Luís Soares
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
CAPÍTULO 1
Trocar o dia pela noite, dizia Luís Soares, é
restaurar o império da natureza corrigindo a obra da sociedade. O calor do sol
está dizendo aos homens que vão descansar e dormir, ao passo que a frescura
relativa da noite é a verdadeira estação em que se deve viver. Livre em todas
as minhas ações, não quero sujeitar-me à lei absurda que a sociedade me impõe:
velarei de noite, dormirei de dia.
Contrariamente a vários ministérios, Soares
cumpria este programa com um escrúpulo digno de uma grande consciência. A
aurora para ele era o crepúsculo, o crepúsculo era a aurora. Dormia doze horas
consecutivas durante o dia, quer dizer das seis da manhã às seis da tarde. Almoçava
às sete e jantava às duas da madrugada. Não ceava. A sua ceia limitava-se a uma
xícara de chocolate que o criado lhe dava às cinco horas da manhã quando ele
entrava para casa. Soares engolia o chocolate, fumava dois charutos, fazia
alguns trocadilhos com o criado, lia uma página de algum romance, e deitava-se.
Não lia jornais. Achava que um jornal era a
coisa mais inútil deste mundo, depois da Câmara dos Deputados, das obras dos
poetas e das missas. Não quer isto dizer que Soares fosse ateu em religião,
política e poesia. Não. Soares era apenas indiferente. Olhava para todas as
grandes coisas com a mesma cara com que via uma mulher feia. Podia vir a ser um
grande perverso; até então era apenas uma grande inutilidade.
Graças a uma boa fortuna que lhe deixara o
pai, Soares podia gozar a vida que levava, esquivando-se a todo o gênero de
trabalho e entregue somente aos instintos da sua natureza e aos caprichos do
seu coração. Coração é talvez demais. Era duvidoso que Soares o tivesse. Ele
mesmo o dizia. Quando alguma dama lhe pedia que ele a amasse, Soares respondia:
— Minha rica pequena, eu nasci com a grande
vantagem de não ter coisa nenhuma dentro do peito nem dentro da cabeça. Isso
que chamam juízo e sentimento são para mim verdadeiros mistérios. Não os
compreendo porque os não sinto.
Soares acrescentava que a fortuna suplantara
a natureza deitando-lhe no berço em que nasceu uma boa soma de contos de réis.
Mas esquecia que a fortuna, apesar de generosa, é exigente, e quer da parte dos
seus afilhados algum esforço próprio. A fortuna não é Danaide. Quando vê que um
tonel esgota a água que se lhe põe dentro vai levar os seus cântaros a outra
parte. Soares não pensava nisto. Cuidava que os seus bens eram renascentes como
as cabeças da hidra antiga. Gastava às mãos largas; e os contos de réis, tão
dificilmente acumulados por seu pai, escapavam-se-lhes das mãos como pássaros
sequiosos por gozarem do ar livre.
Achou-se, portanto, pobre quando menos o
esperava. Um dia de manhã, quer dizer às ave-marias, os olhos de Soares viram
escritas as palavras fatídicas do festim babilônico. Era uma carta que o criado
lhe entregara dizendo que o banqueiro de Soares a havia deixado à meia-noite. O
criado falava como o amo vivia: ao meio-dia chamava meia-noite.
— Já te disse, respondeu Soares, que eu só
recebo cartas dos meus amigos, ou então...
— De alguma rapariga, bem sei. É por isso que
lhe não tenho dado as cartas que o banqueiro tem trazido há um mês. Hoje,
porém, o homem disse que era indispensável que lhe eu desse esta.
Soares sentou-se na cama, e perguntou ao
criado meio alegre e meio zangado:
— Então tu és criado dele ou meu?
— Meu amo, o banqueiro disse que se trata de
um grande perigo.
— Que perigo?
— Não sei.
— Deixa ver a carta.
O criado entregou-lhe a carta.
Soares abriu-a e leu-a duas vezes. Dizia a
carta que o rapaz não possuía mais que seis contos de réis. Para Soares seis
contos de réis eram menos que seis vinténs.
Pela primeira vez na sua vida Soares sentiu
uma grande comoção. A ideia de não ter dinheiro nunca lhe havia acudido ao
espírito; não imaginava que um dia se achasse na posição de qualquer outro
homem que precisava de trabalhar.
Almoçou sem vontade e saiu. Foi ao Alcazar.
Os amigos acharam-no triste; Perguntaram-lhe se era alguma mágoa de amor.
Soares respondeu que estava doente. As Laís da localidade acharam que era de
bom gosto ficarem tristes também. A consternação foi geral.
Um dos seus amigos, José Pires, propôs um
passeio a Botafogo para distrair as melancolias de Soares. O rapaz aceitou. Mas
o passeio a Botafogo era tão comum que não podia distraí-lo. Lembraram-se de ir
ao Corcovado, ideia que foi aceita e executada imediatamente.
Mas que há que possa distrair um rapaz nas
condições de Soares? A viagem ao Corcovado apenas lhe produziu uma grande
fadiga, aliás útil, porque, na volta, dormiu o rapaz a sono solto.
Quando acordou mandou dizer ao Pires que
viesse falar-lhe imediatamente. Daí a uma hora parava um carro à porta: era o
Pires que chegava, mas acompanhado de uma rapariga morena que respondia ao nome
de Vitória. Entraram os dois pela sala de Soares com a franqueza e o estrépito
naturais entre pessoas de família.
— Não está doente? perguntou Vitória ao dono
da casa.
— Não, respondeu este; mas por que veio você?
— É boa! disse José Pires; veio porque é a
minha xícara inseparável... Querias falar-me em particular?
— Queria.
