11/12/2017

João Silva (Conto), de Artur Azevedo


João Silva
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Em casa do Comendador Freitas, na Fábrica das Chitas, andavam todos "intrigados" com aquele flautista misterioso que, em companhia de um preto velho, taciturno e discreto, morava, havia perto de dois meses, numa casinha cujos fundos davam para os fundos da chácara.

Quando digo "todos", não digo a verdade, porque o vizinho não era completamente estranho à senhorita Sara, filha única do aludido Comendador. Encontrara-o algumas vezes na cidade, ora nos teatros, ora em passeio, e sempre lhe parecera que ele a olhava com certa insistência e algum interesse.
Conquanto não fosse precisamente um Adônis, esse desconhecido começava a impressionar o seu espírito de moça, até então despreocupado e tranquilo, quando certa manhã os sons maviosos de uma flauta atraíram a sua atenção para a casinha dos fundos, e ela reconheceu no vizinho que, sentado num banco de ferro, sob uma velha latada de maracujás, soprava o sugestivo instrumento de Pã, o mesmo indivíduo cujos olhares a perseguiam na rua ou no teatro.
Dizer que esse encontro não produziu o romanesco efeito com que naturalmente contava o melômano seria faltar à verdade que devo a meus leitores. Não, a senhorita Sara não se contrariou com avistar ali o moço que parecia distingui-la em toda a parte onde o acaso os reunia. Não quer isto dizer houvesse dentro dela outra coisa mais que uma sensação passageira, mas o caso é que a filha do Comendador Freitas não fez a esse respeito a menor confidência a nenhuma pessoa da casa, e esta reserva era, talvez, o prenúncio de um sentimento mais decisivo.
Todavia, todos em casa, amos e criados, se preocupavam muito com o inquilino da casinha dos fundos.
A coisa não era para menos. O rapaz (era ainda um rapaz: poderia ter trinta anos) erguia-se muito cedo e punha-se a jardinar, plantando, enxertando, podando, regando, e gastava nisso duas horas. Quando ele foi ali residir, o quintal estava abandonado, o mato invadira e destruíra tudo, poupando apenas a latada de maracujás. Pouco a pouco, sozinho, sem o auxílio de ninguém, trabalhando das seis às oito horas da manhã, ele havia ajardinado o terreno, onde já se ostentavam lindíssimas flores.
Às nove horas, o preto velho, que provavelmente acumulava as funções de criado de quarto, copeiro, cozinheiro, vinha chamá-lo para almoçar. Depois do almoço ele saía, esperava o bonde, e lá ia para a cidade. Voltava às quatro horas, jantava; depois do jantar acendia um charuto e passeava no quintal, examinando as plantas, que umas vezes regava e outras não. Ao cair da tarde pegava na flauta e saudava o crepúsculo com as suas músicas tristes e saudosas. Depois, vinham as trevas da noite, e ninguém mais o via senão no dia seguinte, de manhã muito cedo, recomeçando a existência da véspera.
Nada houvera de notar, se um dia ou outro sofresse qualquer modificação aquele gênero de vida, mas não! Aquilo passava-se diariamente com uma uniformidade cronométrica, e toda a gente em casa do Comendador Freitas perdia-se em conjecturas.
O que havia de mais singular na existência daquele moço era, talvez, o fato de ele não receber visitas nem as fazer. Naquela idade, isso era inexplicável.
O Comendador tinha-o na conta de um misantropo, enfezado contra a sociedade: na opinião de D. Andreza, sua esposa, era um viúvo inconsolável. D. Irene, irmã de D. Andreza, tinha, como em geral as solteironas, o mau vezo de dizer mal de todos, conhecidos e desconhecidos: por isso afirmava que o vizinho era um bilontra, que se escondia ali para escapar aos credores. Tinha cada qual a sua opinião, e divergiam todos uns dos outros.
O copeiro quis certificar-se da verdade interrogando o preto velho, mas este a todas as perguntas respondia invariavelmente que sabia de nada. A dar-lhe crédito, ele ignorava até o nome do patrão.
Entretanto, de olhadela em olhadela, de sorriso em sorriso, tinha-se estabelecido aos poucos um namoro em regra entre o flautista e a filha do Comendador Freitas.
Da janela do seu quarto, a senhorita Sara podia namorá-lo, sem ser vista por ninguém, nem que ninguém suspeitasse, nem mesmo D. Irene, que via mosquitos na lua.
Naturalmente a moça ardia em desejos de verificar a identidade do vizinho, e não tardou que o fizesse. Uma tarde, quando os olhares e os sorrisos dela já se haviam longamente familiarizado com os dele, o solitário, depois de modular na flauta uma enternecedora melopeia, mostrou à senhorita Sara um objeto que tinha na mão, e atirou-o por cima do muro na chácara. Era uma pedra, envolta num pedaço papel, em que vinha uma declaração de amor redigida em termos respeitosos.
A moça, que não era avoada, hesitou longos dias se devia ou ao responder, mas respondeu afinal, servindo-se da mesma pedra.
E durante muito tempo andou a pedra de cá para lá, de lá paca, da chácara para o quintal, do quintal para a chácara, aproximando um do outro aqueles dois corações separados por um muro.
Por um muro? Não! Por uma invencível muralha!
O namorado chamava-se João Silva, como toda a gente; não tinha parentes nem aderentes; era um empregado público paupérrimo, ganhando muito pouco; ainda assim, pediria imediatamente a mão da senhorita Sara, se esta se sujeitasse a viver tão pobremente. Sabia a moça que o pai era ambicioso, desejava que ela se casasse com algum negociante em boas condições de fortuna ou pelo menos bem encaminhado, e participou a João Silva os seus receios.
