11/28/2017

Issumboshi (Conto), de Wenceslau de Moraes


Issumboshi
(Conto japonês)
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Há mui remotas eras, dois velhos esposos residiam na província de Settsu, em Naniwa, como então se chamava a cidade de Osaka. Eram os dois sozinhos; nunca tiveram filhos, posto que ardentemente os desejassem. Ora, a prole é a grande preocupação da família japonesa; considera-se mesmo incompleta e quase ignominiosa a existência daquele que a não teve, e assim se vê privado de legar o seu nome, e os encargos do culto devido aos ascendentes, ao natural herdeiro de tais honras, restando-lhe apenas o triste expediente da adopção de um filho estranho, que, com a herança do apelido de família, assuma os encargos da suposta primogenitura.
— Um filho... um filho ao menos, fosse ele embora um aleijado, um monstro, uma migalha de gente, com o tamanho de um dedo por estatura... mas um filho!... — tal o tema constante, durante longos anos, das mais gratas esperanças do casal a que me referi. Quando, pelas rugas nos rostos e pela alvura dos cabelos, os bons velhos concluíram que não mais lhes era dado confiar na iniciativa própria, elevaram então o pensamento aos deuses, como dispensadores que são de todos os milagres; encaminhando de preferência a sua devoção para o glorioso Myojin, que é a divindade venerada no célebre templo de Sumyoshi, a curta distância de Naniwa. Quase todas as manhãs eles se dirigiam em piedosa romaria, juntos, cada qual arrimado ao seu bordão, pois já as pernas lhes vergavam ao peso dos invernos; e era então um espetáculo deveras comovente, e supinamente grotesco ao mesmo tempo, que fazia correr lágrimas e estalejar risadas à gente que passava, o daqueles dois decrépitos, cheios de unção e abrasados em fé, erguendo ao céu as pobres mãos escarnadas, e implorando a deus para que lhes desse um filho, fosse ele como fosse, fosse ele uma migalha de gente, do tamanho de um dedo por estatura!...
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Ora, sucedeu que tendo assim decorrido vários anos, o deus de Sumyoshi se apiedou por fim de tantas súplicas dos velhos, e lhes apareceu um dia para lhes proferir estas palavras: — “Faço-vos a vontade, bons caturras, haveis de ter um filho.” — Os dois pularam de contentes, como se pode imaginar; galhofando, batendo palmadas amigáveis nas costas um do outro, voltaram para o albergue. Não tardou muito que a velha sentisse com alvoroço os primeiros remoques que prenunciam gravidez; e finalizados nove meses dava à luz uma criança, um menino...
Cáspite!... Mas reparem agora no ponto mais surpreendente da aventura: o menino, lindo como os amores, tinha a estatura de um boneco, como esses de porcelana que se usa colocar nos jardins liliputianos, contidos num vaso ou numa caixa, muito do agrado da gente japonesa. O espanto dos pais foi grande, e a decepção também; mas em verdade não havia motivo de queixa contra o deus, que concedera o que se lhe rogara, — um filho, com o tamanho de um dedo por estatura. — Era assim.
Issumboshi foi o nome que deram ao menino, isto é, traduzindo literalmente em português: o Cavalheiro Polegada. As crônicas não rezam se foi amamentado a biberon, ou se o mirrado seio maternal entumeceu de súbito e se ofereceu solícito aos lábios do garoto. O que é fato é que Issumboshi foi medrando em graças e em esperteza; não porém em tamanho; e quando tinha os seus dez anos era tal como viera a este mundo. Esta gentil disformidade trouxe o enfado ao lar e até um certo azedume mal contido contra as supostas bondades do deus de Sumyoshi. O escárnio era espontâneo nas bocas dos vizinhos; os gaiatos do sítio apraziam-se em zombarias desta ordem: — “Lá está o anão comendo arroz! lá vai a ervilha passear!” — Enfim, para encurtar razões, direi apenas que chegou um momento em que Issumboshi se tornou insuportável a seus pais, vergonha viva do casal, sem préstimo presente, e sem que se lhe supusesse utilidade possível no futuro.