— Pois falemos aí em qualquer canto; Vitória
fica na sala vendo os álbuns.
— Nada, interrompeu a moça; nesse caso vou-me
embora. É melhor; só imponho uma condição: é que ambos hão de ir depois lá para
casa; temos ceata.
— Valeu! disse Pires.
Vitória saiu; os dois rapazes ficaram sós.
Pires era o tipo do bisbilhoteiro e leviano.
Em lhe cheirando novidade preparava-se para instruir-se de tudo. Lisonjeava-o a
confiança de Soares, e adivinhava que o rapaz ia comunicar-lhe alguma coisa
importante. Para isso assumiu um ar condigno com a situação. Sentou-se
comodamente em uma cadeira de braços; pôs o castão da bengala na boca e começou
o ataque com estas palavras:
— Estamos sós; que me queres?
Soares confiou-lhe tudo; leu-lhe a carta do
banqueiro; mostrou-lhe em toda a nudez a sua miséria. Disse-lhe que naquela
situação não via solução possível, e confessou ingenuamente que a ideia do
suicídio o havia alimentado durante longas horas.
— Um suicídio! exclamou Pires; estás doido.
— Doido! respondeu Soares; entretanto não
vejo outra saída neste beco. Demais, é apenas meio suicídio, porque a pobreza
já é meia morte.
— Convenho que a pobreza não é coisa
agradável, e até acho...
Pires interrompeu-se; uma ideia súbita
atravessara-lhe o espírito: a ideia de que Soares acabasse a conferência por
pedir-lhe dinheiro. Pires tinha um preceito na sua vida: era não emprestar
dinheiro aos amigos. Não se empresta sangue, dizia ele.
Soares não reparou na frase cortada do amigo,
e disse:
— Viver pobre depois de ter sido rico... é
impossível.
— Nesse caso que me queres tu? perguntou
Pires, a quem pareceu que era bom atacar o touro de frente.
— Um conselho.
— Inútil conselho, pois que já tens uma ideia
fixa.
— Talvez. Entretanto confesso que não se
deixa a vida com facilidade, e má ou boa, sempre custa morrer. Por outro lado,
ostentar a minha miséria diante das pessoas que me viram rico é uma humilhação
que eu não aceito. Que farias tu no meu lugar?
— Homem, respondeu Pires, há muitos meios...
— Venha um.
— Primeiro meio. Vai para Nova Iorque e
procura uma fortuna.
— Não me convém; nesse caso fico no Rio de
Janeiro.
— Segundo meio. Arranja um casamento rico.
— É bom de dizer. Onde está esse casamento?
— Procura. Não tens uma prima que gosta de
ti?
— Creio que já não gosta; e demais não é
rica; tem apenas trinta contos; despesa de um ano.
— É um bom princípio de vida.
— Nada; outro meio.
— Terceiro meio, e o melhor. Vai à casa de
teu tio, angaria-lhe a estima, dize que estás arrependido da vida passada,
aceita um emprego, enfim vê se te constituis seu herdeiro universal.
Soares não respondeu; a ideia pareceu-lhe
boa.
— Aposto que te agrada o terceiro meio?
perguntou Pires rindo.
— Não é mau. Aceito; e bem sei que é difícil
e demorado; mas eu não tenho muitos à escolha.
— Ainda bem, disse Pires levantando-se. Agora
o que se quer é algum juízo. Há de custar-te o sacrifício, mas lembra-te que é
o meio único de teres dentro de pouco tempo uma fortuna. Teu tio é um homem
achacado de moléstias; qualquer dia bate a bota. Aproveita o tempo. E agora
vamos à ceia da Vitória.
— Não vou, disse Soares; quero acostumar-me
desde já a viver vida nova.
— Bem; adeus.
— Olha; confiei-te isto a ti só; guarda-me
segredo.
— Sou um túmulo, respondeu Pires descendo a
escada.
Mas no dia seguinte já os rapazes e raparigas
sabiam que Soares ia fazer-se anacoreta... por não ter dinheiro nenhum. O
próprio Soares reconheceu isto no rosto dos amigos. Todos pareciam dizer-lhe: É
pena! que pândego vamos nós perder!
Pires nunca mais o visitou.
CAPÍTULO
2
O tio de Soares chamava-se o Major Luís da
Cunha Vilela, e era com efeito um homem já velho e adoentado. Contudo não se
podia dizer que morreria cedo. O Major Vilela observava um rigoroso regímen que
lhe ia entretendo a vida. Tinha uns bons sessenta anos. Era um velho alegre e
severo ao mesmo tempo. Gostava de rir, mas era implacável com os maus costumes.
Constitucional por necessidade, era no fundo de sua alma absolutista. Chorava
pela sociedade antiga; criticava constantemente a nova. Enfim foi o último
homem que abandonou a cabeleira de rabicho.
Vivia o Major Vilela em Catumbi, acompanhado
de sua sobrinha Adelaide, e mais uma velha parenta. A sua vida era patriarcal.
Importando-se pouco ou nada com o que ia por fora, o major entregava-se todo ao
cuidado de sua casa, aonde poucos amigos e algumas famílias da vizinhança o iam
ver, e passar as noites com ele. O major conservava sempre a mesma alegria,
ainda nas ocasiões em que o reumatismo o prostrava. Os reumáticos dificilmente
acreditarão nisto; mas eu posso afirmar que era verdade.
Foi num dia de manhã, felizmente um dia em
que o major não sentia o menor achaque, e ria e brincava com as duas parentas,
que Soares apareceu em Catumbi à porta do tio.
Quando o major recebeu o cartão com o nome do
sobrinho, supôs que era alguma caçoada. Podia contar com todos em casa, menos o
sobrinho. Fazia já dois anos que o não via, e entre a última e a penúltima vez
tinha mediado ano e meio. Mas o moleque disse-lhe tão seriamente que o nhonhô
Luís estava na sala de espera, que o velho acabou por acreditar.
