Issumboshi
(Conto japonês)
(Conto japonês)
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Há mui remotas eras, dois velhos esposos residiam na província de Settsu, em
Naniwa, como então se chamava a cidade de Osaka. Eram os dois sozinhos; nunca
tiveram filhos, posto que ardentemente os desejassem. Ora, a prole é a grande
preocupação da família japonesa; considera-se mesmo incompleta e quase
ignominiosa a existência daquele que a não teve, e assim se vê privado de legar
o seu nome, e os encargos do culto devido aos ascendentes, ao natural herdeiro
de tais honras, restando-lhe apenas o triste expediente da adopção de um filho
estranho, que, com a herança do apelido de família, assuma os encargos da
suposta primogenitura.
— Um filho... um filho ao menos, fosse ele embora um
aleijado, um monstro, uma migalha de gente, com o tamanho de um dedo por
estatura... mas um filho!... — tal o tema constante, durante longos anos, das
mais gratas esperanças do casal a que me referi. Quando, pelas rugas nos rostos
e pela alvura dos cabelos, os bons velhos concluíram que não mais lhes era dado
confiar na iniciativa própria, elevaram então o pensamento aos deuses, como
dispensadores que são de todos os milagres; encaminhando de preferência a sua
devoção para o glorioso Myojin, que é a divindade venerada no célebre templo de
Sumyoshi, a curta distância de Naniwa. Quase todas as manhãs eles se dirigiam
em piedosa romaria, juntos, cada qual arrimado ao seu bordão, pois já as pernas
lhes vergavam ao peso dos invernos; e era então um espetáculo deveras
comovente, e supinamente grotesco ao mesmo tempo, que fazia correr lágrimas e
estalejar risadas à gente que passava, o daqueles dois decrépitos, cheios de
unção e abrasados em fé, erguendo ao céu as pobres mãos escarnadas, e
implorando a deus para que lhes desse um filho, fosse ele como fosse, fosse ele
uma migalha de gente, do tamanho de um dedo por estatura!...
***
Ora, sucedeu que tendo assim decorrido vários anos, o
deus de Sumyoshi se apiedou por fim de tantas súplicas dos velhos, e lhes
apareceu um dia para lhes proferir estas palavras: — “Faço-vos a vontade, bons
caturras, haveis de ter um filho.” — Os dois pularam de contentes, como se pode
imaginar; galhofando, batendo palmadas amigáveis nas costas um do outro,
voltaram para o albergue. Não tardou muito que a velha sentisse com alvoroço os
primeiros remoques que prenunciam gravidez; e finalizados nove meses dava à luz
uma criança, um menino...
Cáspite!... Mas reparem agora no ponto mais
surpreendente da aventura: o menino, lindo como os amores, tinha a estatura de
um boneco, como esses de porcelana que se usa colocar nos jardins liliputianos,
contidos num vaso ou numa caixa, muito do agrado da gente japonesa. O espanto
dos pais foi grande, e a decepção também; mas em verdade não havia motivo de
queixa contra o deus, que concedera o que se lhe rogara, — um filho, com o
tamanho de um dedo por estatura. — Era assim.
Issumboshi foi o nome que deram ao menino, isto é, traduzindo literalmente em
português: o Cavalheiro Polegada. As
crônicas não rezam se foi amamentado a biberon,
ou se o mirrado seio maternal entumeceu de súbito e se ofereceu solícito aos
lábios do garoto. O que é fato é que Issumboshi foi medrando em graças e em
esperteza; não porém em tamanho; e quando tinha os seus dez anos era tal como
viera a este mundo. Esta gentil disformidade trouxe o enfado ao lar e até um
certo azedume mal contido contra as supostas bondades do deus de Sumyoshi. O
escárnio era espontâneo nas bocas dos vizinhos; os gaiatos do sítio apraziam-se
em zombarias desta ordem: — “Lá está o anão
comendo arroz! lá vai a ervilha
passear!” — Enfim, para encurtar razões, direi apenas que chegou um momento em
que Issumboshi se tornou insuportável a seus pais, vergonha viva do casal, sem
préstimo presente, e sem que se lhe supusesse utilidade possível no futuro.
