Manel Capineiro
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Quem conhece a Estrada Real de
Santa Cruz? Pouca gente do Rio de Janeiro. Nós todos vivemos tão presos à
avenida, tão adstritos à Rua do Ouvidor, que pouco ou nada sabemos desse nosso
vasto Rio, a não ser as coisas clássicas da Tijuca, da Gávea e do Corcovado.
Um nome tão sincero, tão
altissonante, batiza, entretanto, uma pobre azinhaga, aqui mais larga, ali mais
estreita, povoada, a espaços, de pobres casas de gente pobre, às vezes, uma
chácara mais assim ali, mas tendo ela em todo o seu trajeto até Cascadura e
mesmo além, um forte aspecto de tristeza, de pobreza e mesmo de miséria.
Falta-lhe um debrum de verdura, de árvores, de jardins. O carvoeiro e o
lenhador de há muito tiraram os restos de matas que deviam bordá-la; e, hoje, é
com alegria que se vê, de onde em onde, algumas mangueiras majestosas a quebrar
a monotonia, a esterilidade decorativa de imensos capinzais sem limites.
Essa estrada real, estrada de
rei, é atualmente uma estrada de pobres; e as velhas casas de fazenda, ao alto
das meias-laranjas, não escaparam ao retalho para casas de cômodos.
Eu a vejo todo dia de manhã, ao
sair de casa e é minha admiração apreciar a intensidade de sua vida, a
prestança do carvoeiro, em servir a minha vasta cidade.
São carvoeiros com as suas
carroças pejadas que passam; são os carros de bois cheios de capim que vão
vencendo os atoleiros e os "caldeirões", as tropas e essa espécie de
vagabundos rurais que fogem à rua urbana com horror.
Vejo-a no Capão do Bispo, na sua
desolação e no seu trabalho; mas vejo também dali os Órgãos azuis, dos quais
toda a hora se espera que ergam aos céus um longo e acendrado hino de louvor e
de glória.
Como se fosse mesmo uma estrada
de lugares afastados, ela tem também seus "pousos". O trajeto dos
capineiros, dos carvoeiros, dos tropeiros é longo e pede descanso e boas
"pingas" pelo caminho.
Ali no "Capão", há o
armazém "Duas Américas" em que os transeuntes param, conversam e
bebem.
Para ali o "Tutu", um
carvoeiro das bandas de Irajá, mulato quase preto, ativo, que aceita e endossa
letras sem saber ler nem escrever. É um espécime do que podemos dar de
trabalho, de iniciativa e de vigor. Não há dia em que ele não desça com a sua
carroça carregada de carvão e não há dia em que ele não volte com ela,
carregada de alfafa, de farelo, de milho, para os seus muares.
Também vem ter ao armazém o
Senhor Antônio do Açougue, um ilhéu falador, bondoso, cuja maior parte da vida
se ocupou em ser carniceiro. Lá se encontra também o "Parafuso", um
preto, domador de cavalos e alveitar estimado. Todos eles discutem, todos eles
comentam a crise, quando não tratam estreitamente dos seus negócios.
Passa pelas portas da venda uma
singular rapariga. É branca e de boas feições. Notei-lhe o cuidado em ter
sempre um vestido por dia, observando ao mesmo tempo que eles eram feitos de
velhas roupas. Todas as manhãs, ela vai não sei onde e traz habitualmente na
mão direita um buquê feito de miseráveis flores silvestres. Perguntei ao dono
quem era. Uma vagabunda, disse-me ele.
"Tutu" está sempre
ocupado com a moléstia dos seus muares. O "Garoto" está mancando de
uma perna e a "Jupira" puxa de um dos quartos. O " Seu"
Antônio do Açougue, assim chamado porque já possuiu um muito tempo, conta a sua
vida, as suas perdas de dinheiro, e o desgosto de não ter mais açougue. Não se
conforma absolutamente com esse negócio de vender leite; o seu destino é talhar
carne.
Outro que lá vai é o Manel
Capineiro. Mora na redondeza e a sua vida se faz no capinzal, em cujo seio
vive, a vigiá-lo dia e noite dos ladrões, pois os há, mesmo de feixes de capim.
O "Capineiro" colhe o capim à tarde, enche as carroças; e, pela
madrugada, sai com estas a entregá-lo à freguesia. Um companheiro fica na
choupana no meio do vasto capinzal a vigiá-lo, e ele vai carreando uma das
carroças, tocando com o guião de leve os seus dois bois — "Estrela" e
"Moreno".
Manel os ama tenazmente e evita o
mais possível feri-los com a farpa que lhes dá a direção requerida.
Manel Capineiro é português e não
esconde as saudades que tem do seu Portugal, do seu caldo de unto, das suas
festanças aldeãs, das suas lutas a varapau; mas se conforma com a vida atual e
mesmo não se queixa das cobras que abundam no capinzal.
— Ai! As cobras!... Ontem dei com
uma, mas matei-a.
Está aí um estrangeiro que não
implica com os nossos ofídios o que deve agradar aos nossos compatriotas, que
se indignam com essa implicância.
Ele e os bois vivem em verdadeira
comunhão. Os bois são negros, de grandes chifres, tendo o "Estrela"
uma mancha branca na testa, que lhe deu o nome.
Nas horas do ócio, Manel vem à
venda conversar, mas logo que olha o relógio e vê que é hora da ração, abandona
tudo e vai ao encontro daquelas suas duas criaturas, que tão abnegadamente lhe
ajudam a viver.
Os seus carrapatos lhe dão
cuidado; as suas "manqueiras" também. Não sei bem a que propósito me
disse um dia:
— Senhor fulano, se não fosse
eles, eu não saberia como iria viver. Eles são o meu pão.
Imaginem que desastre não foi na
sua vida, a perda dos seus dois animais de tiro. Ela se verificou em condições
bem lamentáveis. Manel Capineiro saiu de madrugada, como de hábito, com o seu
carro de capim. Tomou a estrada pra riba, dobrou a Rua José dos Reis e tratou
de atravessar a linha da estrada de ferro, na cancela dessa rua. Fosse a
máquina, fosse um descuido do guarda, uma imprudência de Manel, um comboio, um
expresso, implacável como a fatalidade, inflexível, inexorável, veio-lhe em
cima do carro e lhe trucidou os bois. O capineiro, diante dos despojos
sangrentos do "Estrela" e do "Moreno", diante daquela quase
ruína de sua vida, chorou como se chorasse um filho uma mãe e exclamou cheio de
pesar, de saudade, de desespero:
— Ai mô gado! Antes fora eu!...
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