11/19/2017

Mágoa que rala (Conto), de Lima Barreto


Mágoa que rala
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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CAPÍTULO 1

Dos chefes de Estado que tem tido o Brasil, o que mais amou, e muito profundamente, o Rio de Janeiro, foi sem dúvida, Dom João VI; e a população da cidade e arredores ainda tem na memória, nos dias contemporâneos, mais de um século após a sua chegada a estas plagas, a lembrança do seu nome. Nas freguesias afastadas do antigo Município Neutro, que conservam até hoje uma forte feição roceira, a recordação do rei bondoso e bonachão é mais viva e o seu nome é pronunciado pela gente mais humilde de tais lugarejos, sofrendo uma abreviatura singular — "Dom Sexto". Os que o precederam e nos governaram como vice-reis e governadores gerais portaram-se na capital da ilimitada colônia portuguesa como simples funcionários, executores de ordens dos reis, ministros, conselhos, mesas disto e daquilo, sem olhar sequer as árvores, o céu, as cenas que os cercavam e muito menos a gente da terra. Acredito que, com a sua empáfia de fidalgos avariados, muitos deles duvidassem da humanidade dessa última e se aborrecessem com a natureza local, pululante e grandiosa. Não se pareciam com as coisas semelhantes de Portugal e não se podiam medir pelo estalão delas; não prestavam, portanto. A gente, para eles, um pouco mais que animais, eram uns negros à-toa; e a natureza, um flagelo de mosquitos e cascavéis, sem possuir uma proporcionalidade com o homem, como a de Portugal, que parecia um jardim, feito para o homem. Mesmo os nossos poetas mais velhos nunca entenderam a nossa vegetação, os nossos mares, os nossos rios; não compreendiam as nossas coisas naturais e nunca lhes pegaram a alma, o substractum; e se queriam dizer alguma coisa sobre ela caiam no lugar-comum amplificado e no encadeamento de adjetivos grandiloquentes, quando não voltavam para a sua arcadiana e livresca floresta de álamos, plátanos, mirtos, com vagabundíssimas ninfas e faunos idiotas, segundo a retórica e a poética didáticas das suas cerebrinas escolas, cheias de pomposos tropos, de rapé, de latim, e regras de catecismo literário.

Se, nos poetas, o sentimento da natureza era esse de paisagens de poetas latinos, numa diluição já tão exaustiva que fazia que os autores do decalque se parecessem todos uns com os outros, como se poderia exigir de funcionários, fidalgos limitados, na sua própria prosápia, uma maior força original de sentimento diante dos novos quadros naturais que a luminosa Guanabara lhes dava, cercando as águas de mercúrio de suas harmoniosas enseadas?

Dom João VI, porém, nobre de alta linhagem e príncipe do século de Rousseau, mal enfronhado na literatura palerma dos árcades, dos desembargadores e repentistas, estava mais apto para senti-los de primeira mão, diretamente. Podia ele, perfeitamente, amar o passaredo alegre na plumagem e triste no canto, a gravidade alpestre de cenários severos, os morros cobertos de árvores de insondável verde-escuro, que descem pelas encostas amarradas umas às outras, pelos cipós e trepadeiras, até o mar fosco que muge ao sopé deles.

O sucesso de Rousseau entre a alta fidalguia do seu tempo foi um estranho acontecimento que hoje surpreende a todos nós, tanto mais que não se passa uma geração e vem ele a ser amaldiçoado pelos filhos e netos dos que o festejaram, como sendo um dos autores do 89 e do rubro 93.

Antes disso foi ele o enfant gâté da grande nobreza e da grande burguesia que àquela se assemelhava nos gestos, nos gostos, nos vestuários, em tudo, enfim, até no modo de assinar o nome.

Depois dos seus primeiros sucessos musicais e literários, mesmo antes com a sua mãe-amante, Madame de Warens, Jean-Jacques foi o mimo, o autor predileto da alta nobreza e da grande burguesia, que esperavam a guilhotina da Grande Revolução lendo as suas declamações e objurgatórias contra a civilização. Sempre lido por elas, sempre por elas agraciado e socorrido, ambas sorveram com lágrimas nos olhos as palavras do genebrino, cujas obras deviam inspirar e sustentar o ânimo do sumo pontífice da guilhotina — Robespierre. E Rousseau, nas festanças e bailes do rico financeiro Dupin, avô ou coisa parecida de George Sand que, numa edição das Confessions, prefaciada por ela, se confessa fiel ao espírito do comensal de seu avô, naquele lacustre castelo de Chenonceaux, erguido a capricho sobre as águas do Cher; é Mme. d'Épinay, é a marechala de Luxembourg, é o marquês de Girardin, é o príncipe de Conti, é Frederico II, é o marechal, governador de Neuchâtel, em nome deste último, e tantos outros magnatas do tempo.

Dom João VI devia tê-lo lido e, sendo desgraçado três vezes, como filho, como marido e como rei, havia de encontrar a sua alma bem aberta para lhe receber as lições e compreender de modo mais amplo a natureza, de modo a ser solicitado para um convívio mais íntimo com as árvores, com os regatos, com as cascatas, fossem elas civilizadas, bárbaras ou selvagens.

