Lágrimas de Xerxes
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Suponhamos (tudo é de supor) que Julieta e Romeu, antes que Frei Lourenço os casasse, travavam com ele este diálogo curioso:
JULIETA
Uma só pessoa?
FREI LOURENÇO
Sim, filha, e, logo que eu houver feito de
vós ambos uma só pessoa, nenhum outro poder vos desligará mais. Andai, andai,
vamos ao altar, que estão acendendo as velas... (Saem da cela e vão pelo corredor).
ROMEU
Para que velas? Abençoai-nos aqui mesmo. (Para diante de uma janela). Para que
altar e velas? O céu é o altar: não tarda que a mão dos anjos acenda ali as
eternas estrelas; mas, ainda sem elas, o altar é este. A igreja está aberta;
podem descobrir-nos. Eia, abençoai-nos aqui mesmo.
FREI LOURENÇO
Não, vamos para a igreja; daqui a pouco
estará tudo pronto. Curvarás a cabeça, filha minha, para que olhos estranhos,
se alguns houver, não cheguem a reconhecer-te...
ROMEU
Vã dissimulação; não há, em toda Verona, um
talhe igual ao da minha bela Julieta, nenhuma outra dama chegaria a dar a mesma
impressão que esta. Que impede que seja aqui? O altar não é mais que o céu.
FREI LOURENÇO
Mais eficaz que o céu.
ROMEU
Como?
FREI LOURENÇO
Tudo o que ele abençoa perdura. As velas que
lá verás arder hão de acabar antes dos noivos e do padre que os vai ligar;
tenho-as visto morrer infinitas; mas as estrelas...
ROMEU
Que tem? arderão ainda, nem ali nasceram
senão para dar ao céu a mesma graça da terra. Sim, minha divina Julieta, a Via—
Láctea é como o pó luminoso dos teus pensamentos, todas as pedrarias e
claridades altas e remotas, tudo isso está aqui perto e resumido na tua pessoa,
porque a lua plácida imita a tua indulgência, e Vênus, quando cintila, é com os
fogos da tua imaginação. Aqui mesmo, padre. Que outra formalidade nos pedes tu?
Nenhuma formalidade exterior, nenhum consentimento alheio. Nada mais que amor e
vontade. O ódio de outros separa-nos, mas o nosso amor conjuga-nos.
FREI LOURENÇO
Para sempre.
JULIETA
Conjuga-nos, e para sempre. Que mais então?
Vai a tua mão fazer com que parem todas as horas de uma vez. Em vão o sol
passará de um céu a outro céu, e tornará a vir e tornará a ir, não levará
consigo o tempo que fica a nossos pés como um tigre domado. Monge amigo, repete
essa palavra amiga.
FREI LOURENÇO
Para sempre.
JULIETA
Para sempre! amor eterno! eterna vida!
Juro-vos que não entendo outra língua senão essa. Juro-vos que não entendo a
língua de minha mãe.
FREI LOURENÇO
Pode ser que tua mãe não entendesse a língua
da mãe dela. A vida é uma Babel, filha; cada um de nós vale por uma nação.
ROMEU
Não aqui, padre; ela e eu somos duas
províncias da mesma linguagem, que nos aliamos para dizer as mesmas orações,
com o mesmo alfabeto e um só sentido. Nem há outro sentido que tenha algum
valor na terra. Agora, quem nos ensinou essa linguagem divina não sei eu nem
ela; foi talvez alguma estrela. Olhai, pode ser que fosse aquela primeira que
começa a cintilar no espaço.
JULIETA
Que mão celeste a terá acendido? Rafael,
talvez, ou tu, amado Romeu. Magnífica estrela, serás a estrela da minha vida,
tu, que marcas a hora do meu consórcio. Que nome tem ela, padre?
FREI LOURENÇO
Não sei de astronomias, filha.
JULIETA
Hás de saber por força. Tu conheces as letras
divinas e humanas, as próprias ervas do chão, as que matam e as que curam...
Dize, dize...
FREI LOURENÇO
Eva eterna!
JULIETA
Dize o nome dessa tocha celeste, que vai
alumiar as minhas bodas, e casai-nos aqui mesmo. Os astros valem mais que as
tochas da terra.
FREI LOURENÇO
Valem menos. Que nome tem aquele? Não sei. A
minha astronomia não é como a dos outros homens. (Depois de alguns instantes de reflexão) Eu sei o que me contaram os
ventos, que andam cá e lá, abaixo e acima, de um tempo a outro tempo, e sabem
muito, porque são testemunhas de tudo. A dispersão não lhes tira a unidade, nem
a inquietação a constância.
ROMEU
E que vos disseram eles?