— Que te parece, Adelaide?
A moça não respondeu.
O velho foi à sala de visitas.
Soares tinha pensado no meio de aparecer ao
tio. Ajoelhar-se era dramático demais; cair-lhe nos braços exigia certo impulso
íntimo que ele não tinha; além de que, Soares vexava-se de ter ou fingir uma
comoção. Lembrou-se de começar uma conversação alheia ao fim que o levava lá, e
acabar por confessar-se disposto a arrepiar carreira. Mas este meio tinha o
inconveniente de fazer preceder a reconciliação por um sermão, que o rapaz
dispensava. Ainda não se resolvera a aceitar um dos muitos meios que lhe vieram
à ideia, quando o major apareceu à porta da sala.
O major parou à porta sem dizer palavra e
lançou sobre o sobrinho um olhar severo e interrogador.
Soares hesitou um instante; mas como a
situação podia prolongar-se sem benefício seu, o rapaz seguiu um movimento
natural: foi ao tio e estendeu-lhe a mão.
— Meu tio, disse ele, não precisa dizer mais
nada; o seu olhar diz-me tudo. Fui pecador e arrependo-me. Aqui estou.
O major estendeu-lhe a mão, que o rapaz
beijou com o respeito de que era suscetível.
Depois encaminhou-se para uma cadeira e
sentou-se; o rapaz ficou de pé.
— Se o teu arrependimento é sincero, abro-te
a minha porta e o meu coração. Se não é sincero podes ir embora; há muito tempo
que não frequento a casa da ópera: não gosto de comediantes.
Soares protestou que era sincero. Disse que
fora dissipado e doido, mas que aos trinta anos era justo ter juízo. Reconhecia
agora que o tio sempre tivera razão. Supôs ao princípio que eram simples
rabugices de velho, e mais nada; mas não era natural esta leviandade num rapaz educado
no vício? Felizmente corrigia-se a tempo. O que ele agora queria era entrar em
bom viver, e começava por aceitar um emprego público que o obrigasse a
trabalhar e fazer-se sério. Tratava-se de ganhar uma posição.
Ouvindo o discurso de que fiz o extrato
acima, o major procurava adivinhar o fundo do pensamento de Soares. Seria ele
sincero? O velho concluiu que o sobrinho falava com a alma nas mãos. A sua
ilusão chegou ao ponto de ver-lhe uma lágrima nos olhos, lágrima que não
apareceu, nem mesmo fingida.
Quando Soares acabou, o major estendeu-lhe a
mão e apertou a que o rapaz lhe estendeu também.
— Creio, Luís. Ainda bem que te arrependeste
a tempo. Isso que vivias não era vida nem morte; a vida é mais digna e a morte
mais tranquila do que a existência que malbarataste. Entras agora em casa como
um filho pródigo. Terás o melhor lugar à mesa. Esta família é a mesma família.
O major continuou por este tom; Soares ouviu
a pé quedo o discurso do tio. Dizia consigo que era a amostra da pena que ia
sofrer, e um grande desconto dos seus pecados.
O major acabou levando o rapaz para dentro,
onde os esperava o almoço.
Na sala de jantar estavam Adelaide e a velha
parenta. A Sra. Antônia de Moura Vilela recebeu Soares com grandes exclamações
que envergonharam sinceramente o rapaz. Quanto a Adelaide, apenas o
cumprimentou sem olhar para ele; Soares retribuiu o cumprimento.
O major reparou na frieza; mas parece que
sabia alguma coisa, porque apenas deu uma risadinha amarela, coisa que lhe era
peculiar.
Sentaram-se à mesa, e o almoço correu entre
as pilhérias do major, as recriminações da Sra. Antônia, as explicações do
rapaz e o silêncio de Adelaide. Quando o almoço acabou, o major disse ao
sobrinho que fumasse, concessão enorme que o rapaz a custo aceitou. As duas
senhoras saíram; ficaram os dois à mesa.
— Estás então disposto a trabalhar?
— Estou, meu tio.
— Bem; vou ver se te arranjo um emprego. Que
emprego preferes?
— O que quiser, meu tio, contanto que eu
trabalhe.
— Bem. Levarás amanhã, uma carta minha a um
dos ministros. Deus queira que possas obter o emprego sem dificuldade. Quero
ver-te trabalhador e sério; quero ver-te homem. As dissipações não produzem
nada, a não serem dívidas e desgostos... Tens dívidas?
— Nenhuma, respondeu Soares.
Soares mentia. Tinha uma dívida de alfaiate,
relativamente pequena; queria pagá-la sem que o tio soubesse.
No dia seguinte o major escreveu a carta
prometida, que o sobrinho levou ao ministro; e tão feliz foi, que daí a um mês
estava empregado em uma secretaria com um bom ordenado.
Cumpre fazer justiça ao rapaz. O sacrifício
que fez de transformar os seus hábitos da vida foi enorme, e a julgá-lo pelos
seus antecedentes, ninguém o julgara capaz de tal. Mas o desejo de perpetuar
uma vida de dissipação pode explicar a mudança e o sacrifício. Aquilo na
existência de Soares não passava de um parêntesis mais ou menos extenso.
Almejava por fechá-lo e continuar o período como havia começado, isto é,
vivendo com Aspásia e pagodeando com Alcibíades.