Fugindo do seu reino, trazendo consigo a mãe louca, que pedia, ao embarcar em Lisboa, andassem mais devagar, para não parecer que fugiam; obrigado pelo seu nascimento e as condições particulares do seu estado, a suportar uma mulher que perdera toda a conveniência, todo o pudor e todo o respeito a si própria, nos seus desregramentos sexuais — o pobre rei, gordo, glutão, tido como estúpido, desconfiado da sua paternidade oficial, só encontrava na música e nos aspectos naturais derivativos para a sua muito humana necessidade de efusões sentimentais.

Na sua vida de grandes mágoas e profundas dores, o seu desembarque no Rio com certeza foi para a sua alma uma aleluia. A augusta beleza do cenário natural, a sua originalidade imprevista e grandiosa — sem atingir o incompreensível do desmedido e do colossal, a efusão filial de toda uma bizarra população de brancos, índios, negros e mulatos, quase toda a chorar, provocaram muito naturalmente a simpatia, fizeram-lhe logo brotar no coração uma grande afeição pelo lugar, animaram-no novamente a viver, sentir-se rei de fato — Rei — o chefe aceito voluntariamente, como pai e senhora, por todos aqueles súditos longínquos que o viam pela primeira vez.

Dom João, diz Oliveira Lima, caminha sereno, com a melancolia a fundir-se ao calor da simpatia que o estava acolhendo.

Para bem ver a terra, então, ele se esqueceu das quinze mil pessoas que o acompanhavam desde as margens do Tejo, daqueles quinze mil "desembargadores e repentistas, peraltas e sécias, frades, e freiras, monsenhores e castrados — enxame de parasitas imundos", como diz Oliveira Martins, que aportava em São Sebastião para esvair quotidianamente a Ucharia Real e enchê-la em troca de zumbidos de intrigas, mexericos e alcovitices.

E o rei pagou bem o carinho filial com que o Rio de janeiro o recebeu; foi grato. Tratou logo de arranjar uma nobreza da terra, que ele mesmo dizia não ser "nobreza" mas "tafetá"; protegeu José Maurício e autorizou que a sua desgraciosa mas sagrada figura de rei, de nobre da mais alta e pura fidalguia, apesar da filha do Barbadão, fosse pintada na tela por um pobre pintor mulato, José Leandro, que nunca vira a Itália, nem museus, nem academias, e talvez até nem tivesse mestres.

Mas, não foi só aí que mostrou a sua gratidão para os afagos recebidos por ele, na sociedade da Guanabara; não o foi também, unicamente, nas instituições de ensino e outras que criou; foi para a terra que o seu agradecimento se voltou, foi para a sua beleza de que se enamorou, onde quis deixar as marcas e o penhor do grande amor que ela lhe inspirara.

De fato, não há lugar no Rio de janeiro que não tenha uma lembrança do simplório rei erisipeloso e gordo. De Santa Cruz à Ilha do Governador, numa distância de vinte léguas, as há por toda parte; da ilha do Governador à Gávea, também; e no centro da cidade são inúmeras.

Com as más entradas daqueles tempos, talvez pouco piores que as de hoje, é incrível como esse homem, tido por preguiçoso, indolente, vadio, vencesse tão grandes distâncias, andando de um lado para o outro, só para gozar os pinturescos e pitorescos recantos de sua improvisada capital ultramarina.

Hoje, com bondes elétricos, automóveis e o mais, os nossos grandes burgueses, alguns, dados todos os descontos, mais ricos do que o príncipe regente, só sabem amontoar-se em Botafogo, em palacetes de um gosto afetado, pedras falsas de arquitetura, com as tabuletas idiotas de "vilas" disto ou daquilo.

E não era só o rei; a própria rainha foi-se para Botafogo, hoje "melindroso" e "encantador" mas, naquele tempo, roça perfeita; Von Langsdorff, cônsul geral da Rússia, tinha uma fazenda na raiz da serra, onde cultivava em larga escala a mandioca; Chamberlain, também cônsul-geral, mas da Inglaterra, era proprietário de uma chácara em Santa Tereza, para caçar borboletas e plantar café; um emigrado político, o conde de Hogendrop foi morar como simples roceiro da terra, nas Águas Férreas; e o pintor Taunay, membro do Instituto de França, que veio com a missão artística de Lebreton, foi residir com toda a família, nas proximidades da cascatinha da Tijuca.

