Jaburu Malandro
(Os Contos de Belazarte)
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Belazarte me contou:
Pois é... tem vidas assim, tão
bem preparadinhas, sem surpresa... São ver gaveta arranjada, com que facilidade
você tira a cueca até no escuro, mesmo que ela esteja no fundo! Mas vem um
estabanado, revira tudo, que-dê cueca? — Maria, você não viu a minha cueca
listrada de azul? — Está aí mesmo, seu dotoire! — Não está! Já procurei, não
está... E é um custo a gente encontrar a cueca. Você se lembra do João? Ara, se
lembra! o padeiro que gostava da Rosa, aquela uma que casou com o mulato...
Pois quando contei o caso, falei que o João não era homem educado pra estar
cultivando males de amor... Sofreu uns pares de dias, até bebeu, se lembra? e
encontrou a Carmela que principiou a consolá-lo. Não durou muito se consolou.
Os dois passavam uma porção de vinte minutos ali na cerca, falando nessas
coisas corriqueiras que alimentam amor de gente pobre.
Ora a Carmela... será que ela
gostava mesmo do João? Difícil de saber. Era moça bonita, isso era, desses
tipos de italiana que envelhecem muito cedo, isto é, envelhecem não, engordam,
ficam chatas, enjoativas. Porém nos dezenove, que gostosura! Forte, um pouco
baixa, beiços tão repartidinhos no centro, um trevo encarnado! Cabelo mais
preto nem de brasileira! Porém o sublime era a pele, com todos os cambiantes do
rosado, desde o róseo-azul do queixo com as veinhas de cá pra lá sapecas, até o
rubro esplendor ao lado dos olhos, querendo extravasar pela fronte nos dias de
verão brabo. Filha de italiano já se sabe...
Mas Carmela não tinha a ciência
das outras moças italianas daqui. Pudera, as outras saíam todo santo dia,
frequentavam as oficinas de costura, as mais humildes estavam nos curtumes, na
fiação, que acontecia? Se acostumavam com a vida. Não tinha homem que não lhes
falasse uma graça ou no mínimo olhasse pra elas daquele jeito que ensina as
coisas. Ficavam sabendo logo de tudo e até segredavam imoralidades umas pras
outras, nos olhos. Ficavam finas, de tanta grosseria que escutavam. A grosseria
vinha, pam! batia nelas. Geralmente caía no chão. Poucas, em comparação ao
número delas, muito poucas se abaixavam pra erguer a grosseria. Essas se
perdiam, as pobres! Se não casavam na Polícia, o que era uma felicidade rara,
davam nas pensões.
Nas outras a grosseria relava
apenas, escorregando pro chão. Mas o choque desbastava um pouco essa crosta
inútil de inocência que reveste a gente no começo. Ficavam sabendo, se
acostumavam facilmente com o manejo da vida e escolhiam depois o rapaz que mais
lhes convinha, seleção natural. Casavam e o destino se cumpria. De chiques e
aladas, viravam mães anuais; filho na barriga, filho no peitume, filho agarrado
na perna. Domingo iam passear na cidade, espandongadas, cabelo caindo na cara.
Não tinha importância, não. Os trabalhadores o que queriam era mãe pros oito a
doze filhos do destino.
Carmela não. Vizinhava com a
padaria em casa própria. O pai afinal tinha seus cobres de tanta ferradura
ordinária que passara adiante, e tanta roda e varal consertados. E, fora as
duas menores que nem na escola inda iam, o resto eram filhos, meia-dúzia, gente
bem macha trabalhando numa conta. Dois casados já. Só um ninguém sabia dele,
talvez andasse pelas fazendas... Sei que fora visto uma vez em Botucatu. Era o
defeito físico da família. Se o nome dele caía na conversa, a gente só escutava
os palavrões que o pai dizia, porca la miséria. Restava a metade de meia-dúzia,
menores que Carmela, treze, quatorze e dezesseis anos, que seguiam o caminho
bom dos mais velhos.
Assim florescentes, todos
imaginaram de comum acordo que Carmela não carecia de trabalhar. Deram um
estadão pra ela, bonita! O pai olhava a filha e sentia uma ternura diferente.
Pra esvaziar a ternura, comprava uma renda, sapatos de pelica alvinha, fitas,
coisas assim.