O tio não desconfiava de nada; mas temia que
o rapaz fosse novamente tentado à fuga, ou porque o seduzisse a lembrança das
dissipações antigas, ou porque o aborrecesse a monotonia e a fadiga do
trabalho. Com o fim de impedir o desastre, lembrou-se de inspirar-lhe ambição
política. Pensava o major que a política seria um remédio decisivo para aquele
doente, como se não fosse conhecido que os louros de Lovelace e os de Turgot
andam muita vez na mesma cabeça.
Soares não desanimou o major. Disse que era
natural acabar a sua existência na política, e chegou a dizer que algumas vezes
sonhara com uma cadeira no parlamento.
— Pois eu verei se te posso arranjar isto,
respondeu o tio. O que é preciso é que estudes a ciência da política, a
história do nosso parlamento e do nosso governo; e principalmente é preciso que
continues a ser o que és hoje: um rapaz sério.
Se bem o dizia o major, melhor o fazia
Soares, que desde então meteu-se com os livros e lia com afinco as discussões
das câmaras.
Soares não morava com o tio, mas passava lá
todo o tempo que lhe sobrava do trabalho, e voltava para casa depois do chá,
que era patriarcal, e bem diferente das ceatas do antigo tempo.
Não afirmo que entre as duas fases da
existência de Luís Soares não houvesse algum elo de união, e que o emigrante
das terras de Gnido não fizesse de quando em quando excursões à pátria. Em todo
o caso essas excursões eram tão secretas que ninguém sabia delas, nem talvez os
habitantes das referidas terras, com exceção dos poucos escolhidos para
receberem o expatriado. O caso era singular, porque naquele país não se
reconhece o cidadão naturalizado estrangeiro, ao contrário da Inglaterra, que
não dá aos súditos da rainha o direito de escolherem outra pátria.
Soares encontrava-se de quando em quando com
Pires. O confidente do convertido manifestava a sua amizade antiga
oferecendo-lhe um charuto de Havana e contando-lhe algumas boas fortunas
havidas nas campanhas do amor, em que o alarve supunha ser consumado general.
Havia já cinco meses que o sobrinho do Major
Vilela se achava empregado, e ainda os chefes da repartição não tinham tido um
só motivo de queixa contra ele. A dedicação era digna de melhor causa.
Exteriormente via-se em Luís Soares um monge; raspando-se um pouco achava-se o
diabo.
Ora, o diabo viu de longe uma conquista...
CAPÍTULO
3
A prima Adelaide tinha vinte e quatro anos, e
a sua beleza, no pleno desenvolvimento da sua mocidade, tinha em si o condão de
fazer morrer de amores. Era alta e bem proporcionada; tinha uma cabeça modelada
pelo tipo antigo; a testa era espaçosa e alta, os olhos rasgados e negros, o
nariz levemente aquilino. Quem a contemplava durante alguns momentos sentia que
ela tinha todas as energias, a das paixões e a da vontade.
Há de lembrar-se o leitor do frio cumprimento
trocado entre Adelaide e seu primo; também se há de lembrar que Soares disse ao
amigo Pires ter sido amado por sua prima. Ligam-se estas duas coisas. A frieza
de Adelaide resultava de uma lembrança que era dolorosa para a moça; Adelaide
amara o primo, não com um simples amor de primos, que em geral resulta da
convivência e não de uma súbita atração. Amara-o com todo o vigor e calor de
sua alma; mas já então o rapaz iniciava os seus passos em outras regiões e
ficou indiferente aos afetos da moça. Um amigo que sabia do segredo perguntou-lhe
um dia por que razão não se casava com Adelaide, ao que o rapaz respondeu
friamente:
— Quem tem a minha fortuna não se casa; mas
se se casa é sempre com quem tenha mais. Os bens de Adelaide são a quinta parte
dos meus; para ela é negócio da China; para mim é um mau negócio.
O amigo que ouvira esta resposta não deixou
de dar uma prova da sua afeição ao rapaz indo contar tudo à moça. O golpe foi
tremendo, não tanto pela certeza que lhe dava de não ser amada, como pela
circunstância de nem ao menos ficar-lhe o direito de estima. A confissão de
Soares era um corpo de delito. O confidente oficioso esperava talvez colher os
despojos da derrota; mas Adelaide, tão depressa ouviu a delação como desprezou
o delator.
O incidente não passou disto.
Quando Soares voltou à casa do tio, a moça
achou-se em dolorosa situação; era obrigada a conviver com um homem ao qual nem
podia dar apreço. Pela sua parte, o rapaz também se achava acanhado, não porque
lhe doessem as palavras que dissera um dia, mas por causa do tio, que ignorava
tudo. Não ignorava; o moço é que o supunha. O major soube da paixão de Adelaide
e soube também da repulsa que tivera no coração do rapaz. Talvez não soubesse
das palavras textuais repetidas à moça pelo amigo de Soares; mas se não conhecia
o texto, conhecia o espírito; sabia que, pelo motivo de ser amado, o rapaz
entrara a aborrecer a prima, e que esta, vendo-se repelida, entrara a aborrecer
o rapaz. O major supôs até durante algum tempo que a ausência de Soares tinha
por motivo a presença da moça em casa.
Adelaide era filha de um irmão do major,
homem muito rico e igualmente excêntrico, que morrera havia dez anos deixando a
moça entregue aos cuidados do irmão. Como o pai de Adelaide fizera muitas
viagens, parece que gastou nelas a maior parte da sua fortuna. Quando morreu
apenas coube a Adelaide, filha única, cerca de trinta contos, que o tio
conservou intactos para serem o dote da pupila.
Soares houve-se como pôde na singular
situação em que se achava. Não conversava com a prima; apenas trocava com ela
as palavras estritamente necessárias para não chamar a atenção do tio. A moça
fazia o mesmo.