***
Certo dia decidiram os velhos, embora lhes pesasse,
pô-lo fora de casa, abandoná-lo ao acaso da fortuna. Foi chamado o menino à
presença do pai, que lhe expôs os motivos da sua resolução, e lhe apontou de um
gesto o caminho da rua. — “Sim, papá, partirei sem demora, retorquiu, resignado
e submisso; mas faça-me favor de dar-me antes uma agulha daquelas de que a mamã
se serve para coser os seus kimonos.”
— Perguntou o pai para quê? e foi-lhe respondido que era para usar dela como um
sabre, muito proporcionado ao seu tamanho. Depois pediu à mãe uma tigela de
madeira, daquelas que se empregam em servir o caldo às refeições, e mais um
desses pauzinhos que se chamam hashi,
com o comprimento de um palmo, substituindo na mesa japonesa o garfo e a
colher. Perguntou a mãe para quê? e foi-lhe respondido que, para a longa viagem
que ia empreender, a tigela seria o barco, o hashi seria o remo, tudo proporcionado ao seu tamanho.
Em posse dos utensílios que alcançara da munificência
de seus pais, Issumboshi fez-lhes uma rasgada reverência e desapareceu de casa.
***
Ei-lo só, o pobre abandonado, entregue ao seu
arbítrio, dispondo como haveres de uma tigela, de um palito e de uma agulha,
colocando esta à cinta, à laia de catana, com uma palhinha por bainha!... Que
fazer? Para onde ir?... Corria cerca o Iodogawa, o extenso rio lodoso e calmo
que tem suas origens no famoso lago Biwa, desce a Kyoto, atravessa Naniwa, e
vai perder-se no oceano. Que fazer? Para onde ir? — “Ir a Kyoto, pensou consigo
o anãozinho, à capital do Império (então não era Tokyo a capital), à residência
do Soberano, aonde muitas coisas curiosas deve haver, dignas de ver-se...” — E
abalou.
Seria impossível relatar as peripécias da viagem, os
mil perigos afrontados por tão exíguo barco, que uma simples casca de laranja,
boiando à tona de água, já punha em risco de naufrágio. Issumboshi ia
perguntando aos pescadores o caminho para Kyoto; se refrescava o vento,
abrigava-se junto da estacaria das pontezinhas que galgavam de uma margem do
rio para a outra margem; pelas noites escuras, ou quando a fadiga o afligia,
encalhava o seu barco junto à terra, por entre a maranha dos limos e das
plantas aquáticas; e foi assim, com mais de trinta dias de derrota, que abordou
uma manhã à famosa capital do país do Sol Nascente.
***
Ei-lo em terra, bamboleando-se, folgando com o chão
firme, com as palestras da turba, com o cheiro das tabernas, como efetivamente
sucede aos marinheiros após longos dias de cruzeiro, enfadados de balanço, de
isolamento, de carne salgada e de bolacha. Issumboshi, pouco maior que um
escaravelho, passava despercebido por entre os muitos passeantes; assim pôde
furtar-se a comentários zombeteiros e percorrer tranquilamente as ruas da
cidade, embasbacando-se em face dos aspetos grandiosos que aos seus olhitos
sagazes se iam oferecendo. Por fim, ei-lo acercando-se da mais suntuosa
residência em que os mesmos olhitos jamais tinham pousado; era ali que vivia um
grande personagem, o príncipe Sanjo-no-Saishó, primeiro ministro na corte do
soberano. Entra Issumboshi resolutamente no amplo pátio da entrada, e informa
os serviçais de que pretende falar ao senhor de tal domínio. Deu-se então o
cômico incidente de estar sua alteza muito cerca e de acudir, à porta, atraído
pela maviosa voz do visitante; como ninguém visse porém, ia de novo
recolher-se, resmungando que teria jurado achar-se ali um estranho em conversas
com a gente de serviço; mas um derradeiro olhar pesquisador revelou-lhe, quase
oculto por detrás dos seus tamancos, que estavam junto à entrada conforme o uso
do país, o curioso figurão que conhecemos. — “Oh! exclamou, eras tu, minúsculo
vivente que ainda há pouco proferias o meu nome?” — O rapaz, polidamente,
assegurou que sim, que era ele próprio. — “E que me queres então?” — Issumboshi
expôs a sua procedência, os seus títulos e as tristes condições em que se via;
e concluiu rogando que lhe desse agasalho, e o admitisse ao seu serviço. — “Pois
sim, fica conosco, respondeu sua alteza, após ligeira reflexão; tu és sem
dúvida, continuou, o homem mais pequeno que tem aparecido neste mundo, e a tua
história uma das mais comovedoras que conheço; não quero perder o léu de
possuir tamanha galanteria, praticando ao mesmo tempo um ato meritório,
protegendo-te.”