Padeiro portuga e ferreiro
italiano, de tanta vizinhança, ficaram amigos. Quando o Serafino Quaglia viu
que a filha pendia pro João, gostou bem. Afinal, padaria instalada e
afreguesada não é coisa que a gente despreze numa época destas...
Porém a história é que Carmela,
sequestrada assim da vida, apesar de ter na família uma ascendência que a fazia
dona em casa, possuía coração que não sabia de nada. O João era simpático, era.
Forte, com os longos braços dependurados, e o bigode principiando, não vê que
galego larga bigode!...
Carmela gostou do João. Quando
pediu pra ele que não bebesse mais, João se comoveu. Principiou sentindo
Carmela. As entrevistas na cerca tornaram-se diárias. Precisão não havia,
ninguém se opunha, e um entrava na casa do outro sem cerimônia, mas é sempre
assim porém... Não carece a gente ser de muitos livros, nem da alta, pra
inventar a poesia das coisas, amor sempre despertou inspiração... Ora você há
de convir que aqueles encontros na cerca tinham seu encanto. Pra eles e pros
outros. Ali estavam mais sós, não tinham irmãos em roda. Pois então podiam
passar muitos minutos sem falar nada, que é a melhor maneira de fazer vibrar o
sentimento. Os que passavam viam aquele par tão bonito, brincando com a
trepadeira, tirando lasca do pau seco... Isso reconciliava a gente com a
malvadeza do mundo.
— Sabe!... a Carmela anda
namorando com o João!
— Sai daí, você... Vem contar
isso pra mim!... Pois se até fui eu que descobri primeiro!
Pam!... Pam!... Pam!... Pam!...
Pampampam!... toda a gente correu na esquina pra ver. O carro vinha a passo.
GRANDE CIRCO BAHIA
dos irmão Garcias!
dos irmão Garcias!
Hoje! Serata de estrea! Cachorros e maccacos sabios!
Irmãos Fô-Hi equilibristas!
Grandes números de actração mundial!
Apresentação de toda a Compania!
Todos os dias novas estreias!
Irmãos Fô-Hi equilibristas!
Grandes números de actração mundial!
Apresentação de toda a Compania!
Todos os dias novas estreias!
O homem Cobra. Malunga, o elephante sabio!
Terminará a função a grande pantommima
Terminará a função a grande pantommima
OS SALTHEADORES DA CALABRIA
Três palhaços e o tony Come Mosca
Evohé! Todos ao Grande Circo Bahia! Hoje! (Esquina da rua Guaicurús)
Só 2$000 — Cadeiras a Quatro
Imposto a cargo do respeitável Publico!
Três palhaços e o tony Come Mosca
Evohé! Todos ao Grande Circo Bahia! Hoje! (Esquina da rua Guaicurús)
Só 2$000 — Cadeiras a Quatro
Imposto a cargo do respeitável Publico!
Eviva!
O circo Bahia vinha tirar um
pouco o bairro da rotina do cinema. Pam! Pam!... Pam!... Lá seguia o carro de
anúncio entre desejos. Carmela foi contar pro João que ela ia com os três
fratelos. João vai também.
O circo estava cheio. Pipoca!
Amendoim torrado!... Batat’assat’ô furrn!... Vozinha amarela: Nugá! nugá!
nugá!... Dentadura na escureza: Baleiro!... Balas de coco, chocolate,
canela!... E a banda sarapintando de saxofone a noite calma. Estrelas. Foram
pras cadeiras, Carmela alumeando de boniteza. O circo não vinha pobre nem nada!
— Todos os números são bons,
hein! Eu volto! Você?
Come-Mosca quis espiar a caixa
tão grande toda de lantejoulas, verde e amarela, que os araras traziam pro
centro do picadeiro, prendeu o pé debaixo dela. Foi uma gargalhada com o berro
que ele deu.
— Volto também.
