Lourenço, o Magnífico
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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I
Quem conheceu, antes de 1914, o
corretor Lourenço Caruru, hoje não o conhecerá mais.
Lembram-se todos que ele ia ali,
ao Colombo, todas as tardes, tomar um ou dois cocktails; e, se lhe apareciam amigos, logo raspava-se para não
pagar mais. Tinha horror aos filantes; hoje, ele os procura, mas aos de alta
escola que aprendem com os modestos pilhérias e ditos.
Lourenço Caruru, só no ano de
1917, ganhou líquido oitocentos contos. Nos seus belos tempos dos dois cocktails por tarde de Colombo, Caruru
era um homem morigerado que, das “francesas”, só queria o cheiro; e, se por
acaso, uma delas lhe sentava à mesa, logo punha-se a tremer com medo que a
cara-metade lhe aparecesse.
Era homem da família.
Depois dos dois cocktails saía a bongar frutas, bombons
e quejandos, para levar para os filhos e netos.
Ganhando tanto dinheiro no curto
espaço de um ano, Lourenço ficou estonteado e julgou-se um príncipe magnífico.
A primeira coisa que arranjou foi
uma princesa — coisa que não lhe foi difícil nos mercados do Flamengo e do
Catete.
Correu a um estofador e
disse-lhe:
— Preciso mobiliar um appartement com gosto. É para uma
senhora estrangeira de fino trato.
Essa “senhora estrangeira de fino
trato” começara modestamente como caixeira de botequim em Estrasburgo,
passara-se para Paris com a profissão e tudo; e, daí, tentara fazer a “América
do Sul”, no que foi muito feliz, como se está vendo.
O tapeceiro, depois de ouvir o
homenzinho e pedir-lhe mais detalhes, disse-lhe o custo do appartement.
— Vinte contos.
— Mas, então, o senhor pensa que
eu sou um “pronto” por aí?! Que eu sou algum funcionário público?!
— Meu caro senhor — disse-lhe o
negociante —, eu fiz o orçamento médio. Havia nele todo o mobiliário para os
quartos de dormir, boudoir, sala de
visitas etc. etc. Mas se o senhor quer coisa melhor...
— Por certo! — exclamou o
corretor.
— Vou, então, organizar coisa
mais requintada.
— Faça e mande a conta. A senhora
virá examinar e combinar com o senhor tudo.
Dito e feito: o tapeceiro fez a
mesma coisa ou pouco mais do que aquilo que ia custar-lhe vinte contos,
cobrou-lhe cem, de acordo com a “madama”, que levou vinte por cento na
transação.
Mas Lourenço não estava
satisfeito. Queria passar como homem de gosto junto da “madama”. Queria
quadros, estátuas... arte!
De vista, ele conhecia vários
rapazes pintores; mas, por conhecê-los, não os julgava capazes de fazerem
qualquer trabalho de préstimo.
“Então, aquele tipo que vive na
porta da ‘Galeria’ pode fazer alguma coisa que preste? Qual!”
Nesse meio-tempo, desembarca um
afamado pintor egípcio, Sádi Ben Álfari, cujos méritos os jornais gabam com os
mais ternos adjetivos. Lourenço, que, naquele ano de 1918, ganhara, num negócio
de cereais e praça de navios, cerca de mil contos, compra-lhe a carregação toda
de quadros, ainda encaixotados na alfândega.
O tal pintor da terra dos faraós
mosca-se logo; e, quando Lourenço manda desencaixotar os quadros, fica admirado
de só encontrar neles, apesar de ser quase uma centena, a reprodução das
pirâmides e da ilha de File, à tarde, ao meio-dia e pela manhã.
“Madama”, que não tinha levado
nada na transação, passa-lhe uma grande descompostura e refuga-lhe os quadros.
Lourenço os distribui com os amigos, parentes e, até, leva alguns para a casa
da família.
Meses depois, os jornais anunciam
que o Sr. Ramkjolk, de Estocolmo, ia expor uma grande coleção de mármores
artísticos, dos mais célebres escultores da Suécia, no armazém de uma casa da
avenida Central.
O magnífico Lourenço lê a notícia
e a “madama” também.
Dias depois, resolvem ir ver os
mármores suecos que fizeram o ingente sacrifício de atravessar tantos mares
bravios, para nos edificar esteticamente; e os dois vão até eles, não só para
receberem um frisson de arte superior, pois os nervos de Lourenço não
suportavam outro, como também para adquirirem alguns.
Essa última parte foi logo
alvitrada por “madama”, que, a sós, já tinha examinado a exposição.
No automóvel de príncipes, vão
arrulhando, ele e “madama”. Chegam, “madama” quer este, Lourenço quer aquele; e
ambos querem aqueloutro.
Resultado: gastam duzentos contos
em estátuas.
Lourenço, o Magnífico, sai
radiante com a revelação inesperada da sua cultura artística; mas, subitamente,
ao transpor a porta de saída, lembra-se de alguma coisa e volta-se de repente,
para reentrar.