Mas quem pode ter mão ao coração? A prima de
Luís Soares sentiu que pouco a pouco lhe ia renascendo o antigo afeto. Procurou
combatê-lo sinceramente; mas não se impede o crescimento de uma planta senão
arrancando-lhe as raízes. As raízes existiam ainda. Apesar dos esforços da moça
o amor veio pouco a pouco invadindo o lugar do ódio, e se até então o suplício
era grande, agora era enorme. Travara-se uma luta entre o orgulho e o amor. A
moça sofreu consigo; não articulou uma palavra.
Luís Soares reparava que quando os seus dedos
tocavam os da prima, esta experimentava uma grande emoção: corava e
empalidecia. Era um grande navegador aquele rapaz nos mares do amor:
conhecia-lhe a calma e a tempestade. Convenceu-se de que a prima o amava outra
vez. A descoberta não o alegrou; pelo contrário, foi-lhe motivo de grande
irritação. Receava que o tio, descobrindo o sentimento da sobrinha, propusesse
o casamento ao rapaz; e recusá-lo não seria comprometer no futuro a esperada
herança? A herança sem o casamento era o ideal do moço. "Dar-me asas,
pensava ele, atando-me os pés, é o mesmo que condenar-me à prisão. É o destino
do papagaio doméstico; não aspiro a tê-lo."
Realizaram-se as previsões do rapaz. O major
descobriu a causa da tristeza da moça e resolveu pôr termo àquela situação
propondo ao sobrinho o casamento.
Soares não podia recusar abertamente sem
comprometer o edifício da sua fortuna.
— Este casamento, disse-lhe o tio, é
complemento da minha felicidade. De um só lance reúno duas pessoas que tanto
estimo, e morro tranquilo sem levar nenhum pesar para o outro mundo. Estou que
aceitarás.
— Aceito, meu tio; mas observo que o
casamento assenta no amor, e eu não amo minha prima.
— Bem; hás de amá-la; casa-te primeiro...
— Não desejo expô-la a uma desilusão.
— Qual desilusão! disse o major sorrindo.
Gosto de ouvir-te falar essa linguagem poética, mas casamento não é poesia. É
verdade que é bom que duas pessoas antes de se casarem se tenham já alguma
estima mútua. Isso creio que tens. Lá fogos ardentes, meu rico sobrinho, são
coisas que ficam bem em verso, e mesmo em prosa; mas na vida, que não é prosa
nem verso, o casamento apenas exige certa conformidade de gênio, de educação e
de estima.
— Meu tio sabe que eu não me recuso a uma
ordem sua.
— Ordem, não! Não te ordeno, proponho. Dizes
que não amas tua prima; pois bem, faze por isso, e daqui a algum tempo casem-se
que me darão gosto. O que eu quero é que seja cedo, porque não estou longe de
dar à casca.
O rapaz disse que sim. Adiou a dificuldade
não podendo resolvê-la. O major ficou satisfeito com o arranjo e consolou a
sobrinha com a promessa de que podia casar-se um dia com o primo. Era a
primeira vez que o velho tocava em semelhante assunto, e Adelaide não
dissimulou o seu espanto, espanto que lisonjeou profundamente a perspicácia do
major.
— Ah! tu pensas, disse ele, que eu por ser
velho já perdi os olhos do coração? Vejo tudo, Adelaide; vejo aquilo mesmo que
se quer esconder.
A moça não pôde reter algumas lágrimas, e
como o velho a consolasse dando-lhe esperanças, ela respondeu abanando a
cabeça:
— Esperanças, nenhuma!
— Descansa em mim! disse o major.
Conquanto a dedicação do tio fosse toda
espontânea e filha do amor que votava à sobrinha, esta compreendeu que
semelhante intervenção podia fazer supor ao primo que ela esmolava os afetos do
seu coração.
Aqui falou o orgulho da mulher, que preferia
o sofrimento à humilhação. Quando ela expôs estas objeções ao tio, o major
sorriu-se afavelmente e procurou acalmar a suscetibilidade da moça.
Passaram-se alguns dias sem mais incidente; o
rapaz estava no gozo da dilação que lhe dera o tio. Adelaide readquiriu o seu
ar frio e indiferente. Soares compreendia o motivo, e àquela manifestação do
orgulho respondia com um sorriso. Duas vezes notou Adelaide essa expressão de
desdém da parte do primo. Que mais precisava para reconhecer que o rapaz sentia
por ela a mesma indiferença de outro tempo! Acrescia que sempre que os dois se
encontravam sós, Soares era o primeiro que se afastava dela. Era o mesmo homem.
"Não me ama, não me amará nunca!"
dizia a moça consigo.
CAPÍTULO
4
Um dia de manhã o major Vilela recebeu a
seguinte carta:
Meu valente major.
Cheguei da Bahia hoje mesmo, e lá irei de
tarde para ver-te e abraçar-te. Prepara um jantar. Creio que me não hás de
receber como qualquer indivíduo. Não esqueças o vatapá.
Teu amigo, Anselmo.
— Bravo! disse o major. Temos cá o Anselmo;
prima Antônia, mande fazer um bom vatapá.
O Anselmo que chegara da Bahia chamava-se
Anselmo Barroso de Vasconcelos. Era um fazendeiro rico, e veterano da
independência. Com os seus setenta e oito anos ainda se mostrava rijo e capaz
de grandes feitos. Tinha sido íntimo amigo do pai de Adelaide, que o apresentou
ao major, vindo a ficar amigo deste depois que o outro morrera. Anselmo
acompanhou o amigo até os seus últimos instantes; e chorou a perda como se fora
seu próprio irmão. As lágrimas cimentaram a amizade entre ele e o major.
De tarde apareceu Anselmo galhofeiro e vivo
como se começasse para ele uma nova mocidade. Abraçou a todos; deu um beijo em
Adelaide, a quem felicitou pelo desenvolvimento das suas graças.