Música. O reposteiro escarlate se
abriu. O artista veio correndo lá de dentro, com um malhô todo de lantejoulas,
listrado de verde e amarelo. Era o Homem Cobra. Fez o gesto em curva, braços no
ar, deformação do antigo beijo pro público... é pena... tradição que já vai se
perdendo... Tipo esquisito o Homem Cobra... esguio! esguio. Assim de malhô,
então, era ver uma lâmina. Tudo lantejoula menos a cabeça, até as mãos! Feio
não era não. Esse gênero de brasileiro quase branco já, bem pálido. Cabelo liso,
grosso, rutilando azul. O nariz não é chato mais, mesmo delicado de tão
pequeninho. Aliás a gente só via os olhos, puxa! negros, enormes! aumentados
pelas olheiras. Tomavam a cara toda. Carmela sentiu uma admiração. E um
mal-estar. Pressentimento não era, nem curiosidade... mal-estar.
O número causou sensação. Já pra
trepar na caixa só vendo o que o Homem Cobra fez! caiu no tapete, uma perna foi
se arrastando caixa arriba, a outra, depois o corpo, direitinho que nem cobra!
até que ficou em cima. Parecia que nem tinha osso, de tão deslocado. Fez coisas
incríveis! dava nós com as pernas, ficava um embrulhinho em cima da caixa...
Palmas de toda a parte. Depois a música parou, era agora! Ergueu o corpo numa
curva, barriga pro ar, pés e mãos nos cantos da caixa. Vieram os irmãos
Garcias, de casaca, e o Dr. Cerquinho tão conhecido, médico do bairro. — Olha o
doutor Cerquinho! — O doutor Cerquinho!... Homem tão bom, consultas a três mil-réis...
Quando não podia pagar, não fazia mal, ficava pra outra vez. Os irmãos Garcias
puxavam a cabeça do Homem Cobra, houve um estalo no bombo da música e a cabeça
pendeu deslocada, balanceando. Trrrrrrrrr... tambor. A cabeça principiou
girando. Trrr...
Meu Deus! girava rapidíssimo!
Trrrrr... “Chega! Chega!” toda a gente gritavam. Trrrrr... Foi parando. Os
irmãos Garcias endireitaram a cabeça dele e o Dr. Cerquinho ajudou. Quando
acabaram, o moço levantou meio tonto, se rindo. Foi uma ovação. Não sei quantas
vezes ele veio lá de dentro agradecer. Os olhos vinham vindo, vinham vindo,
aquele gesto de beijo deformado, partiu. As palmas recomeçavam. Carmela
pequititinha, agarrada no João, que calor delicioso pra ele! Virou-se, deu um
beijo de olhos nela, francamente, sem-vergonha nenhuma, apesar de tanto pessoal
em roda.
— Coitado não?
— Batuta!
No dia seguinte deu-se isto:
estavam almoçando quando a porta se abriu, Pietro! Era um ingrato, era tudo o
que você quiser, mas era filho. Foi uma festa. Tanto tempo, como é que viera
sem avisar! como estava grande! Pois fazem seis anos já!
— Meu pai desculpa...
O velho resmungou, porém o filho
estava bem vestido, não era vagabundo, não pense, estudara. Sabia música e
viera dirigindo a banda do circo, foi um frio. O velho desembuchou logo o que
pensava de gente de circo. Então Pietro meio que zangou-se, estavam muito
enganados! olhem: a moça que anda na bola é mulher do equilibrista, a amazona
se casara com o Garcia mais velho, Dolores, uma uruguaia. Gente honesta, até os
dois japoneses. Todos espantados.
— Meu pai, o senhor vai comigo lá
no circo pra ver como todos são direitos. Eu mesmo, se não casei até agora é
porque nesta vida, hoje aqui, amanhã não se sabe onde, inda não encontrei moça
de minha simpatia. E você, Carmela?
Ela sorriu, baixando o rosto,
orgulhosa de já ter encontrado.
— Temos coisa, não? Por que não
foram no circo ontem? É!... Pois não vi não! Também estava uma enchente!...
Trouxe entrada pra vocês hoje.
Conversa vai, conversa vem, caiu
sobre o Homem Cobra. Afinal não é que o número fosse mais importante que os
outros não, até os irmãos de Carmela tinham preferido outras artistas,
principalmente o de dezesseis, falando sempre que a dançarina, filha-da-mãe!
botava o pé mais alto que a cabeça. Os outros tinham gostado mais da pantomima.
