Lívia
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
E todos os dias quando ela, de
manhã cedo, ia, ainda morrinhenta da cama, preparar o café matinal da família,
ia toda envolvida num nevoeiro de sonhos, sonhados durante um demorado dormir
de oito horas a fio. Por vezes — lá na cozinha, só, vigiando pacientemente a
água que fervia — ao lhe chegarem as reminiscências deles em tumulto, juntas,
borbulhava-lhe nos lábios uma interjetiva qualquer, eco desconexo do muito que
lhe falavam por dentro.
De quando em quando, sofreando um
gesto glorioso de satisfação, dizia — é ele — e isso de leve traduzia a grande
carícia que lhe era dado gozar naquele instante, refazendo aquele sonho bom —
tão bom e acariciador que bem lhe parecia um inebriamento de capitosos perfumes
a se evolar do Mistério vagarosamente, suavemente... Depois, logo que o café se
aprontava e, na sala de jantar, todos ao redor da mesa se punham a sorvê-lo,
mastigando o pão de cada dia — ela, d'olhos parados, presos a uma linha do
assoalho, levando compassadamente a xícara aos lábios, ficava a um canto a
pensar, remoendo a cisma, procurando decifrar naqueles traços nebulosos — tão
mal grudados pela memória — a figura viva daquele com quem, em sonhos, se vira
indo de braço dado ruas em fora.
Esforço a esforço, de evocação em
evocação, aparecia-lhe aos poucos a sua figura, o seu ar; e, após esse paciente
trabalho de reconstrução, lhe vinha, anunciado por um sorriso reprimido que lhe
encrespava radiosamente o semblante, o seu nome sílaba por sílaba...
Go-do-fre-do. Então com volúpia, ela lhe pesava os recursos: ganhava cento e
vinte, no emprego da Central, talvez, em breve, viesse a ter mais. Quarenta
para casa e o resto para o vestuário e alimentos.
Era pouco — convinha — mas
servia, pois, assim ficaria livre da tirania do cunhado, das impertinências do
pai; teria sua casa, seus móveis e, certamente, o marido lhe dando algum
dinheiro, ela — quem sabe! — que tão bons sonhos tinha, arriscando no
“bicho", aumentaria a renda do casal; e, quando assim fosse, havia de
comprar um corte de fazenda boa, um chapéu, de jeito que, sempre, pelo
Carnaval, iria melhorzinha à rua do Ouvidor, assistir passarem as sociedades.
O café já se havia acabado; e ela
ficara ainda distraída e sentada, quando soou de lá da sala de visitas a voz
vigorosa do cunhado:
—Lívia! Traz o meu guarda-sol que
ficou atrás da porta do quarto. Depressa!... Anda que faltam só oito minutos
para o trem!
E como se demorasse um pouco, o
Marques, redobrando de vigor no timbre, gritou:
— Oh! C'os diabos! Você ainda não
achou! Safa! Que gente mole! Humildemente, Lívia lá foi aos pulos, como uma
corça domesticada, entregar o objeto pedido, para lhe ser arrancado bruscamente
das mãos...
Envolvida ainda naquele sonho que
lhe soubera tão bem a manhã, ela, através das frinchas da veneziana viu o
cunhado atravessar a rua e se perder por entre o dédalo de casas.
Certificada disso, abriu a
janela. O subúrbio todo despertava languidamente.
As montanhas, verde-negras, quase
desnudas de vegetação, confusamente surgiam do seio da cerração tênue e
esgarçada. As casas listravam de branco e ocre o pardacento geral, enquanto
bocados de neblina, finos, adelgaçados, flutuavam sobre elas como sombras
erradias.
As ruas descalças e enlameadas
eram atravessadas por alguns transeuntes cabisbaixos, mal vestidos, andando
céleres em busca do embarcadouro. Corria, de resto, como sempre, morosamente o
viver diário; e a Lívia, sacudida pelo silvo agudo de uma locomotiva, levantou
de repente os olhos, até ali fitos na estação que emergia do ambiente pardo a
clarear-se, para pregá-los numa nesga do céu que o sol abria, por entre a
névoa, furiosamente, vitoriosamente.
A súbitas, sua alma voou, asas
abertas, voo rasgado, para outras bandas, outras regiões. Voou para a cidade de
luxo e elegância que, ao fim daquelas fitas de aço, refulgia e brilhava.