— Não se ria de mim, disse-lhe ele, eu fui o
maior amigo de seu pai. Pobre amigo! morreu nos meus braços.
Soares, que sofria com a monotonia da vida
que levava em casa do tio, alegrou-se com a presença do galhofeiro ancião, que
era um verdadeiro fogo de artifício. Anselmo é que pareceu não simpatizar com o
sobrinho do major. Quando o major ouviu isto, disse:
— Sinto muito, porque Soares é um rapaz
sério.
— Creio que é sério demais. Rapaz que não ri...
Não sei que incidente interrompeu a frase do
fazendeiro.
Depois do jantar Anselmo disse ao major:
— Quantos são amanhã?
— Quinze.
— De que mês?
— É boa! de dezembro.
— Bem; amanhã 15 de dezembro preciso ter uma
conferência contigo e os teus parentes. Se o vapor se demora um dia em caminho
pregava-me uma boa peça.
No dia seguinte verificou-se a conferência
pedida por Anselmo. Estavam presentes o major, Soares, Adelaide e D. Antônia,
únicos parentes do finado.
— Faz hoje dez anos que faleceu o pai desta
menina, disse Anselmo apontando para Adelaide. Como sabem, o Dr. Bento Varela
foi o meu melhor amigo, e eu tenho consciência de haver correspondido à sua
afeição até aos últimos instantes. Sabem que ele era um gênio excêntrico; toda
a sua vida foi uma grande originalidade. Ideava vinte projetos, qual mais
grandioso, qual mais impossível, sem chegar ao cabo de nenhum, porque o seu
espírito criador tão depressa compunha uma coisa como entrava a planear outra.
— É verdade, interrompeu o major.
— O Bento morreu nos meus braços, e como
derradeira prova da sua amizade confiou-me um papel com a declaração de que eu
só o abrisse em presença dos seus parentes dez anos depois de sua morte. No
caso de eu morrer os meus herdeiros assumiriam essa obrigação; em falta deles,
o major, a Sra. D. Adelaide, enfim qualquer pessoa que por laço de sangue
estivesse ligada a ele. Enfim, se ninguém houvesse na classe mencionada, ficava
incumbido um tabelião. Tudo isto havia eu declarado em testamento, que vou
reformar. O papel a que me refiro, tenho aqui no bolso.
Houve um movimento de curiosidade.
Anselmo tirou do bolso uma carta fechada com
lacre preto.
— É este, disse ele. Está intacto. Não
conheço o texto; mas posso mais ou menos saber o que está dentro por
circunstâncias que vou referir.
Redobrou a atenção geral.
— Antes de morrer, continuou Anselmo, o meu
querido amigo entregou-me uma parte da sua fortuna, quero dizer a maior parte,
porque a menina recebeu apenas trinta contos. Eu recebi dele trezentos contos,
que guardei até hoje intactos, e que devo restituir segundo as indicações desta
carta.
A um movimento de espanto em todos seguiu-se
um movimento de ansiedade. Qual seria a vontade misteriosa do pai de Adelaide?
D. Antônia lembrou-se que em rapariga fora namorada do defunto, e por um
momento lisonjeou-se com a ideia de que o velho maníaco se houvesse lembrado
dela às portas da morte.
— Nisto reconheço eu o mano Bento, disse o
major tomando uma pitada; era o homem dos mistérios, das surpresas e das ideias
extravagantes, seja dito sem agravo aos seus pecados, se é que os teve...
Anselmo tinha aberto a carta. Todos prestaram
ouvidos. O veterano leu o seguinte:
Meu bom e estimadíssimo Anselmo.
Quero que me prestes o último favor. Tens
contigo a maior parte da minha fortuna, e eu diria a melhor se tivesse de
aludir à minha querida filha Adelaide. Guarda esses trezentos contos até daqui
a dez anos, e ao terminar o prazo, lê esta carta diante dos meus parentes.
Se nessa época a minha filha Adelaide for
viva e casada entrega-lhe a fortuna. Se não estiver casada, entrega-lha também,
mas com uma condição: é que se case com o sobrinho Luís Soares, filho de minha
irmã Luísa; quero-lhe muito, e apesar de ser rico, desejo que entre na posse da
fortuna com minha filha. No caso em que esta se recuse a esta condição, fica tu
com a fortuna toda.
Quando Anselmo acabou de ler esta carta
seguiu-se um silêncio de surpresa geral, de que partilhava o próprio veterano,
alheio até então ao conteúdo da carta.
Soares tinha os olhos em Adelaide; esta
tinha-os no chão.
Como o silêncio se prolongasse, Anselmo
resolveu rompê-lo.
— Ignorava, como todos, disse ele, o que esta
carta contém; felizmente chega ela a tempo de se realizar a última vontade do
meu finado amigo.
— Sem dúvida nenhuma, disse o major.
Ouvindo isto, a moça levantou insensivelmente
os olhos para o primo, e os dela encontraram-se com os dele. Os dele
transbordavam de contentamento e ternura; a moça fitou-os durante alguns
instantes. Um sorriso, já não zombeteiro, passou pelos lábios do rapaz. A moça
sorriu com tamanho desdém às zumbaias de um cortesão.
Anselmo levantou-se.
— Agora que estão cientes disto, disse ele
aos dois primos, espero que resolvam, e como o resultado não pode ser duvidoso,
desde já os felicito. Entretanto, hão de dar-me licença, que tenho de ir a
outras partes.
Com a saída de Anselmo dispersara-se a
reunião. Adelaide foi para o seu quarto com a velha parenta. O tio e o sobrinho
ficaram na sala.
— Luís, disse o primeiro, és o homem mais
feliz do mundo.