Porém da pantomima, Carmela só enxergara, só seguira os gestos heroicos,
maquinais, do chefe dos salteadores, aquele moreno pálido, esguio, flexível, e
os grandes olhos. Quando morreu com o tiro do polícia bersagliere, retorcendo
no chão que até parecia de deveras, Carmela teve “uma” dó. Sem saber, estava
torcendo pra que os salteadores escapassem.
— O Almeidinha... Está aí! um
rapaz excelente! é do norte. Toda a gente gosta dele. Faz todas aquelas
maravilhas, você viu como ele representa, pois não tem orgulho nenhum não, pau
pra toda obra. Serve de arara sem se incomodar... Até foi convidado pra fazer
parte duma companhia dramática, uma feita, em Vitória do Espírito Santo, mas
não aceitou. É muito meu amigo...
Carmela fitou o irmão,
agradecida.
Afinal, pra encurtar as coisas,
você logo imagina que o pai de Pietro foi se acostumando fácil com o ofício do
filho. Aquilo dava uma grande ascendência pra ele, sobre a vizinhança... Quando
no intervalo, o Pietro veio trazer o Garcia mais velho pra junto da família,
venceu o pai. Todo mundo estava olhando pra eles com desejo. Conhecer o dono
dum circo tão bom!... já era alguma coisa. O João, esse teve só prazer. Fora
companheiro de infância do Pietro, este mais velho. Já combinaram um encontro
pro dia seguinte de-tarde. Pietro mostrará tudo lá dentro, João queria ver.
E que Pietro apareça também lá na
padaria... Os pais ficariam contentes de ver ele já homem, ah, meu caro, tempo
corre!...
No dia seguinte de-tardinha, João
já estava meio tonto com as apresentações. Afinal, no picadeiro vazio, foram
dar com o Almeidinha assobiando. Endireitava o nó duma corda.
— Boas-tardes. Desculpe, estou
com a mão suja.
Sorria. Tinha esse rosto inda mal
desenhado das crianças, faltava perfil. Quando se ria, eram notas claras sem
preocupação. Distraído, Nossa Senhora! “Meidinha, você me arranja esta meia, a
malha fugiu...” Almeidinha puxava a malha da meia, assobiando. “Meidinha, dá
comida pro Malunga, faz favor, tenho de ir buscar os bilhetes.” Lá ia o
Almeidinha assobiando, dar comida pro Malunga. Então carregar a filhinha da
Dolores, dez meses, não havia como ele, a criança adormecia logo com o assobio
doce, doce. E conversava tão delicado! João teve um entusiasmo pelo Almeida. E
quando, na noite seguinte, o Homem Cobra recebendo aplausos, fez pra ele aquele
gesto especial de intimidade, João sentiu-se mais feliz que o rei Dom Carlos.
Safado rei dão Carlos...
Carmela tanto falava, Pietro
tanto insistiu, que o velho Quaglia recebeu o Almeida em casa mas muito bem. Em
dez minutos de conversa, o moço já era estimado por todos. Carmela não pôde ir
na cerca, já se vê, tinha visita em casa. João que entrasse, pois não conhecia
o Almeida também!
E, vamos falando logo a verdade,
o Homem Cobra, assim com aquele jeito indiferente, agarrou tendo uma atenção
especial pra Carmela. Ninguém percebia porque, afinal, a Carmela estava quase
noiva do João.
Nunca mulher nenhuma tivera uma
atenção especial pro Meidinha, Carmela era a primeira. Ele percebeu. Só ele,
porque os outros sabiam que ela estava quase noiva do João. E tem coisas que só
mesmo entre dois se percebem. Carmela dum momento pra outro, você já sabe o que
é a gente se tornar criminoso, ficara hábil. Mesma habilidade no Meidinha, que
fazia tudo o que ela fazia primeiro. Até o caso da flor passou despercebido,
também quem é que percebe uma sempre-viva destamanho! O certo é que de noite o
Homem Cobra trabalhou com ela entre as lantejoulas. Só olho com vontade de ver
é que enxerga uma pobre florzinha no meio de tanto brilho artificial.