***
Embora tão ínfimo em grandeza, o Cavalheiro Polegada soube mostrar-se utilizável em tudo em que o
ocuparam. Dentro em pouco, tornou-se querido da família, o brinquedo, o
passatempo predileto para matar enfados, dos quais ninguém se livra, e menos
ainda os ricos, sempre ociosos em seus palácios de regalo. Ko-Haru, a filha do
fidalgo, a mais gentil donzela de Kyoto (que é a terra das mulheres mais gentis
de todo o Império), especialmente lhe votou as suas simpatias, impondo-lhe o
dever — dulcíssimo dever! — de acompanhá-la por toda a parte onde ela fosse,
qual rato sábio que seguisse a dona em seus passeios...
Entre os dois, a formosa musumé e a migalha de gente, passaram-se então graciosas cenas, as
mais tocantes que pode imaginar-se, se imagináveis são... Era um enlevo vê-lo,
sempre vestidinho de guerreiro, a primor, com roupas de cetim que ela pelos
próprios dedos habilidosos lhe bordava, e lhe cosia, privando de carinhos as
suas bonecas favoritas; e Issumboshi, muito compenetrado do seu papel de pajem,
nunca largando o sabre da cintura,
arrogava-se uns tais ares marciais, tão petulantes, que a gente morria de rir,
ao avistá-lo!... Se chovia, ou se a excursão se prolongava, Ka-Haru tomava nas
mãos alvas de neve o seu pequeno companheiro, aconchegando-o ao colo, ou
aquecendo-o ao seio. Issumboshi, é bem de crer, possuía, como todo o ser humano
possui, um coração, embora reduzido às proporções de uma cabeça de alfinete,
mas pulsando de gratidão e de ternura. Aquela convivência escravizou-lhe a
alma. Uma dedicação imensa, uns zelos infinitos, um desejo constante de agradar
à sua nobre ama, tais foram os sentimentos dominantes no ânimo do pigmeu. A sua
disformidade permitia-lhe delicadezes, que aos outros mortais eram vedadas...
(oh, mistério psicológico de todos os namorados deste mundo! quantos de vós,
que ledes estas linhas, invejareis a sorte de Issumboshi!...) Quando, pelas
noites cálidas de Agosto, Ko-Haru se aprazia em estender-se sobre a relva dos
jardins, Issumboshi, vencido também pela fadiga, pousava e adormecia sobre um
dos pés nus de sua ama, como em leito de mármore de alvuras resplendentes. Uma
vez, caiu dos lábios frescos da donzela uma pétala de magnólia, em que por
distração os dentinhos se entretinham mordicando: Issumboshi comeu-a; e durante
um dia inteiro não se serviu de outro alimento, assegurando com verdade que
aquele lhe bastava...
***
Aconteceu um dia dirigir-se Ko-Haru ao templo de
Kiyomizu-no-Kwannon (Kwannon é a deusa budista da piedade), a fim de praticar
as suas devoções; como sempre, o anão acompanhava-a. Ora, de volta, quando
ambos desciam o último degrau da ampla escadaria que dá acesso ao templo, dois
demônios surdiram de improviso das próximas balseiras, horríveis de figura,
hercúleos, colossais, cuidando sem detenças de raptar a linda peregrina.