— Parece-lhe, meu tio? disse o moço
procurando disfarçar a sua alegria.
— És. Tens uma moça que te ama loucamente. De
repente cai-lhe nas mãos uma fortuna inesperada; e essa fortuna só pode havê-la
com a condição de se casar contigo. Até os mortos trabalham a teu favor.
— Afirmo-lhe, meu tio, que a fortuna não pesa
nada nestes casos, e se eu assentar em casar com a prima será por outro motivo.
— Bem sei que a riqueza não é essencial; não
é. Mas enfim vale alguma coisa. É melhor ter trezentos contos que trinta;
sempre é mais uma cifra. Contudo não te aconselho que te cases com ela se não
tiveres alguma afeição. Nota que eu não me refiro a essas paixões de que me
falaste. Casar mal, apesar da riqueza, é sempre casar mal.
— Estou convencido disto, meu tio. Por isso
ainda não dei a minha resposta, nem dou por ora. Se eu vier a afeiçoar-me à
prima estou pronto a entrar na posse dessa inesperada riqueza.
Como o leitor terá adivinhado, a resolução do
casamento estava assentada no espírito de Soares. Em vez de esperar a morte do
tio, parecia-lhe melhor entrar desde logo na posse de um excelente pecúlio, o
que se lhe afigurava tanto mais fácil, quanto que era a voz do túmulo que o
impunha.
Soares contava também com a profunda
veneração de Adelaide por seu pai. Isto, ligado ao amor que a rapariga sentia
por ele, devia produzir o desejado efeito.
Nessa noite o rapaz dormiu pouco. Sonhou com
o Oriente. Pintou-lhe a imaginação um harém recendente das melhores essências
da Arábia, forrado o chão com tapetes da Pérsia; sobre moles divãs
ostentavam-se as mais perfeitas belezas do mundo. Uma circassiana dançava no
meio do salão ao som de um pandeiro de marfim. Mas um furioso eunuco,
precipitando-se na sala com o iatagã desembainhado, enterrou-o todo no peito de
Soares, que acordou com o pesadelo, e não pôde mais conciliar o sono.
Levantou-se mais cedo e foi passear até
chegar a hora do almoço e da repartição.
CAPÍTULO
5
O plano de Luís Soares estava feito.
Tratava-se de abater as armas pouco a pouco,
simulando-se vencido diante da influência de Adelaide. A circunstância da
riqueza tornava necessária toda a discrição. A transição devia ser lenta.
Cumpria ser diplomata.
Os leitores terão visto que, apesar de certa
argúcia da parte de Soares, não tinha ele a perfeita compreensão das coisas, e
por outro lado o seu caráter era indeciso e vário.
Hesitara em casar com Adelaide quando o tio
lhe falou nisso, quando era certo que viria a obter mais tarde a fortuna do
major. Dizia então que não tinha vocação de papagaio. A situação agora era a
mesma; aceitava uma fortuna mediante uma prisão. É verdade que se esta
resolução era contrária à primeira, podia ter por causa o cansaço que lhe ia
produzindo a vida que levava. Além de que, desta vez, a riqueza não se fazia
esperar; era entregue logo depois do consórcio.
"Trezentos contos, pensava o rapaz, é
quanto basta para eu ser mais do que fui. O que não hão de dizer os
outros!"
Antevendo uma felicidade que era certa para
ele, Soares começou o assédio da praça, aliás praça rendida.
Já o rapaz procurava os olhos da prima, já os
encontrava, já lhes pedia aquilo que recusara até então, o amor da moça.
Quando, à mesa, as suas mãos se encontravam, Soares tinha o cuidado de demorar
o contato, e se a moça retirava a sua mão, o rapaz nem por isso desanimava.
Quando se encontrava a sós com ela, não fugia como outrora, antes lhe dirigia
alguma palavra, a que Adelaide respondia com fria polidez.
"Quer vender o peixe caro", pensava
Soares.
Uma vez atreveu-se a mais. Adelaide tocava
piano quando ele entrou sem que ela o visse. Quando a moça acabou, Soares
estava por trás dela.
— Que lindo! disse o rapaz; deixe-me
beijar-lhe essas mãos inspiradas.
A moça olhou séria para ele, pegou no lenço
que pusera sobre o piano, e saiu sem dizer palavra.
Esta cena mostrou a Soares toda a dificuldade
da empresa; mas o rapaz confiava em si, não porque se reconhecesse capaz de
grandes energias, mas por espécie de esperança na sua boa estrela.
— É difícil subir a corrente, disse ele, mas
sobe-se. Não se fazem Alexandres na conquista de praças desarmadas.
Contudo, as desilusões iam-se sucedendo, e o
rapaz, se o não alentasse a ideia da riqueza, teria abatido as armas.
Um dia lembrou-se de escrever-lhe uma carta.
Lembrou-se de que era difícil expor-lhe de viva voz tudo quanto sentia; mas que
uma carta, por muito ódio que ela lhe tivesse, sempre seria lida.
Adelaide devolveu a carta pelo moleque da
casa que lha havia entregue.
A segunda carta teve a mesma sorte. Quando
mandou a terceira, o moleque não a quis receber.
Luís Soares teve um instante de desengano.
Indiferente à moça, já começava a odiá-la; se casasse com ela era provável que
a tratasse como inimigo mortal.
A situação tornava-se ridícula para ele; ou
antes, já o era há muito, mas Soares só então o compreendeu. Para escapar ao
ridículo, resolveu dar um golpe final, mas grande. Aproveitou a primeira
ocasião que pôde, e fez uma declaração positiva à moça, cheia de súplicas, de
suspiros, talvez de lágrimas. Confessou os seus erros; reconheceu que não a
havia compreendido; mas arrependera-se e confessava tudo. A influência dela
acabara por abatê-lo.