A nossa burguesia atual, porém, é panurgiana e, por isso, banaliza tudo em que toca ou de que se utiliza. Darwin, quando passou por aqui, em 1832, habitou durante os belos meses cariocas de Maio e junho uma pequena casa de roça, nas cercanias da baía de Botafogo. É impossível, diz ele, sonhar nada mais delicioso do que essa residência de algumas semanas em país tão admirável! Hoje, se ele visse esse subúrbio do Rio de Janeiro, com as suas casas quase todas iguais em pacholice; com os seus jardins econômicos de terra e, mais do que isso, avaros; com a sua aristocracia de melindrosas desfrutáveis e encantadoras com o espírito nas pontas dos dedos, ambos, machos e fêmeas, estetas de cinemas; com os seus verdadeiros e falsos ricos, arrogantes e ávidos; com os seus lacaios e badauds do luxo de pacotilha que lá impera; como não se recordaria da meiguice primitiva do lugar, quando por ali ele caçava "planárias", classificadas por Cuvier como vermes intestinais, mas que, por sinal, não se encontram nos intestinos de qualquer animal; como lhe dariam saudades a música vesperal e dissonante iniciada pelas cigarras estridentes, e seguida pelo coaxar de rãs e sapos e pelo chiar dos grilos, com a iluminação instantânea dos pirilampos? Mas, a nuvem pardo-azul, que nos grandes dias de luz funde ao longe as cores e as nuanças, observada pelo sábio inglês, ainda se pode ver aquele célebre recanto do Rio de Janeiro. Os burgueses não se erguem da terra; não escalam o céu. Isso é coisa para titãs... A nossa plutocracia, como a de todos os países, perdeu a única justificação da sua existência como alta classe, mais ou menos viciosa e privilegiada, que era a de educadora das massas, propulsora do seu alevantamento moral, artístico e social. Nada sabe fazer de acordo com o país, nem inspirar que se faça. Ela copia os hábitos e opiniões uns dos outros, amontoa-se num lugar só, e deixa os lindos recantos do Rio de janeiro abandonados aos carvoeiros ferozes que, afinal, saem dela mesma.

Encarando a burguesia atual de todo gênero, os recursos e privilégios de que dispõe, como sendo unicamente meios de alcançar fáceis prazeres e baixas satisfações pessoais, e não se compenetrando ela de ter, para com os outros, deveres de todas as espécies, falseia a sua missão e provoca a sua morte. Não precisará de guilhotina...

É bom lembrar, porém, já que falávamos em Darwin, que ele — e não podia deixar de fazê-lo — se refere também ao Jardim Botânico; e este recanto do Rio de Janeiro, tão peculiar à cidade que é até um dos seus emblemas, fala ainda de Dom João VI. Até bem pouco tempo, era o lugar predileto para os passeios burgueses e familiares. Era o lugar dos piqueniques ou convescotes; e, aos domingos e dias de festas, quem lá fosse, encontraria, sombra das suas veneráveis árvores, famílias e convivas, criados e mucamas e noivos, a comer o leitão assado e o peru recheado, votivos à boa harmonia e felicidade dos lares, em dias de sacrifício doméstico do nosso culto aos penates. Foram proibidos, e o Jardim Botânico só ficou lembrado por causa de uma casa rústica que havia defronte dele, espécie de hospedaria disfarçada em que, à noite, se realizavam pândegas alegres de rapazes e raparigas que não tinham o que perder. Assim mesmo, entretanto, ele não se aguentou na memória dos cariocas passeadores. Como Silvestre, a Tijuca e o moderno Sumaré, passou da moda. Hoje é em Copacabana e adjacências que se realizam as pândegas e se epilogam tragédias ou comédias conjugais. O Jardim Botânico, porém, ficou sossegado, quieto entre o mar bem próximo e a selva verde-negra que cobre os contrafortes do Corcovado ao fundo, polvilhada de prata após as grandes chuvas, lançando sobre os que o abandonaram o desdém de suas palmeiras altivas e titanicamente para o céu, à espera de que, para as suas alfombras, voltem as famílias em festança honesta e os amorosos irregulares em transportes sagrados, a fim de abençoar, quer umas, quer outros, debaixo das arcaicas góticas dos seus bambus veneráveis.

Conquanto tenha tido a primazia de nortear, para o seu portão, a primeira linha de bondes que se construiu no Rio de Janeiro, de uns tempos a esta parte o jardim deixou de ser falado nos jornais, nas crônicas elegantes, não mais foi escolhido para festividades mundanas a estrangeiros de distinção efêmera; e a massa dos cariocas desabituando-se de lhe ouvir o nome, nem vendo a sua alameda senhoria de palmeiras nas notas do Tesouro, esqueceu-se daquele pedaço da cidade, que é bem e só ele mesmo, ele unicamente, sem semelhança com outro.

Um belo dia de anos passados, porém, nas primeiras horas da manhã, logo após o café, abrindo os jornais, deram os cariocas com a primeira página de quase todos os quotidianos ocupada com uma longa notícia, entremeada de gravuras macabras e fisionomias satisfeitas de policiais em diligência.