Era uma hora da madrugada, noite
inteiramente adormecida no bairro da Lapa, quando o esguio passou assobiando
pela rua. Carmela, não sei que loucura deu nela, acender luz não quis, podiam
ver, saltou da cama, e, com o casaquinho de veludo nas costas, entreabriu a
janela. Abriu-a. Esperou. O esguio voltava, mãos nos bolsos, assobiando. Vendo
Carmela emudeceu. Essas casas de gente meia pobre são tão baixas... Tocou no
chapéu passando.
— Psiu...
Se chegou.
— Boa-noite.
— Safa! A senhora ainda não foi
dormir!
— Estava. Mas escutei o senhor, e
vim.
— Noite muito bonita...
— É.
— Bom, boas-noites.
— Já vai... Fique um pouco...
Ele botara as costas na parede,
mãos sempre nos bolsos. Olhava a rua, com vontade de ir-se embora decerto.
Carmela é que trabalhou:
— Vi a flor no seu peito.
— Viu?
— Fiquei muito agradecida.
— Ora.
— Por que o senhor botou a flor,
hein?... Podiam perceber! Almeida se virou, muito admirado:
— O que tinha que vissem!
— É! tinha muita coisa, sabe!
Ele tirara as mãos dos bolsos. Se
encostara de novo na janela, e olhava pro chão, brincando o pé numas folhinhas,
a mão descansava ali do peitoril. Carmela já conhecia a doçura das mãos dadas
com o João, de manso guardou a do moço entre as ardentes dela. Meidinha
encarou-a inteiramente, se riu. Virou-se duma vez e retribuiu o carinho pondo a
mão livre sobre as de Carmela.
— As mãos da senhora estão
queimando, safa!
E não pararam mais de se olhar e
se sorrir. Porém os artistas, mesmo ignorantes de vida, sabem tantas coisas por
profissão... não durou muito, Carmela e o Meidinha trocaram o beijo n° 1. Então
ele partiu.
Estaria zangada?... Aquela frieza
decidiu o João: pedia a moça nessa noite mesmo. Mas, e foi bom senão a história
ficava mais feia, não sei o que deu nele de ir falar com ela primeiro. Cerca?
era lugar aonde Carmela não chegava desde a quarta-feira. João mandou Sandro
chamá-la. Que estava muito ocupada, não podia vir. O que seria!... pois se não
tinha feito nada!... resolveu entrar, não era homem pra complicações. Porém a
moça nem respondeu aos olhares dele. Pietro é que se divertiu com a rusga, até
fez uma caçoadinha. João teve um deslumbramento, gostou. Mas Carmela ficou toda
azaranzada. Desenhou um muxoxo de desdém e foi pra dentro. Não sabia bem por
quê, porém de repente principiou a chorar. Veio a mãe ralhando com Pietro, onça
da vida. E verdade que dona Lina não sabia o que se passara, viu a filha
chorando e deu razão à filha. João, quando soube que a namorada estava
chorando, teve um pressentimento horrível, pressentimento de que, meu Deus!...
pressentimento sem mais nada. Entrou em casa tonto, chegou-se pra janela sem
pensamento, e ficou olhando a rua. Cada bonde, carroça que passava, eram
vulcões de poeira. Ar se manchando, que nem cara cheia de panos. O jasmineiro
da frente, e mesmo do outro lado da rua, por cima do muro, os primeiros galhos
das árvores tudo avermelhado. Não vê que Prefeitura se lembra de vir calçar
estas ruas! é só asfalto pras ruas vizinhas dos Campos Elíseos... Gente pobre
que engula poeira dia inteirinho!
Si jantou, João nem percebeu.
Depois caiu uma noite insuportável sem ar. João na janela. Os pais, vendo ele
assim, se puseram a amá-lo. Doente não estava, pois então devia de ser algum
desgosto... Carmela. Não podia ser outra coisa. Mas o que teria sucedido! E
afinal, gente pobre tem também suas delicadezas, perguntaram de lado, o filho
respondeu “não”. Consolar não sabiam. Nem tinham de que, ele embirrava negando.
Então puseram-se a amar.
É assim que o amor se vinga do
desinteresse em que a gente deixa ele. A vida corre tão sossegada, ninguém não
bota reparo no amor. Ahn... é assim, é!... esperem que hão de ver!... o amor
resmunga. E fica desimportante no lugarzinho que lhe deram. De repente a pessoa
amada, filho, mulher, qualquer um, sofre, e é então, quando mais a gente carece
de força pra combater o mal, é então que o amor reaparece, incomodativo,
tapando caminho, atrapalhando tudo, ajuntando mais dores a esta vida já de si
tão difícil de ser vivida.