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Certo dia decidiram os velhos, embora lhes pesasse, pô-lo fora de casa, abandoná-lo ao acaso da fortuna. Foi chamado o menino à presença do pai, que lhe expôs os motivos da sua resolução, e lhe apontou de um gesto o caminho da rua. — “Sim, papá, partirei sem demora, retorquiu, resignado e submisso; mas faça-me favor de dar-me antes uma agulha daquelas de que a mamã se serve para coser os seus kimonos.” — Perguntou o pai para quê? e foi-lhe respondido que era para usar dela como um sabre, muito proporcionado ao seu tamanho. Depois pediu à mãe uma tigela de madeira, daquelas que se empregam em servir o caldo às refeições, e mais um desses pauzinhos que se chamam hashi, com o comprimento de um palmo, substituindo na mesa japonesa o garfo e a colher. Perguntou a mãe para quê? e foi-lhe respondido que, para a longa viagem que ia empreender, a tigela seria o barco, o hashi seria o remo, tudo proporcionado ao seu tamanho.
Em posse dos utensílios que alcançara da munificência de seus pais, Issumboshi fez-lhes uma rasgada reverência e desapareceu de casa.
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Ei-lo só, o pobre abandonado, entregue ao seu arbítrio, dispondo como haveres de uma tigela, de um palito e de uma agulha, colocando esta à cinta, à laia de catana, com uma palhinha por bainha!... Que fazer? Para onde ir?... Corria cerca o Iodogawa, o extenso rio lodoso e calmo que tem suas origens no famoso lago Biwa, desce a Kyoto, atravessa Naniwa, e vai perder-se no oceano. Que fazer? Para onde ir? — “Ir a Kyoto, pensou consigo o anãozinho, à capital do Império (então não era Tokyo a capital), à residência do Soberano, aonde muitas coisas curiosas deve haver, dignas de ver-se...” — E abalou.
Seria impossível relatar as peripécias da viagem, os mil perigos afrontados por tão exíguo barco, que uma simples casca de laranja, boiando à tona de água, já punha em risco de naufrágio. Issumboshi ia perguntando aos pescadores o caminho para Kyoto; se refrescava o vento, abrigava-se junto da estacaria das pontezinhas que galgavam de uma margem do rio para a outra margem; pelas noites escuras, ou quando a fadiga o afligia, encalhava o seu barco junto à terra, por entre a maranha dos limos e das plantas aquáticas; e foi assim, com mais de trinta dias de derrota, que abordou uma manhã à famosa capital do país do Sol Nascente.
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Ei-lo em terra, bamboleando-se, folgando com o chão firme, com as palestras da turba, com o cheiro das tabernas, como efetivamente sucede aos marinheiros após longos dias de cruzeiro, enfadados de balanço, de isolamento, de carne salgada e de bolacha. Issumboshi, pouco maior que um escaravelho, passava despercebido por entre os muitos passeantes; assim pôde furtar-se a comentários zombeteiros e percorrer tranquilamente as ruas da cidade, embasbacando-se em face dos aspetos grandiosos que aos seus olhitos sagazes se iam oferecendo. Por fim, ei-lo acercando-se da mais suntuosa residência em que os mesmos olhitos jamais tinham pousado; era ali que vivia um grande personagem, o príncipe Sanjo-no-Saishó, primeiro ministro na corte do soberano. Entra Issumboshi resolutamente no amplo pátio da entrada, e informa os serviçais de que pretende falar ao senhor de tal domínio. Deu-se então o cômico incidente de estar sua alteza muito cerca e de acudir, à porta, atraído pela maviosa voz do visitante; como ninguém visse porém, ia de novo recolher-se, resmungando que teria jurado achar-se ali um estranho em conversas com a gente de serviço; mas um derradeiro olhar pesquisador revelou-lhe, quase oculto por detrás dos seus tamancos, que estavam junto à entrada conforme o uso do país, o curioso figurão que conhecemos. — “Oh! exclamou, eras tu, minúsculo vivente que ainda há pouco proferias o meu nome?” — O rapaz, polidamente, assegurou que sim, que era ele próprio. — “E que me queres então?” — Issumboshi expôs a sua procedência, os seus títulos e as tristes condições em que se via; e concluiu rogando que lhe desse agasalho, e o admitisse ao seu serviço. — “Pois sim, fica conosco, respondeu sua alteza, após ligeira reflexão; tu és sem dúvida, continuou, o homem mais pequeno que tem aparecido neste mundo, e a tua história uma das mais comovedoras que conheço; não quero perder o léu de possuir tamanha galanteria, praticando ao mesmo tempo um ato meritório, protegendo-te.”