Cada qual das gazetas tinha mais títulos e subtítulos e cada qual destes era mais campanudo e inexplicável. Leram a notícia e, em suma, tratava-se do seguinte: tendo fechado o jardim, os guardas, conforme mandava o regulamento, passaram revista a todo ele. Davam-na por acabada, quando um deles encontrou, na borda de um gramado, um punhal esquisito, "esquinado", dizia ele, com uma inscrição na face da lâmina. Era simples e em espanhol o mote: Soy yo! O achado intrigou-o, esquadrinhou melhor os arredores e veio a dar, dissimulado em uma moita, com o cadáver de uma mulher com o rosto arroxeado e congestionado, inteiramente vestida, só com chapéu fora do lugar, mas, posto por outra mão ao lado dela. Parecia estrangeira. De súbito e de forma tão tétrica, foi arrancado do esquecimento a lembrança do velho jardim real; e ele surgiu a todos da cidade com uma auréola de martírio, feita da ingratidão de toda uma população a cujos país e avós, sem nada lhes pedir, ele soubera dar tantos instantes de alegria e amor.

Os jornais lembraram a sua história, a sua fundação pelo rei Dom João VI, os benefícios que havia prestado com fornecimentos de sementes de plantas úteis ou "mudas" de variedades de cana-de-açúcar; lembraram a plantação de chá que lá houvera, sem esquecer de louvar as esguias e majestosas palmeiras, uma das quais, plantada pelas próprias mãos do rei, estava morrendo de velha.

O inquérito veio a correr, ou melhor, a arrastar-se sem esperança de resultado; e a inscrição em espanhol, no punhal, fazia que as autoridades policiais prendessem, não só todos os súditos do rei da Espanha que encontravam à mão, como também colombianos, argentinos, chilenos, e até um filipino azeitonado foi preso, apesar de ser um simples e inofensivo malaio vagabundo e cabeludo, que vivia a catar ervas medicinais para vendê-las aos herbanários da rua Larga e aos chefes de macumbas e "candomblés" dos subúrbios longínquos. Tudo em pura perda.

A vítima foi identificada. Era uma criada alemã, arrumadeira de um grande hotel de luxo do Silvestre ou de Santa Tereza, que, nos seus dias de folga ou licença, gostava de passear pelos arredores da cidade e beber cerveja em toda parte. Todos os frequentadores de casas de chopes conheciam aquela pequena alemã, de Baden, rechonchudinha, polpuda que nem um repolho, com os malares sempre rosados, possuidora de um perfeito aspecto de boneca alemã de carregação, que bebia mais do que os patrícios, rindo e estalando as palavras no duro e gutural alemão, cuja família diziam ser de camponeses de um lugarejo do grão-ducado. Os seus papéis eram cartas dos pais, de irmãos e parentes, além de lembranças de uns e outros, como retratos, sem mais outro traço sentimental que não este da família; e sobre o seu cadáver foram encontradas as joias que a sua modesta condição permitia possuir: um anel de pouco preço, umas bichas de ouro e brilhantes mas de valor pouco considerável, um par de pulseiras, algum dinheiro e mais nada.


CAPÍTULO 2

O doutor Matos Garção era quem conduzia o inquérito; mas esse moço, feito delegado de polícia, por empenhos de políticos do interior e sendo ele mesmo de São Sebastião de Passa Quatro, pecava por inteiro desconhecimento do Rio de Janeiro, de forma que, apesar de ter alguma inteligência, andou dando por paus e por pedras, cego, tonto, numa descontinuidade de esforços de causar riso e pena.

Houve até uma diligência que, inspirada por ele, parecia encaminhá-lo para a descoberta do assassino da pequena Grauben Hunderbrok; mas que ele não a soube aproveitar. Tendo observado que muitos desses imigrantes espontâneos chegam ao Rio de Janeiro, com passagem por Buenos Aires, conseguiu obter da polícia argentina informações a respeito da alemãzinha assassinada. De lá, noticiaram que ela estivera naquela cidade do Prata, havia já quatro anos, quando, tendo vinte e três de idade, viera de França, de Paris, acompanhando uma família rica argentina, como criada. Meses depois, poucos, quatro, se tanto, despedira-se bruscamente e subitamente embarcara para a Guanabara. Era o que informaram as pessoas da família Avendaña, com a qual aportara em Buenos Aires. Um casal de alemães, cujo marido tinha um emprego secundário nas oficinas da Cervejaria Brama, sem ser solicitado, depôs perante o delegado. O que havia de importante, no depoimento dele, era que Grauben tinha na sua companhia um filho de quatro anos, a que dera à luz alguns meses após a sua chegada de Buenos Ayres. O exame médico-legal tinha já indicado essa maternidade que ela parecia querer ocultar.

O punhal foi bem examinado; mas apesar de parecer a todos uma arma de luxo e antiga, cabo de prata lavrada, guarda de aço com arabescos tauxiados e a tal inscrição sibilina — Soy yo! na lâmina também tauxiada de arabescos, nenhum dos armeiros, chamados para quesitos, se animavam a dizê-lo autêntico, hesitavam na determinação de sua procedência, uns queriam-na toledana, outros italiana das primitivas armas da Renascença e alguns mesmo chegaram a pensar em uma imitação, para "engazopar" os colecionadores "rastas" da América do Sul. A bainha não foi encontrada; a adaga estava imaculada de sangue, pois a morte se dera por estrangulamento, tendo o assassino simplesmente esganado a rapariga com ambas as mãos.