FREI LOURENÇO
Coisas duras. Heródoto conta que Xerxes um
dia chorou; mas não conta mais nada. Os ventos é que me disseram o resto,
porque eles lá estavam ao pé do capitão, e recolheram tudo... Escutai; aí
começam eles a agitar-se; ouviram-nos falar e murmuram... Uivai, amigos ventos,
uivai como nos jovens dias das Termópilas.
ROMEU
Mas que te disseram eles? Contai, contai
depressa.
JULIETA
Fala a gosto, nós te esperaremos.
FREI LOURENÇO
Gentil criatura, aprende com ela, filho,
aprende a tolerar as demasias de um velho lunático. O que é que me disseram?
Melhor fora não repeti-lo; mas, se teimais em que vos case aqui mesmo, ao
clarão das estrelas, dir-vos-ei a origem daquela, que parece governar todas as
outras... Vamos, ainda é tempo, o altar espera-nos... Não? teimosos que sois...
Contar-vos-ei o que me disseram os ventos, que lá estavam em torno de Xerxes,
quando este vinha destruir a Hélade com tropas inumeráveis. As tropas marchavam
diante dele, a poder de chicote, porque esse homem cru amava particularmente o
chicote e empregava-o a miúdo, sem hesitação nem remorso. O próprio mar, quando
ousou destruir a ponte que ele mandara construir, recebeu em castigo trezentas
chicotadas. Era justo; mas para não ser somente justo, para ser também
abominável, Xerxes ordenou que decapitassem a todos os que tinham construído a
ponte e não souberam fazê-la imperecível. Chicote e espada; pancada e sangue.
JULIETA
Oh! abominável!
FREI LOURENÇO
Abominável, mas forte. Força vale alguma
coisa; a prova é que o mar acabou aceitando o jugo do grande persa. Ora, um
dia, à margem do Helesponto, curioso de contemplar as tropas que ali ajuntara,
no mar e em terra, Xerxes trepou a um alto morro feitiço, donde espalhou as
vistas para todos os lados. Calculai o orgulho que ele sentiu. Viu ali gente
infinita, o melhor leite mungido à vaca asiática, centenas de milhares ao pé de
centenas de milhares, várias armas, povos diversos, cores e vestiduras
diferentes, mescladas, baralhadas, flecha e gládio, tiara e capacete, pelo de
cabra, pele de cavalo, pele de pantera, uma algazarra infinita de coisas. Viu e
riu; farejava a vitória. Que outro poder viria contrastá-lo? Sentia-se
indestrutível. E ficou a rir e a olhar com longos olhos ávidos e felizes, olhos
de noivado, como os teus, moço amigo...
ROMEU
Comparação falsa. O maior déspota do universo
é um miserável escravo, se não governa os mais belos olhos femininos de Verona.
E a prova é que, a despeito do poder, chorou.
FREI LOURENÇO
Chorou, é certo, logo depois, tão depressa
acabara de rir. A cara embruscou-se-lhe de repente, e as lágrimas saltaram-lhe
grossas e irreprimíveis. Um tio do guerreiro, que ali estava, interrogou-o
espantado; ele respondeu melancolicamente que chorava, considerando que de
tantos milhares e milhares de homens que ali tinha diante de si, e às suas
ordens, não existiria um só ao cabo de um século. Até aqui Heródoto; escutai
agora os ventos. Os ventos ficaram atônitos. Estavam justamente perguntando uns
aos outros se esse homem feito de ufania e rispidez teria nunca chorado em sua
vida, e concluíam que não, que era impossível, que ele não conhecia mais que
injustiça e crueldade, não a compaixão. E era a compaixão que ali vinha
lacrimosa, era ela que soluçava na garganta do tirano... Então eles rugiram de
assombro; depois pegaram das lágrimas de Xerxes... Que farias tu delas?
ROMEU
Secá-las-ia, para que a piedade humana não
ficasse desonrada.
FREI LOURENÇO
Não fizeram isso; pegaram das lágrimas todas
e deitaram a voar pelo espaço fora, bradando às considerações: Aqui estão!
olhai! olhai! aqui estão os primeiros diamantes da alma bárbara! Todo o
firmamento ficou alvoroçado; pode crer-se que, por um instante, a marcha das
coisas parou. Nenhum astro queria acabar de crer nos ventos. Xerxes! Lágrimas
de Xerxes eram impossíveis; tal planta não dava em tal rochedo. Mas ali estavam
elas; eles as mostravam, contando a sua curiosa história, o riso que servira de
concha a essas pérolas, as palavras dele, e as constelações não tiveram
remédio, e creram finalmente que o duro Xerxes houvesse chorado. Os planetas
miraram longo tempo essas lágrimas inverossímeis; não havia negar que traziam o
amargo da dor e o travo da melancolia. E quando pensaram que o coração que as
brotara de si tinha particular amor ao estalido do chicote, deitaram um olhar
oblíquo à terra, como perguntando de que contradições era ela feita. Um deles
disse aos ventos que devolvessem as lágrimas ao bárbaro, para que as engolisse;
mas os ventos responderam que não e detiveram-se para deliberar. Não cuideis
que só os homens dissentem uns dos outros.