Assim foi com os pais do João. O
filho sofria, isso notava-se bem... Pois careciam de calma, da energia
acumulada em anos e anos de trabalheira que endurece a gente... Em vez: viram
que uma outra coisa também se fora ajuntando, crescendo sem que eles
reparassem, e era enorme agora, guaçu, macota, gigantesca! amavam o João!
adoravam o João! Como era engraçado, todo fechadinho, olho fechado, mãozinha
fechada, logo depois de nascido!... os choros, noites sem dormir, o primeiro
riso enfim, balbucios, primeiro dente, a roupinha de cetineta cor-de-rosa, a
Rosa que não quisera casar com ele, e escola, as doenças, as sovas, a primeira
comunhão, o trabalho, a bondade, a força, o futebol, os olhos, aqueles braços
dependurados, meu Deus! todos os dias: o João!... Se tivessem vivido esse amor
dia por dia, se compreende: agora só tinham que amar aquele sofrimento do
instante, isso inda cristão aguenta. Mas os dias tinham passado sem que dessem
tento do amor, e agora, por uma causa que não sabiam, por causa daqueles
cotovelos afincados na janela, daquele queixo dobrando o pulso largo, olhar
abrindo pra noite sem resposta, vinha todo aquele amor grande de dias mil
multiplicados por mil. Amaram com desespero, desesperados de amor.
Quando João viu os vizinhos
partindo pro circo, nem discutiu a verdade do peito: vou também. Pegou no
chapéu. Pra mãe ele se riu como se fosse possível enganar mãe.
— Vou pro circo... Divertir um
bocado.
Depois do que se passara, ir
junto dela também era sem-vergonhice, procurou companheiros na arquibancada.
— Ué! você não vai junto da
Carmela?
— Não me amole mais com essa
carcamana!
— Brigaram!
— Não me amole, já disse!
Mas ver circo, quem é que podia
ver circo num atarantamento daqueles! O Homem Cobra com a sempre-viva no peito.
Gestos, olhares inconvenientes não fez nenhum que se apontasse, João porém
descobriu tudo. A gente não pode culpar o Meidinha, não sabia que o outro
gostava de Carmela. Um moço pode estar sentado junto de uma moça sem ser pra
namorar...
Nessa noite o assobio chamou duas
pessoas na janela. Bater, arrebentar com aquele chicapiau desengonçado!
confesso que o João espiando, matutou nisso. Depois imaginou melhor, Carmela
era dona do seu nariz e se tinha que fazer das suas, antes agora! aprendia a
ver adonde ia caindo, livra! são todas umas galinhas. E bastava. Foi pra cama
aparentemente sossegado. Porém que-dê sono! vinha de supetão aquela vontade de
ver, tinha que espiar mesmo. Não podia enxergar bem, parece que se beijavam...
oh, que angústia na barriga!...
Afinal foi preciso partir, e o
Meidinha andou naquele passo coreográfico dos flexíveis. Ali mesmo na esquina
distraiu-se, o assobio contorcido enfiou no ouvido da noite um maxixe
acariocado. Carmela... você imagine que noites!
Convenhamos que o costume é lei
grande. João mal entredormiu ali pelas três horas, pois às quatro e trinta já
estava de pé. Pesava a cabeça, não tem dúvida, mas tinha que trabalhar e
trabalhou. Botou o cavalo na carrocinha perfumada com pão novo e tlim...
tlrintintim... lá foi numa festança de campainha, tirando um por um os
prisioneiros das camas. São cinco horas, padeiro passou.
— É! circo, circo toda noite!...
Pois agora não vai mais!
Também agora pouco se amolava que
a mãe proibisse espetáculo. Gozar mesmo, só gozou na primeira noite. Depois, um
poder de inquietações, de vontades, remorsos, remorsos não, duvidinhas...
tomavam todo o tempo do espetáculo e ela não podia mais se divertir.