Ia assim o inquérito, cansando todos: delegado, escrivão, comissários, guardas, agentes, polícias de farda, "encostados”, jornalistas e o público; e já o doutor Matos, de São Sebastião de Passa Quatro, se resolvera a fechar a semana "espanhola" e inaugurar a "germânica" com a detenção de muitos alemães, quando a 22 de junho, isto dias depois do assassínio, surge na delegacia um rapaz de vinte e poucos anos de idade, boa aparência, que se acusa como autor do homicídio do jardim.

Chamava-se ele Lourenço da Mota Orestes e era empregado nos Telégrafos, em um modesto lugar, sendo muito estimado pelos chefes, superiores e colegas, pela sua reserva, sua assiduidade e obediência. Fora, antes, empregado no comércio, onde seu pai era também muito estimado e considerado, pela sua honestidade e rigor no cumprimento das suas obrigações. Tinha este um grande "bazar" muito apregoado, pelas bandas do Estácio de Sá, onde comerciava com toda a lisura, não tendo por isso grande fortuna, empregando quase toda a renda da loja nas suas despesas de família.

Lourenço, ao entardecer daquele úmido dia de junho de... chegou à delegacia e disse precisar falar ao delegado sobre o assassínio da alemãzinha. Estava já a autoridade muito enfarada com o caso e demorou razoavelmente em recebê-lo. Devido à insistência do rapaz, veio a ser ouvido duas horas depois de sua chegada. Logo que se aproximou do doutor Matos, disse-lhe sem mais detença que confessava ser ele o matador de Grauben. O jovem bacharel de São Sebastião de Passa Quatro estremeceu na ampla cadeira, levantou-se como se fosse impelido por uma mola, e, acompanhando a fala com um olhar desvairado, perguntou ao rapaz, para quem tinha a mão direita estendida, apontando-o dramaticamente, com o dedo indicador:

— Foste tu, então?

— Fui, doutor, disse o rapaz serenamente.

Tocou o delegado a campainha, chamou os seus auxiliares, aos quais disse em tom de grande satisfação:

— Está ali (apontou) quem matou a alemã no jardim.

Todos exclamaram a um só tempo:

— Este!

O delegado, de novo apontando para o rapaz, confirmou:

— Sim; é este.

Perguntou em seguida ao Lourenço:

— Não foste tu?

— Fui, doutor.

Determinou, então, o doutor Matos Garção que o metessem no xadrez; que o vigiassem muito e não deixassem conversar com ninguém. Logo que o rapaz se encaminhou para a prisão da delegacia, onde estavam os xadrezes, ordenou ao prontidão que telegrafasse ao chefe, aos auxiliares, à Associação de Imprensa, a todos os jornais, convidando todos para assistir à confissão do criminoso.

Com tal notícia, a cidade teve um contentamento de alívio e alguns, curiosos de ver o assassino e talvez ouvir-lhe a confissão que a nova estampada à porta dos jornais tinha feito encaminharem-se para o posto policial longínquo, tiveram que esperar até quase às onze horas da noite o momento de serem satisfeitos e dele saíram nas imediações da madrugada.

O chefe e os policias graúdos chegaram às nove horas, os repórteres dos principais jornais pouco depois, mas faltava o do O Arauto do Povo, um jornal ainda novo, mas de grande venda, que chegou pelas proximidades das onze horas e foi esperado devido às ordens do chefe, pois O Arauto fazia-lhe uma oposição cega e queria ele provar à sua redação o quanto eram infundados os seus artigos.

Tendo chegado, afinal, o repórter, seguido de fotógrafo como alguns outros, o criminoso foi introduzido.

Antes, tinham os jornalistas tirado aspectos da "mesa", como chefe de polícia, auxiliares, delegados, escrivão, sentados, e, de pé, às costas destes, inspetores, guardas, polícias, etc.

O moço entrou e puseram-no em uma cadeira próxima ao delegado distrital que esperou, para tomar por termo a confissão, que os fotógrafos "batessem" a chapa à luz da explosão do magnésio.

No começo, correu tudo em ordem e o acusado, com voz firme, articulando distintamente palavra por palavra, disse o seu nome, a sua filiação, ter vinte e cinco anos de idade, etc., etc. Narrou como se dera o crime. Tendo, todos os anos, quando podia gozar férias, aí pelo mês de junho, o hábito de vir passar os quinze dias delas em casa de seu amigo Leopoldo Martins Barroca, nos arredores da praia do Pinto, da lagoa Rodrigo de Freitas, viera como de costume naquele ano.

Gostava de passá-los aí, pois, com a sua família, até aos quatorze anos, antes de estabelecer-se seu pai, ao deixar de ser feitor do jardim, ele residira naquelas redondezas das quais guardava as mais suaves recordações. Naquele dia, 14 de junho de... o do assassínio, tendo almoçado com a mulher e os filhos do seu amigo, sem ele, pois o fazia mais cedo para não perder o seu ponto no Arsenal de Marinha, onde era escrevente, saiu e foi ler o Jornal do Comércio na venda do “seu" Eduardo, que ficava justamente na praia, fazendo esquina com a rua do Pau, em que estava a casa do seu hospedeiro amigo.

