. Ideal!
O desconhecido insistiu.
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