Dona Lina tinha razão. Quando
Carmela apareceu, o irregular do corado, manchas soltas, falavam que isso não é
vida que se dê pra uma rapariga de dezenove anos. Pelos olhos ninguém podia
pensar isso porque brilhavam mais ainda. Estavam caindo pros lados das faces
num requebro doce, descansado, de pessoa feliz. Não digo mais linda, porém,
assim, a boniteza de Carmela se... se humanizara. Isso: perdera aquele
convencional de pintura, pra adquirir certa violência de malvadez. Não sei se por causa de olhar Carmela, ou por causa da pantomima, a gente se punha
matutando sobre os salteadores da Calábria. Não havia razão pra isso, os pais
dela eram gente dos arredores de Gênova...
João, outro dia hei de contar o
que sentiu e o que sucedeu pra ele, agora só me lembro dele ainda porque foi o
primeiro a ver chegar o Almeida de-tardinha. Veio, já se sabe, mãos nos bolsos,
assobio no meio da boca, bamboleando saltadinho no passo miúdo de cabra. Tinha
pés de borracha na certa, João tremeu de ódio. Pegou no chapéu, foi até muito
longe caminhando. O mal não é a gente amar... O mal é a gente vestir a pessoa
amada com um despropósito de atributos divinos, que chegam a triplicar às vezes
o volume do amor, o que se dá? Uma pessoa natural é fácil da gente substituir
por outra natural também, questão de sair uma e entrar outra... Porém a que sai
do nosso peito é amor que sofre de gigantismo idealista, e não se acha outra de
tanta gordura pra botar logo no lugar. Por isso fica um vazio doendo, doendo...
Então a gente anda cada estirão a pé... Aquilo dura bastante tempo, até que o
vazio, graças aos ventinhos da boca-da-noite, se encha de pó. Se encha de pó.
Estamos no fim. São engraçadas
essas mães... Proíbem circo, obrigam as meninas a ir cedo pra cama, pensam que
deitar é dormir. Aliás, esta é mesmo uma das fraquezas mais constantes dos
homens... Geralmente nós não visamos o mal, visamos o remédio. Daí trinta por
cento de desgraças que podiam ser evitadas, trinta por cento é muito, vinte.
Carmela entra na conta. Também como é que dona Lina podia imaginar que quem
está numa cama não dorme? não podia. Mas nem bem o assobio vinha vindo pra lá
da esquina, já Carmela estava de pé. Beijo principiou. Até quando ela retirava
um pouco a cara pro respiro de encher, ele espichava o pescoço, vinha salpicar
beijos de guanumbi nos lábios dela. Sempre olhando muito, percorrendo, parecia
por curiosidade, a cara dela. Mas os beijos grandes, os beijos engolidos, era a
diabinha que dava. Ele se deixava enlambuzar. Mestra e discípulo, não? Aquela
inocentinha que não trabalhava nas fábricas, quem que havia de dizer!... Eis a
inocência no que dá: não vê que moça aprendida trocava o João pelo Homem
Cobra... Se este penetrasse no quarto, creio que nenhum gesto de recusa
encontraria no caminho, Carmela estava louca. Só a loucura explica uma loucura
dessas. Mas até os desejos se cansam porém, a horas tantas ela sentiu-se
exausta de amor. Puseram-se a conversar. Meidinha, mãos nos bolsos, encostara
as costas na parede e olhava o chão. Carmela o incomodava com a cobra aderente
do abraço, rosto contra rosto. E perdidas, umas frases de intimidade. Ela gemendo:
— Eu gosto tanto de você!
— Eu também.
Engraçado a ambiguidade das
respostas elípticas! Gostava de quem? da namorada ou dele mesmo?...
— Você trabalhou hoje?
— Trabalhei. Vamos dar uma
pantomima nova. Eu faço o violeiro do Cubatão, venha ver.
— Querido!
Beijo.
— É verdade! não se vê mais o
João... É parente de você, é?
— Parente? Deus te livre! deu um
muxoxo. Não sei onde anda. Não gosto dele!
Silêncio. Carmela sentiu um
instinto vago de arranjar as coisas. Afinal, o caso dela se tornara uma dessas
gavetas reviradas, aonde a gente não encontra a cueca mais. Continuou:
— Ele queria casar comigo, mas
porém não gosto dele, é bobo. Só com você que hei de casar!
Meidinha estava olhando o chão.