Lera a folha vagarosamente e dera-lhe vontade de ir ao jardim passear. Assim fizera e, vagando pelas alamedas, naquele dia de semana, silenciosas e desertas, encontrara com aquela alemã que, só agora, pela leitura dos jornais, soube chamar-se Grauben. Travara, a propósito não se lembra de quê, conversa com ela. Ria-se muito a moça, com um riso estreito e de pouca duração, com propósito ou não, e pareceu-lhe, por diversos gestos, ter-se ela apaixonado por ele. Em um dado momento, quis beijá-la, ela o repeliu, mas continuou a conversar com ele como se nada tivesse havido, no seu mau português.

Chegando a um lugar mais sombrio, repetiu a tentativa de abraçá-la e beijá-la e repetiu com mais força e decisão. Ela, a alemã se enfureceu e arrancou não sabia de que dobra do vestido, o punhal que foi encontrado, tentando feri-lo. Foi por esse tempo que, desvairado pela luxúria, pelo despeito, pelo medo — tudo isto misturado e multiplicado levou-o a agarrar a rapariga pelo pescoço, com ambas as mãos, cheio de frenesi apertou-o loucamente, cegamente e, quando pôde refletir, viu que ela estava morta. Vendo-a assim, ocultou o cadáver em uma moita e saiu muito naturalmente, aí pelas três horas da tarde. Foi para a casa de que era hóspede e, ao dia seguinte, no noturno, embarcava para São Paulo, onde estivera até à véspera daquele dia 22.

Essa parte principal do depoimento correu bem, mas logo que o acusado deu por finda a acusação que fazia a si mesmo, todos começaram a interrogá-lo, quase a um só tempo — chefe, delegados, comissários, jornalistas, homens do povo e até polícias.

Apesar da barafunda, a todos respondia com calma e precisão, mesmo porque, em geral, as perguntas eram as mais idiotas possíveis ou não tinham relação alguma com o torpe crime do Jardim Botânico.

No dia seguinte, os jornais, pejados de retratos e outras gravuras, traziam longas notícias, com os comentários do costume e alguns elogiavam o chefe, outros calavam-se a tal respeito; mas, todos eram acordes em tachar de revoltante o criminoso, tipo verdadeiramente lombrosiano, pelas feições e pela cínica calma dos delinquentes natos.

A não ser a calma, não havia nada de verdade nisso. O rapaz era bem parecido e conformado de corpo e rosto, mais alto que baixo, branco sem jaça, robusto mais do que a média; e tinha um olhar agudo, por vezes agudíssimo, mas sempre meigo e triste, onde havia muito de vago e de melancolia.

No dia seguinte, começaram a interrogar as pessoas aludidas na confissão pelo criminoso, dois guardas do jardim reconheceram-no; um, porém, dizia que o vira entrar na véspera do crime, no dia de santo Antônio; entretanto, o outro jurava que ele estivera no jardim, a 14, por sinal que o avistara, nas proximidades do chafariz, quando ia o visitante dobrar a alameda à esquerda e perpendicular à principal da entrada.

Este depoimento, se bem que fosse confirmado, mais tarde e em acareação como protagonista da tragédia, estava em contradição com muitos outros. Dona Zilda, a mulher do amigo em cuja casa Lourenço estivera hospedado, depôs dizendo que, no dia do crime, o seu hóspede lhe chegara à casa, aí pelas três horas e pelos fundos, pois era seu hábito, depois de ler o jornal na venda, descer a praia, embrenhar-se na restinga, chupar cambuim, pitangas, frutas de cardo, mexerica, qualquer fruta silvestre e voltar para a casa pelos fundos que davam para a restinga do Leblon. Perguntada se era costume dele ir ao jardim, disse que sim, parecendo-lhe até que, no dia de santo Antônio, lá fora.

O proprietário da venda, o senhora Eduardo Silveira, mais ou menos confirmou o depoimento de dona Zilda. Disse que, deixando o senhora Lourenço de ler o Comércio pelas duas horas, o vira descer à praia, como era do seu hábito, procurar um atalho que levava à restinga; e não acreditava que tivesse ido ao jardim, naquele dia, por aquelas horas, pois estava sem colarinho nem gravata, não se entrando, como é sabido, naquele logradouro público sem esses complementos do vestuário.

O marido de dona Zilda, o amigo de Lourenço, pouco sabia, mas asseverava que ele fora ao jardim, a 13, dia de santo Antônio, pois, tendo ficado em casa para remendar uma cerca e concertar o galinheiro, o vira sair completamente vestido, convidando-o, a ele, depoente, a acompanhá-lo, o que não fez, e com isso desculpou-se, por ter de executar aqueles servicinhos caseiros.

Reinquirido, à vista do depoimento do vendeiro, a respeito de como tinha podido entrar no jardim sem colarinho, nem gravara, explicou Lourenço que obtivera esses dois objetos no caminho de Jorge Turco, nas Três-Vendas, e os colocara no pescoço, nos fundos do botequim do canto da estrada de Dona Castorina.