“Madama” assusta-se.
— Que é Lourenço?
— É preciso pôr o meu cartão em
cada um daqueles “calungas”.
II
Quando Lourenço Caruru, o
corretor nouveau-riche, deu balanço
dos seus lucros, em 1919, e viu que tinha ganho mais de mil contos, procurou
gastar o mais que pudesse, com repercussão, porém, nos jornais e nas rodas.
Vimos como ele gastou duzentos contos em mármores suecos, a que ele,
pitorescamente, denominou — “calungas”. Embora fizesse outros gastos tão
avultados, a sua fortuna em nada ressentiu deles, pois os ganhos em
especulações da “praça” de navios, de compra e venda de cereais, de carnes e,
até, na declaração de guerra do Brasil à Alemanha, foram tais que cobriram
todas as suas dissipações e as de “madama”, a princesa de brasserie, para quem montara uma luxuosa moradia.
Verificando tão extraordinários
lucros, Caruru pôs-se a pensar em que devia gastar dinheiro.
Ele estava na situação daquele
sujeito a quem o diabo dera uma carteira, contendo certa avultada quantia que
ele devia gastar totalmente até à meia-noite. Toda manhã, ela amanhecia cheia.
O sujeito supôs a coisa fácil e, durante os primeiros meses, cumpriu o pacto.
Jogava, bebia, viajava,
galanteava etc. etc.; mas vieram o enfado e o cansaço dessas coisas todas, e,
numa bela noite, chega-lhe a hora fatal das doze e ele não tinha gasto todo o
dinheiro da carteira.
O diabo surge-lhe e pergunta-lhe:
— Então? A tua alma é minha...
Não soubeste gastar o dinheiro...
— É que... estou doente.
— Qual, doente! Qual nada! —
objeta o demônio. — Se o soubesses gastar, terias escapado do inferno por toda
a eternidade.
— Como?
— Fazendo o bem.
Naqueles começos do ano de 1919,
Lourenço, o Magnífico, estava em situação semelhante. Ele não sabia como gastar
a cobreira que ganhara... Deu em mudar o estilo do mobiliário da casa; e fazia
as maiores extravagâncias.
“Madama” não tinha também grande
força de fantasia. No fundo, ela era uma pequena-burguesa, de gostos simples,
que fazia, com aqueles fingimentos de aventureira alto coturno, de Lady
Hamilton de um “rasta” brasileiro, numa cidade mais ou menos cheia de
selvagens, que fazia, explicava, o seu pecúlio com que, na sua segunda velhice,
pois estava na primeira, ficasse a coberto de necessidades, auxiliasse os
parentes e fizesse obras pias e de caridade que a levassem direitinho ao céu
dos justos, apesar de tudo.
Ambos sem fantasia, não atinavam
como gastar a melgueira, cujo ganho na algibeira de Caruru representava a
morte, a dor, o penoso trabalho de centenas de miseráveis.
A história de mudança do
mobiliário já estava cacete. Eram andorinhas pra cá; eram andorinhas pra lá. A
vizinhança, no contar dos criados, já troçava. “Madama” gostava, porque sempre
“refundia” o preço de venda da que se ia; mas, apesar de tal, teve medo do
ridículo e parou com a coisa.
Lourenço, o Magnífico, muito
menos fértil de imaginação fantasista, estava atarantado, mesmo porque, como o
tal sujeito da lenda, não sabia fazer o bem.
Os seus princípios de economia e
subordinação a um ganho restrito junto ao seu natural visceralmente seco tinham-no
feito viver à parte da Caridade. Sempre embirrara com os mendigos:
— É uma vergonha — dizia ele —
que, numa cidade como esta, um homem não possa andar, sem que não encontre dez
pobres, para lhe estender a mão. Que faz a polícia? O governo não cria asilos?
Há pessoas que têm medo de
defuntos; Lourenço, o Magnífico, sempre tivera ojeriza aos pobres e miseráveis.
Eram-lhe como espectros...
Não sabia, portanto, como aplicar
os seus desmedidos lucros; e tão enleado estava nessa atroz cogitação que até
pensou em arranjar outra “madama”. Era como ele sabia gastar... Mas... teve
medo. “Madama” no 1 era uma fera de ciúmes (ela é quem sabia de quem os tinha);
e bem podia fazer uma das suas. Lourenço, o Magnífico, não quis levar o
propósito avante; mas... precisava gastar dinheiro, fosse como fosse.
Uma tarde, em que ele chegara ao
seu appartement, antes de “madama”,
esta veio encontrá-lo, ao chegar ela da rua, sentado a ler os jornais
vespertinos. Falou-lhe “madama” com o seu português bordelengo em que ela
queria, na ocasião, pôr muita meiguice:
— Sabes, Lourenço, de uma coisa?
— Que é?
— Acabo de vir de uma exposição
de tapeçarias. Que coisas lindas! Dizem que foi de uma grande casa russa, cujos
membros conseguiram salvar do saque dos sanguinários socialistas que tomaram
conta da Rússia. Há até um autêntico gobelino; mas não foi deste que eu gostei.