Ko-Haru desfaz-se em pranto e quase desfalece. Issumboshi retira a espada da
bainha (a agulha que a mãe lhe dera noutros tempos), perfila-se em frente dos
demônios e brada-lhes assim: — “Vis temerários, que cometeis a magna ofensa de
perturbar em seus passeios piedosos a princesa Sanjó! sabei que se um de vós,
com um só dedo lhe tocar, comigo se há de haver! e, tão certo como ser eu
Issumboshi, assim este meu sabre lhe rasgará a entranha!...” — Consta que os
diabretes se puseram a rir, arreganhando os dentes; e um dos dois, mais
falador, dignou-se responder com uma voz de trovão que fez afugentar das
árvores os pardais, em cinco léguas ao redor: — “Acalma a tua fúria, ínfimo
inseto; não percebes acaso que a luta contra nós é-te defesa? para encurtar
razões e não seres importuno, vais ver o que te faço...” — Levantou-o do solo,
mui delicadamente, com as pontas dos dedos, e engoliu-o...
Pareceu a Ko-Haru fugir-lhe a última esperança de
salvar-se. Iludia-se. Em plenas trevas, escorregando pela goela babugenta do
monstro, e penetrando na enorme rotunda da barriga, o anãozinho empunhou o
sabre a duas mãos e foi espicaçando ao acaso, para a frente, para a direita,
para a esquerda, o ventre, a fressura, os intestinos; o diabo sentiu-se de
repente incomodado, sofreu ânsias atrozes, vomitou o jantar e Issumboshi de
novo apareceu à luz do dia. O outro monstro tentou em seguida igual ardil,
devorando o pigmeu; desta vez Issumboshi subiu-lhe para o nariz, em cujas
fossas sanguíneas e felpudas recomeçou esgrimindo, a ponto de produzir tal
comichão, que o diabo espirrou, salvando-se o inimigo pelos ares. Foi então que
os demônios se encheram de pavor, convencidos de que tinham em frente de si um
ente extraordinário, posto que de tão desprezível aparência; e deitaram a
fugir...
Muito bem. Agora o herói cuida de acalmar a desolada
dama, convence-a da ausência do perigo e faz-lhe ver que são horas de seguir
para o palácio, onde decerto o pai a espera com ansiedade. Ko-Haru vai partir;
antes porém testemunha ao pajem a sua muita gratidão, prometendo contar à
família o sucedido, para que chovam justas recompensas sobre o seu denodado
salvador.
***
Partiram com efeito. Eis que, a curta distância,
Ko-Haru encontra no caminho um utensílio ali abandonado, o pequenino martelo
milagroso de que os demônios e os deuses se utilizam, certamente esquecido
pelos monstros na ânsia de safarem-se. Tomou-o pressurosa. Perguntou o
companheiro o que era aquilo; e, como ela lhe expusesse que bastava brandi-lo
para a gente realizar os seus desejos, e que ele próprio, se algum desejo tinha,
lho dissesse, que logo lhe seria satisfeito, Issumboshi berrou, no auge da
comoção e da esperança: — “Altura! Altura! Altura” — Ko-Haru não percebeu o que
ele queria. Ele então, mais prolixo, explicou que queria a altura de si
próprio, crescer em tamanho, tornar-se um homem como todos os homens deste
mundo. O milagre, a um gesto da musumé,
realizou-se. Issumboshi atingiu num momento as regulares proporções de um guapo
mocetão; ao lado da princesa, quem se pusesse a ver aquele par, diria-os feitos
um para o outro, de encomenda...
***
Chegaram ao palácio. A admiração foi grande; mas não
sei o que mais comentários mereceu, se as peripécias da princesa, rematadas com
tão feliz epílogo, se o milagre do martelo na pessoa de Issumboshi. Logo ali se
lhe mudou o nome, para outro nome apropriado; recebeu do seu nobre protetor mil
recompensas, mais tarde do soberano mui fartas honrarias, subindo aos mais
altos cargos públicos; mas a mais doce recompensa que aqui se lhe pode
assinalar foi tornar-se o esposo querido de Ko-Haru, que ele amava, do fundo da
alma, desde o primeiro dia que lhe foi dado contemplá-la...
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