JULIETA
Também os ventos?
FREI LOURENÇO
Também eles. O Aquilão queria convertê-las em
tempestades do mundo, violentas e destruidoras, como o homem que as gerara; mas
os outros ventos não aceitaram a ideia. As tempestades passam ligeiras; eles
queriam alguma coisa que tivesse perenidade, um rio, por exemplo, ou um mar
novo; mas não combinaram nada e foram ter com o sol e a lua. Tu conheces a lua,
filha.
ROMEU
A lua é ela mesma; uma e outra são a plácida
imagem da indulgência e do carinho; é o que eu te disse há pouco, meu bom
confessor.
JULIETA
Não, não creias nada do que ele disser,
freire amigo; a lua é a minha rival, é a rival que alumia de longe o belo rosto
do galhardo Romeu, que lhe dá um resplendor de opala, à noite, quando ele vem
pela rua...
FREI LOURENÇO
Terão ambos razão. A lua e Julieta podem ser
a mesma pessoa, e é por isso que querem o mesmo homem. Mas, se a lua és tu,
filha, deves saber o que ela disse ao vento.
JULIETA
Nada, não me lembra nada.
FREI LOURENÇO
Os ventos foram ter com ela, perguntaram-lhe
o que fariam das lágrimas de Xerxes, e a resposta foi a mais piedosa do mundo.
Cristalizemos essas lágrimas, disse a lua, e façamos delas uma estrela que
brilhe por todos os séculos, com a claridade da compaixão, e onde vão residir
todos aqueles que deixarem a terra, para achar ali a perpetuidade que lhes
escapou.
JULIETA
Sim, eu diria a mesma coisa. (Olhando pela janela) Lume eterno, berço
de renovação, mundo do amor continuado e
infinito, estávamos ouvindo a tua bela história.
FREI LOURENÇO
Não, não, não.
JULIETA
Não?
FREI LOURENÇO
Não, porque os ventos foram também ao sol, e
tu que conheces a lua, não conheces o sol, amiga minha. Os ventos levaram-lhe
as lágrimas, contaram a origem delas e o conselho do astro da noite, e falaram
da beleza que teria essa estrela nova e especial. O sol ouviu-os e redarguiu
que sim, que cristalizassem as lágrimas e fizessem delas uma estrela; mas nem
tal como o pedia a lua, nem para igual fim. Há de ser eterna e brilhante, disse
ele, mas para a compaixão basta a mesma lua com a sua enjoada e dulcíssima
poesia. Não; essa estrela feita das lágrimas que a brevidade da vida arrancou
um dia ao orgulho humano ficará pendente do céu como o astro da ironia, luzirá
cá de cima sobre todas as multidões que passam, cuidando não acabar mais e
sobre todas as coisas construídas em desafio dos tempos. Onde as bodas cantarem
a eternidade, ela fará descer um dos seus raios, lágrima de Xerxes, para
escrever a palavra da extinção, breve, total, irremissível. Toda epifania
receberá esta nota de sarcasmo. Não quero melancolias, que são rosas pálidas da
lua e suas congêneres; — ironia, sim, uma dura boca, gelada e sardônica...
ROMEU
Como? Esse astro esplêndido...
FREI LOURENÇO
Justamente, filho; e é por isso que o altar é
melhor que o céu; no altar a benta vela arde depressa e morre às nossas vistas.
JULIETA
Conto de ventos!
FREI LOURENÇO
Não, não.
JULIETA
Ou ruim sonho de lunático. Velho lunático
disseste há pouco; és isso mesmo. Vão sonho ruim, como os teus ventos, e o teu
Xerxes, e as tuas lágrimas, e o teu sol, e toda essa dança de figuras
imaginárias.
FREI LOURENÇO
Filha minha...
JULIETA
Padre meu, que não sabes que há, quando
menos, uma coisa imortal, que é o meu amor, e ainda outra, que é o incomparável
Romeu. Olha bem para ele; vê se há aqui um soldado de Xerxes. Não, não, não.
Viva o meu amado, que não estava no Helesponto, nem escutou os desvarios dos
ventos noturnos, como este frade, que é a um tempo amigo e inimigo. Sê só
amigo, e casa-nos. Casa-nos onde quiseres, aqui ou além, diante das velas ou
debaixo das estrelas, sejam elas de ironia ou de piedade; mas casa-nos,
casa-nos, casa-nos...
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