O que gostei mais, foi de um “Hércules e Onfale”. Queres comprá-lo?
— Quanto custa?
— Vinte contos.
— Estás doida, filha! Ainda se
fosse em outra coisa; mas dar tanto dinheiro, para se pôr os pés... Nessa não
vou eu!...
“Madama” pôs-se de pé e disse com
todo desprezo:
— Burro! Selvagem! Sale singe! Pois você pensa que é um
tapete qualquer? Ora, bolas! É um verdadeiro quadro que se estende na parede.
Aprenda, macaquito!
— Não sabia — acudiu o corretor
humildemente — mas, se é assim, amanhã terá você o tapete.
Não só comprou esse, como mais
outros; e a “madama” ganhou dezoito contos de comissão.
III
Lourenço Caruru, o Magnífico,
depois que a guerra e a Liga pelos Aliados lhe fizeram ganhar centenas de
contos por ano, teve desejos de mostrar-se um homem fino, artista e apreciador
de belas coisas.
Já temos visto como ele se
mostrou conspícuo em matéria de artes plásticas e aplicadas; mas o que não
contei ainda foi como ele inaugurou, com grande orgulho monetário, a sua
biblioteca.
Caruru tinha por camarada um
adestrado leiloeiro com quem almoçava todo o dia, no restaurante mais caro do
centro comercial e mais banal do universo, enquanto “madama” sarandava por aí,
à cata de compras vultuosas em que ela ganhasse gordas comissões — meio
magnífico que encontrara para passar grande parte da fortuna do “Magnífico”
para as suas algibeiras.
Esse leiloeiro, o Cosme, viu bem
que, até então, só havia ganho com os estupendos lucros do Caruru almoços e
charutos. Era preciso ganhar mais alguma coisa.
Falou-lhe em móveis antigos, em
curiosidades de mobiliário, de toda a ordem. Caruru, porém, seguindo o conselho
da princesa, “madama”, só gostava de coisas novas. Esses objetos antigos, dizia
ele, consoante a sabedoria da Saúde Pública, têm gérmens de várias moléstias
transmissíveis e ele não ia nisso de morrer agora, quando ganhava dinheiro a
rodo e tinha ao lado aquela deliciosa “madama” que o fizera ressuscitar da
sepultura do lar burguês e honesto.
Cosme, entretanto, não desanimou
de ganhar algum dinheiro graúdo do seu “comensal riquíssimo” de opíparos
almoços.
Havia morrido um manipanso
célebre do foro, dos pareceres e dos apedidos do Jornal do Comércio, e Cosme tinha que lhe vender a biblioteca em
leilão. Era de fato preciosa, mas os livros preciosos e caros estavam virgens,
até de traças.
Cosme, logo que pôs a livraria no
armazém, tratou de seduzir o amigo para lhe comprar uns lotes.
— Não sabes Caruru que livros
raros há na biblioteca do conselheiro
Encerrabodes!
— Estrangeiros?
— Não; nacionais. Os livros
nacionais, quando rareiam, são mais raros do que os estrangeiros.
— Por quê?
— Porque, aqui, não há amor aos
livros, de forma que eles não são conservados de pais a netos. Ao contrário do
que acontece na Europa, onde os herdeiros quase sempre guardam as relíquias,
inclusive os livros, dos avós, sendo por isso fácil encontrar duplicatas,
triplicatas e mais.
— Então tens verdadeiras
preciosidades?
— Tenho.
— Quando é o leilão?
— Amanhã.
— Vou lá — disse Caruru com o ar
de um valentão que diz para outro: “Comigo é nove e tu não tiras farinha”.
Despediram-se, e Cosme logo
tratou de achar um comparsa que “picasse” os lances de Caruru.
No dia seguinte, o corretor lá
estava; Cosme distraiu-o até começar o leilão. Puseram em lotação uma obra cujo
título ele não ouviu bem. Um sujeito disse:
— Dois contos de réis.
Cosme, piscando o olho para
Caruru, gritou:
— Quem dá mais?
O “Magnífico” berrou:
— Dois contos e quinhentos.
O comparsa do leiloeiro berrou:
— Três contos!
O duelo continuou assim e a obra
coube a Lourenço pela ninharia de nove contos. Eram as leis e decisões do
Brasil, desde a Independência até um ano próximo àquele de tão memorável
compra. Dessa forma, comprou muitos outros.
Quando Caruru ia saindo orgulhoso
da vitória, alguém perguntou:
— O senhor deve ganhar muito
dinheiro na advocacia não é?
— Absolutamente não. Ganho muito
dinheiro com a guerra que os outros fazem e na qual morrem aos milheiros.
Achou a resposta irônica e sentiu
que tinha esmagado o idiota que pretendera debochá-lo.
Dias depois, possuía no famoso
apartamento o núcleo de uma bela e luxuosa biblioteca, para a qual era
perfeitamente analfabeto e que faria dormir o mais resistente a leituras
soporíferas.
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