Um velho amigo do Comendador, o comandante Pedroso, oficial de Marinha reformado, padrinho de batismo da senhorita Sara, infalível aos domingos na Fábrica das Chitas, havia se comprometido com a família Freitas a indagar e descobrir quem era o flautista.
Por esse tempo, o comandante apareceu em casa dos compadres, levando as mais completas informações acerca do misterioso vizinho, informações que concordavam inteiramente com o que já sabia a senhorita Sara.
— É um empregadinho da Alfândega, disse o comandante com ar desdenhoso; não tem onde cair morto!
Mas acrescentou:
— Um esquisitão, muito metido consigo; entretanto, não é mau rapaz, nem mau funcionário.
Essas informações fizeram com que dali por diante o vizinho deixasse de ser objeto de curiosidade, o que facilitou extraordinariamente os seus amores, prosseguindo estes com tanta intensidade, que a senhorita Sara, aconselhada por João Silva, resolveu dizer tudo à mãe.
D. Andreza, que desejava ser sogra de um príncipe, caiu das nuvens, zangou-se, bateu o pé, chorou, quis ter um ataque de nervos, e intimou a filha a acabar com "essa pouca-vergonha", pois do contrário o pai mandaria dar uma tunda de pau no tal patife!
D. Irene, a quem D. Andreza transmitiu a confidência que recebera, ficou furiosa, e aconselhou a irmã que contasse tudo ao marido. A outra assim fez.
O Comendador Freitas, para quem a vida de família correra até então sem o menor incidente desagradável, e que não estava, portanto, preparado para essa crise doméstica, perdeu a cabeça, e deu por paus e por pedras. Em vez de chamar a filha e admoestá-la brandamente, fazendo-lhe ver que futuro a esperava em companhia de um homem sem recursos para mantê-la dignamente, esbravejou como um possesso, mandou fechar a pregos a janela do quarto da rapariga, ameaçou e insultou em altos brados o rapaz, que lhe não respondeu, e levou a toleima ao ponto de ir à delegacia queixar-se que lhe namoravam a filha! Foi um escândalo com que se regalou a vizinhança.
Esse tratamento desabrido fez com que despertassem na senhorita Sara instintos de revolta, e aquele inocente capricho, que o carinho paterno poderia destruir, transformou-se em paixão indômita e violenta — tão violenta que a moça adoeceu.
Aproveitando o pretexto dessa doença, o pai levou-a para Jacarepaguá, onde alugou um sítio.
Foi em Jacarepaguá que o comandante Pedroso, aparecendo um belo domingo em que a convalescente devia fugir de casa — pois o João Silva, por artes do diabo, que só lembram aos namorados, achou meios e modos de se comunicar com ela —, foi em Jacarepaguá, dizíamos, que o comandante Pedroso deu parte ao compadre que tinha arranjado para a afilhada um casamento de truz: o Pedro Linhares, herdeiro de um dos agricultores mais abastados de São Paulo. O rapaz voltara da Europa e vira, num teatro, a senhorita Freitas. Sabendo que ele, comandante, era padrinho da moça, procurara-o para pedir-lhe que o apresentasse à família.
— Esse casamento seria uma felicidade, disse o Comendador; mas, infelizmente, a pequena continua apaixonada pelo flautista; não há meio de lho tirar da cabeça!
— Qual não há meio nem qual carapuça! Você vai logo às do cabo e quer levar tudo à valentona! Deixe-me falar com ela... verá como a decido a aceitar o paulista!
— Você!
— Eu, sim!
— Duvido!
— Não custa nada experimentar. Oh, Santa, vem cá, minha filha! Vamos aí à sala que te quero dar uma palavra!
E voltando-se para os compadres:
— Façam favor de não interromper a nossa conferência!
O padrinho fechou-se na sala com a afilhada, e tão persuasivo foi, que um quarto de hora depois — um quarto de hora apenas! — saíram ambos muito contentes. A senhorita Sara parecia outra!
A estupefação foi geral.
— Conseguiste alguma coisa? — perguntou o pai ao padrinho.
— Consegui tudo. Agora peço-te licença para ir buscar o Pedro Linhares, que ficou esperando na estrada.
O comandante saiu e voltou logo com o rico paulista, que o esperava na cancela, à entrada do sítio.
Imaginem qual foi a surpresa da família vendo João Silva, o flautista!
O Comendador começou a esbravejar, conforme o seu costume; D. Andreza e D. Irene caíram sentadas no canapé, dispondo-se a ter cada uma o seu ataque de nervos; mas o comandante serenou os ânimos, gritando com toda a força dos seus pulmões:
— Este é o senhor Pedro Linhares!
Houve um silêncio tumular, que o recém-chegado cortou com estas palavras:
— Senhor Comendador, minhas senhoras, vou explicar-lhes tudo. Quando cheguei da Europa, fiquei perdido de amores por dona Santa desde o primeiro dia em que a vi; mas como sou muito rico, e muito desejado, entendi dever conquistá-la por mim e não pelos meus contos de réis. Por isso, e de combinação com o meu amigo aqui presente...
E apontou para o comandante, que sorriu.
-...Me fiz passar por um pobretão, representando uma comédia cujo desenlace foi o mais feliz que podia ser. Hoje que, a despeito da vigilância paterna, dona Santa deveria fugir deste sítio em companhia de João Silva, Pedro Linhares, tendo a certeza de que é amado, deixa o seu incógnito, e vem pedi-la em casamento.
A moralidade do conto é consoladora para os pobres: quem tem muito dinheiro não confia em si.

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