— Abatê-lo! disse ela; não compreendo. A que
influência alude?
— Bem sabe; à influência da sua beleza, do
seu amor... Não suponha que lhe estou mentindo. Sinto-me hoje tão apaixonado
que era capaz de cometer um crime!
— Um crime?
— Não é crime o suicídio? De que me serviria
a vida sem o seu amor? Vamos, fale!
A moça olhou para ele durante alguns
instantes sem dizer palavra.
O rapaz ajoelhou-se.
Ou seja a morte, ou seja a felicidade, disse
ele, quero recebê-la de joelhos.
Adelaide sorriu e soltou lentamente estas
palavras:
— Trezentos contos! É muito dinheiro para
comprar um miserável.
E deu-lhe as costas.
Soares ficou petrificado. Durante alguns
minutos conservou-se na mesma posição, com os olhos fitos na moça que se
afastava lentamente. O rapaz dobrava-se ao peso da humilhação. Não previra tão
cruel desforra da parte de Adelaide. Nem uma palavra de ódio, nem um indício de
raiva; apenas um calmo desdém, um desprezo tranquilo e soberano. Soares sofrera
muito quando perdeu a fortuna; mas agora que o seu orgulho foi humilhado, a sua
dor foi infinitamente maior.
Pobre rapaz!
A moça foi para dentro. Parece que contava
com aquela cena; porque entrando em casa, foi logo procurar o tio, e
declarou-lhe que, apesar de quanto venerava a memória do pai, não podia
obedecer-lhe, e desistia do casamento.
— Mas não o amas tu? perguntou-lhe o major.
— Amei-o.
— Amas a outro?
— Não.
— Então explica-te.
Adelaide expôs francamente o procedimento de
Soares desde que ali entrara, a mudança que fizera, a sua ambição, a cena do
jardim. O major ouviu atentamente a moça, procurou desculpar o sobrinho, mas no
fundo ele acreditava que Soares era um mau caráter.
Este, depois que pôde refrear a sua cólera,
entrou em casa e foi despedir-se do tio até o dia seguinte.
Pretextou que tinha um negócio urgente.
CAPÍTULO
6
Adelaide contou miudamente ao amigo de seu
pai os sucessos que a obrigavam a não preencher a condição da carta póstuma
confiada a Anselmo. Em consequência desta recusa, a fortuna devia ficar com
Anselmo; a moça contentava-se com o que tinha.
Não se deu Anselmo por vencido, e antes de
aceitar a recusa foi ver se sondava o espírito de Luís Soares.
Quando o sobrinho do major viu entrar por
casa o fazendeiro suspeitou que alguma coisa houvesse a respeito do casamento.
Anselmo era perspicaz; de modo que, apesar da aparência de vítima com que
Soares lhe aparecera, compreendeu ele que Adelaide tinha razão.
Assim pois tudo estava acabado. Anselmo
dispôs-se a partir para a Bahia, e assim o declarou à família do major.
Nas vésperas de partir achavam-se todos
juntos na sala de visitas, quando Anselmo soltou estas palavras:
— Major, está ficando melhor e forte; eu
creio que uma viagem à Europa lhe fará bem. Esta moça também gostará de ver a
Europa, e creio que a Sra. D. Antônia, apesar da idade, lá quererá ir. Pela
minha parte sacrifico a Bahia e vou também. Aprovam o conselho?
— Homem, disse o major, é preciso pensar...
— Qual pensar! Se pensarem não embarcarão.
Que diz a menina?
— Eu obedeço ao tio, respondeu Adelaide.
— Além de que, disse Anselmo, agora que D.
Adelaide está de posse de uma grande fortuna, há de querer apreciar o que há de
bonito nos países estrangeiros a fim de poder melhor avaliar o que há no nosso...
— Sim, disse o major; mas você fala de grande
fortuna...
— Trezentos contos.
— São seus.
— Meus! Então sou algum ratoneiro? Que me
importa a mim a fantasia de um generoso amigo? O dinheiro é desta menina, sua
legítima herdeira, e não meu, que aliás tenho bastante.
— Isso é bonito, Anselmo!
— Mas o que não seria se não fosse isto?
A viagem à Europa ficou assentada.
Luís Soares ouviu a conversa toda sem dizer
palavra; mas a ideia de que talvez pudesse ir com o tio sorriu-lhe ao espírito.
No dia seguinte teve um desengano cruel. Disse-lhe o major que, antes de partir,
o deixaria recomendado ao ministro.
Soares procurou ainda ver se alcançava seguir
com a família. Era simples cobiça na fortuna do tio, desejo de ver novas
terras, ou impulso de vingança contra a prima? Era tudo isso, talvez.
À última hora foi-se a derradeira esperança.
A família partiu sem ele.
Abandonado, pobre, tendo por única
perspectiva o trabalho diário, sem esperanças no futuro, e além do mais,
humilhado e ferido em seu amor-próprio, Soares tomou a triste resolução dos
covardes.
Um dia de noite o criado ouviu no quarto dele
um tiro; correu, achou um cadáver.
Pires soube na rua da notícia, e correu à
casa de Vitória, que encontrou no toucador.
— Sabes de uma coisa? perguntou ele.
— Não. Que é?
— O Soares matou-se.
— Quando?
— Neste momento.
— Coitado! É sério?
— É sério. Vais sair?
— Vou ao Alcazar.
— Canta-se hoje Barbe— Bleue, não é?
— É.
— Pois eu também vou.
E entrou a cantarolar a canção de Barbe— Bleue.
Luís Soares não teve outra oração fúnebre dos
seus amigos mais íntimos.
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