Jorge Turco, convidado a depor, afirmou nunca ter vendido um alfinete ao rapaz, que conhecia, entretanto, por lhe passar pela porta do negócio em companhia do "seu" Leopoldo da rua do Pau, um dos seus bons fregueses e a mulher também.

O dono do botequim dissera que, de fato, um dia destes da semana passada, tinha consentido que ele fosse aos fundos do seu negócio, mas não sabia ao certo o dia e não podia garantir que, para lá entrasse sem colarinho e gravata. Com eles, saiu; disso, tinha memória.

Apesar de toda essa confusão de depoimentos que resultava em mostrar não ter ele coparticipação nem ser autor do crime, Lourenço continuava a afirmar com a mais convincente das firmezas que era autor do assassínio; que fora só ele quem matara a alemã; que merecia castigo e ajuntava detalhes elucidativos da sua luta com a alemã que dizia ter morto, nas condições do seu primitivo depoimento.

Vindo a saber-se que os dias que mediaram entre o do crime e o da confissão, não estivera ele em São Paulo, mas, na barra da Guaratiba, em casa de uns antigos serviçais de seu pai, muito chegados à família, sendo ele até padrinho de um dos filhos deles — vindo a saber-se disso, explicava a falsidade, do seu primeiro depoimento nessa parte, como tendo por fito não querer comprometer aqueles pobres pretos aos quais muito estimava e amava.

Toda a sua confissão ia assim se desmoronando com as informações que traziam as pessoas conceituadas no seu meio peculiar, e indicadas tácita ou explicitamente nos depoimentos do acusado, as quais procuradas para elucidar os passos dados por ele naquele sinistro posmerídio de 14 de junho de... vinham todas elas mostrar a inverosimilhança de suas afirmações, fazendo-o claramente inocente. Não se sabia o que pensar de tão esquisito caso...

O pai, como informante, depôs longamente sobre o caráter e os hábitos do filho. O seu depoimento foi tocante e longo. Era um velho português forte e firme, com um olhar ladino, mas bondoso, inspirando toda a sua pessoa, retidão e franqueza. Contou ele que desde uns cinco ou seis anos para cá o gênio do seu filho se transformara. Até aos vinte anos, era alegre, até folgazão, gostava de regatas, de festas, de vestuário e atavios. Logo, aos dezesseis anos, pedira-lhe que o empregasse, porque não tinha propensão para os estudos. Ele, pois, se entristecera, porquanto o julgava, como todos os seus mestres, inteligente e aplicado. Fazendo-lhe a vontade, apesar de isso desgostá-lo e também à mulher, empregara-o em uma casa comercial, por atacado, onde fez carreira, sendo de ano para ano aumentado de vencimentos. Deu em morar fora da casa paterna, sob o pretexto de ficar mais perto do clube de regatas de que era sócio, e não precisar acordar-se tão cedo para comparecer aos "ensaios". Não se opôs, já por julgá-lo ajuizado, já por apreciar o seu desenvolvimento físico e o ar de saúde que ia ganhando.

Aos dezenove anos para os vinte, sem explicação alguma (aí a sua voz tremeu), soube que o seu filho tinha abandonado o emprego e fugira não sabia para onde. Fora ao patrão, pagou-lhe uns pequenos adiantamentos que fizera a casa ao rapaz e, quase dois anos depois, veio a saber que o filho estava na maior miséria em São Paulo, exercendo os duros e humildes ofícios de varredor e carregador de uma venda de arrabalde. A instâncias de sua mulher, partiu para aquela capital, trouxe-o e, um ano inteiro, Lourenço lhe ficou em casa, trocando raras palavras com ele e os irmãos, só se expandindo mais longamente com a mãe. Não atinava com a mágoa do filho e temia que se matasse. Vivia a ler livros de religião e espíritas, cujos títulos ele, o pai, não sabia repetir. Não queria ver jornais, nem revistas. Seus cuidados com a integridade mental do filho eram grandes, tanto mais que, várias vezes, lhe dissera a mulher que, quase sempre, quando ia ao quarto, o encontrava a chorar ou com a fisionomia de quem tinha acabado de fazer isso. Por intermédio dela, sempre lhe fornecia dinheiro, para as suas pequenas necessidades; e, longe de empregá-lo consigo, seu filho dava a maior parte aos criados da casa, às crianças da vizinha, só reservando uma pequena e diminuta quantia para a compra de cigarros ordinaríssimos e fósforos. Quisera-o mandar para a Europa, e ele não aceitara, dizendo à mãe que tinha medo do oceano. Preferia que lhe arranjassem um pequeno emprego público modesto; com as suas relações, conseguira ele, o pai, obter; e, desde que o exercia, como que tinha melhorado de estado de espírito. Quanto ao crime, não sabia nada; mas não julgava seu filho capaz de tanta maldade, antes o supunha louco, com a mania do martírio e, em tempo, havia requerido o competente exame de sanidade mental.