Ficou olhando. Depois se virou manso e encarou a bonita. Os olhos dele,
grandes, inda mais grandes, engoliram os da moça, contemplava. Contemplava
embevecido. Carmela pousou nesses beiços entreabertos o incêndio úmido dos
dela. Meidinha agora deixava os olhos caírem duma banda. Abraçados assim de
frente, Carmela descansou o queixo no ombro do moço, e respirava sossegada o
aroma de vida que vinha subindo da nuca dele. Ele sempre de olhos grandes, mais
grandes ainda, caídos dum lado, perdidos na escureza do quarto indiferente.
— A gente há de ser muito feliz,
não me incomodo que você trabalhe no circo...
Irei aonde você for. Se papai não
quiser, eu fujo. Uhm...
Até conseguiu beijar o pescoço
dele atrás. O Meidinha... os lábios dele mexiam, mas não falavam porém. Uma
impressão de surpresa vibrou-lhe os músculos da cara de repente. Foi-se
esvaindo, não, foi descendo pros beiços que ficaram caídos, com dor. Duramente
uma energia lhe ajuntou quase as sobrancelhas. Acalmou. Veio o sorriso. Tirou
Carmela do ombro. Na realidade era o primeiro gesto de posse que fazia, segurou
a cabeça dela. Contemplou-a. Riu pra ela.
— Vou embora. É muito tarde...
Enlaçou-a. Beijou-lhe a boca
ardentemente e tornou a beijar. Carmela sentiu uma felicidade, que se ela fosse
dessas lidas nos livros, dava recordação pra vida inteira. Ficou imóvel, vendo
ele se afastar. Assobio não se escutou.
No dia seguinte, que-dele o Homem
Cobra?
— Vocês não viram o Meidinha,
gente!
— Pois não dormiu em casa!
— Não dormiu não!
— Decerto alguma farra...
— Que o que!...
Que-dele o Almeida? Só de-tarde,
alguns grupos sabiam na Lapa que o Homem Cobra embarcara não sei pra onde, o
Abraão é que contava. Tinham ido juntos, no primeiro bonde “Anastácio” da
madrugada. Vendo o outro de mala, indagou:
— Vai viajar!
— Vou.
— Deixa o circo!
— Deixo.
— Pra sempre é!
O Homem Cobra olhara pra ele,
parecendo zangado.
— Não tenho que lhe dar
satisfações.
Virou a cara pro bairro trepando
das Perdizes.
De repente, vocês não imaginam,
principiou a assobiar, alegre! um assobio de apito, nunca vi assobiar tão bem!
Trabalho na Avenida Tiradentes... fui seguindo ele. Entrou na estação da
Sorocabana.
— Era o melhor número do circo...
A essa hora já tivera tempo
quente na casa dos Quaglias, Pietro levara a notícia. Carmela abriu uma boca
que não tinha; ataque, gente do povo não sabe ter, caiu numa choradeira de
desespero, só vendo! descobriram tudo. Não que ela contasse, porém era muito
fácil de adivinhar. Soluçava gritando, querendo sair pra rua, chamando pelo
Meidinha. Tiveram certeza duma calúnia exagerada, pavorosa, que só o tempo
desmentiu. O velho Quaglia perdeu a cabeça duma vez, desancou a filha que não
foi vida. Carmela falava berrado que não era o que imaginavam... mas só mesmo
quando não teve mais força misturada com a dor, é que o velho parou. Parou pra
ficar chorando que nem bezerro. Pietro andava fechando porta, fechando quanta
janela encontrava, pra ninguém de fora ouvir, mas boato corre ninguém sabe
como, as paredes têm ouvidos... E língua muito leviana, isso é que é. Os
rapazes principiaram olhando pra Carmela dum jeito especial, e ficavam se rindo
uns pros outros. Até propostas lhe fizeram. E ninguém mais não quis casar com
ela. E só se vendo como ela procurava!... Uma verdadeira... nem sei o que!
Até que ficou... não-sei-o-quê de
verdade. E sabe inda por cima o que andaram espalhando? Que quem principiou foi
o irmão dela mesmo, o tal da dançarina... Porém coisa que não vi, não juro. E
falo sempre que não sei.
Só sei que Carmela foi muito
infeliz.
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