Representaram-se-lhe os teatros
de luxo, os bailes do tom, a rua da moda onde triunfavam as belezas. Ao
considerar isso, viu-se ali também, ela, sim! ela, que não era feia, tendo o
seu porte flexível e longo, envolvido de rendas, a desprender custosas essências
e aqueles seus dedos de unhas de nácar, ornados de ouro e pérolas, escolhendo,
na mais chique loja, cassas, baptistes,
voiles...
Numa galopada de sonhos, supôs
maiores coisas e — lembrando-se do que lhe contara a madrinha (oh! como era
rica!) – imaginou a Europa, aquelas terras soberbas, por onde a
"Dindinha" passeava a sua velhice e o seu egoísmo.
Doidamente revolvia a alma e as
cismas... Calculou-se lá também, na alameda de um soberbo jardim, de landau,
com ricas vestes ao corpo unidas, ressaltando delas o esplendor de suas formas
e o esguio patrício de seu corpo. Imaginou que, através de um caro chapéu de
palhinha branca, se coasse a luz macia do sol da Europa, polvilhando-lhe a tez
de ouro, em cujo fundo brilhassem muito os seus olhos vivos, negros e redondos.
— Oh! que bom! Quem me dera! —
quase exclamou por esse tempo.
De reviravolta, Lívia adivinhou
outra coisa no sonho. Não pensara bem; era outro que não o Godofredo, o rapaz
que imaginara.
Aquele nariz grosso, aquela testa
alta, o bigode ralo, não eram dele; eram antes do Siqueira, estudante de
farmácia, filho do agente. Esse poderia lhe dar aquilo — a Europa, o luxo —
pois que formado ganharia muito.
Dessa forma — resolvera
—"amarraria a lata" no Godofredo e "pegaria" com o
Siqueira. E era muito melhor! O Siqueira, afinal, ia formar-se, seria um marido
formado, ao braço do qual, se não fosse à Europa, viria a gozar de maior
consideração...
Demais a Europa era desnecessária
— para quê? Era querer muito. Quem muito quer nada tem; e ela para ter alguma
coisa devia querer pouco. Bastava pois que lhe tirassem dali, fosse esse, fosse
aquele; mas... se em todo o caso pudesse ser um mais assim... seria muito
melhor.
E desde quando vinha ela querendo
aquilo? Havia muitos anos; havia dez talvez. Desde os doze que namorava, que
"grelava" só para aquele fim; entretanto, apesar de haver tido mais
de quinze namorados, ainda ali estava, ainda ali ficava, sob o mando do
cunhado.
Quinze namorados!
Quinze! De que lhe serviram?
Um levara-lhe beijos, outro abraços,
outro uma e outra coisa; e sempre, esperando casar-se, isto é, libertar-se, ela
ia languidamente, passivamente deixando. Passavam um, dois meses, e os
namorados iam-se sem causa. Era feio, diziam; mas que fazer? como casar-se? Por
consequência, como viver? A sua própria mãe não lhe aconselhava? Não lhe dizia:
"Filha, anda com isso; preciso ver esta letra vencida"?
De resto, o amor lhe desculparia,
pois não é o amor o máximo tirano? Não é a própria essência da vida, das coisas
mudas, dos seres, enfim?
Porventura ela os amara? Teria
ela amado aquela legião de namorados? Amara um, sequer? Não sabia...
— O que é amar? interrogava
fremente.
Não é escrever cartas doces? Não
é corresponder a olhares? Não é dar aos namorados as ameaças da sua carne e da
sua volúpia?
— Se era isso, ela amara a todos,
um a um; se não era, a nenhum amara...
E o que era amar? Que era então?
Ao lhe chegar essa interrogação
metafísica, para o seu entendimento, ela se perdeu no próprio pensamento; as
ideias se baralharam, turbaram-se; e, depois, fatigada, foi passando
vagarosamente a mão esquerda pela testa, correu-a pacientemente pela cabeça
toda até à nuca. Por fim, como se fosse um suspiro, concluiu:
— Qual amor! Qual nada! A questão
é casar e para casar, namorar aqui, ali, embora por um se seja furtada em
beijos, por outro em abraços, por outro...
— Ó Lívia! Você hoje não pretende
varrer a casa, rapariga? Que fazes há tanto tempo na janela?!
Obedecendo ao chamado de sua mãe,
Lívia foi mais uma vez retomar a dura tarefa, da qual, ao seu julgar, só um
casamento havia de livrá-la para sempre, eternamente...
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...