A parte do depoimento do pai que aludia à fuga do filho para São Paulo impressionou o repórter de O Arauto, que, daqui e dali, veio a saber e publicou o motivo dela. Ele abalara para lá, devido a ter dado um desfalque na casa em que era empregado, no valor de dois ou três contos, que foram pagos pelo pai.

A polícia que já estava disposta a não acreditar na sua confissão, à vista de tal precedente, voltou à carga, encerrou o inquérito e remeteu-o ao juiz competente. As contradições e incongruências entre a confissão do réu e os depoimentos de testemunhas e informantes continuaram a encher de mistério o caso.

O juiz sumariante ficou completamente atrapalhado, doido até, com tal crime e tal criminoso. Não havia uma hipótese a fazer, quase todos os depoimentos levavam à convicção de que a confissão de Lourenço era falsa; ele, porém, confessava com tal firmeza! Que havia de pensar?

Quem sabe se ele não queria despistar a polícia, mas com que interesse? Os seus amigos do peito eram poucos e todos eles podiam dar numerosas testemunhas como tinham passado todo o dia 14, quase todo, nas suas repartições. Por dinheiro? Era absurdo.

O advogado, chamado pelo pai, disse-lhe logo:

— Aceito, mas o meu maior adversário é seu filho... Não cessa de confessar que foi ele e justificar mais ou menos bem os desmentidos às suas afirmações. Olhe como se saiu daquela "potoca" de São Paulo. Perfeitamente aceitável... É o diabo! Mas... aceito!

O advogado, em desespero de causa, pediu exame de sanidade mental para o seu cliente. O juiz com muito contentamento deferiu o pedido. Lourenço foi para o hospício, onde esteve internado dois meses. Da comissão, fazia parte o doutor Juliano Moreira, que empregou todo o seu saber e toda a sua quente simpatia para decifrar aquele angustioso enigma psicológico.

Observado cuidadosamente, virado o seu espírito pelo avesso, interrogado dessa e daquela forma, escrevendo e falando não revelou qualquer perturbação nas suas faculdades mentais. Era o homem comum, o médio, sem nenhuma degenerescência ou psicose, inferior ou superior, acentuada.

Foi pronunciado; mas, antes que entrasse em júri, uma pequena revista lembrou um caso muito semelhante acontecido na Alemanha, em Essen, e contando em um livro do senhora Hugo Fridlaender e resumido, no Le Temps, por Th. De Wyzewa. Tratava-se de um tal Alfred Land que, tendo praticado uma pequena falcatrua, um furto doméstico, se sentiu tão angustiado, tão cheio de mágoa, de ralação íntima a lhe pedir expiação da falta, que não trepidou em acusar-se como autor de um assassínio misterioso, o qual ele estava materialmente impossibilitado de executar.

Citando Wyzewa, o autor do artigo dizia que, em Lourenço, a consciência de ter desonrado o seu nome, de ter cometido um crime vil e covarde, de ter injuriado, maculado a honra dos pais e da família, era o que o roía interiormente, o desassossegava, o ralava dia e noite, silenciosamente, sem que ele avaliasse bem a tensão desse estado d'alma, até o dia em que a notícia do assassínio da pequena alemã, num recanto afastado do Jardim Botânico, sugeriu-lhe a ideia de resgatar o seu erro de rapazola com uma condenação por assassínio. Levava-o a júri uma espécie de necessidade de resgatar a sua falta de um modo "heroico, romanesco e místico" da honestidade; uma premente determinação de expiação do seu crime de furto, determinação que invadira aos poucos, insidiosamente, a sua vontade, no silêncio de suas meditações e nas horas angustiosas do remorso e do arrependimento.

Ninguém aqui, como aquele juiz de instrução do Crime e castigo se abalança a ler as pequenas revistas de rapazes, para estar a par da psicologia mórbida dos criminosos cerebrais e inexplicáveis; e, por isso, muito naturalmente, não houve quem interpretasse de modo plausível a atitude daquele rapaz que parecia desejar com volúpia uma condenação por crime hediondo e execrando.

Foi a júri e não foi difícil absolvê-lo. Ninguém acreditava na sua criminalidade, nem o promotor, nem jurados, nem juiz, ninguém!

Quando, porém, o juiz, à vista das respostas do júri, mandou-o pôr em liberdade, se por "al" não estivesse preso, conforme a linguagem forense, Lourenço se levantou, pediu vênia ao juiz, e, perante este e os jurados, protestou contra a sua absolvição, nos seguintes termos:

— Senhora juiz e senhores jurados, eu protesto contra a minha absolvição que é iníqua e injusta, em face da minha consciência. Sou um criminoso, ninguém melhor do que eu pode afirmá-lo; quero sofrer, para resgatar-me e poder, então, viver outra vez com alegria e satisfação, no convívio dos meus semelhantes. Nenhuma justiça, nenhum homem tem o direito de se opor a esse meu sincero desejo... Protesto, portanto!

Sentou-se; mas, o promotor não apelou.

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