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Embora tão ínfimo em grandeza, o Cavalheiro Polegada soube mostrar-se utilizável em tudo em que o ocuparam. Dentro em pouco, tornou-se querido da família, o brinquedo, o passatempo predileto para matar enfados, dos quais ninguém se livra, e menos ainda os ricos, sempre ociosos em seus palácios de regalo. Ko-Haru, a filha do fidalgo, a mais gentil donzela de Kyoto (que é a terra das mulheres mais gentis de todo o Império), especialmente lhe votou as suas simpatias, impondo-lhe o dever — dulcíssimo dever! — de acompanhá-la por toda a parte onde ela fosse, qual rato sábio que seguisse a dona em seus passeios...
Entre os dois, a formosa musumé e a migalha de gente, passaram-se então graciosas cenas, as mais tocantes que pode imaginar-se, se imagináveis são... Era um enlevo vê-lo, sempre vestidinho de guerreiro, a primor, com roupas de cetim que ela pelos próprios dedos habilidosos lhe bordava, e lhe cosia, privando de carinhos as suas bonecas favoritas; e Issumboshi, muito compenetrado do seu papel de pajem, nunca largando o sabre  da cintura, arrogava-se uns tais ares marciais, tão petulantes, que a gente morria de rir, ao avistá-lo!... Se chovia, ou se a excursão se prolongava, Ka-Haru tomava nas mãos alvas de neve o seu pequeno companheiro, aconchegando-o ao colo, ou aquecendo-o ao seio. Issumboshi, é bem de crer, possuía, como todo o ser humano possui, um coração, embora reduzido às proporções de uma cabeça de alfinete, mas pulsando de gratidão e de ternura. Aquela convivência escravizou-lhe a alma. Uma dedicação imensa, uns zelos infinitos, um desejo constante de agradar à sua nobre ama, tais foram os sentimentos dominantes no ânimo do pigmeu. A sua disformidade permitia-lhe delicadezes, que aos outros mortais eram vedadas... (oh, mistério psicológico de todos os namorados deste mundo! quantos de vós, que ledes estas linhas, invejareis a sorte de Issumboshi!...) Quando, pelas noites cálidas de Agosto, Ko-Haru se aprazia em estender-se sobre a relva dos jardins, Issumboshi, vencido também pela fadiga, pousava e adormecia sobre um dos pés nus de sua ama, como em leito de mármore de alvuras resplendentes. Uma vez, caiu dos lábios frescos da donzela uma pétala de magnólia, em que por distração os dentinhos se entretinham mordicando: Issumboshi comeu-a; e durante um dia inteiro não se serviu de outro alimento, assegurando com verdade que aquele lhe bastava...
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Aconteceu um dia dirigir-se Ko-Haru ao templo de Kiyomizu-no-Kwannon (Kwannon é a deusa budista da piedade), a fim de praticar as suas devoções; como sempre, o anão acompanhava-a. Ora, de volta, quando ambos desciam o último degrau da ampla escadaria que dá acesso ao templo, dois demônios surdiram de improviso das próximas balseiras, horríveis de figura, hercúleos, colossais, cuidando sem detenças de raptar a linda peregrina. Ko-Haru desfaz-se em pranto e quase desfalece. Issumboshi retira a espada da bainha (a agulha que a mãe lhe dera noutros tempos), perfila-se em frente dos demônios e brada-lhes assim: — “Vis temerários, que cometeis a magna ofensa de perturbar em seus passeios piedosos a princesa Sanjó! sabei que se um de vós, com um só dedo lhe tocar, comigo se há de haver! e, tão certo como ser eu Issumboshi, assim este meu sabre lhe rasgará a entranha!...” — Consta que os diabretes se puseram a rir, arreganhando os dentes; e um dos dois, mais falador, dignou-se responder com uma voz de trovão que fez afugentar das árvores os pardais, em cinco léguas ao redor: — “Acalma a tua fúria, ínfimo inseto; não percebes acaso que a luta contra nós é-te defesa? para encurtar razões e não seres importuno, vais ver o que te faço...” — Levantou-o do solo, mui delicadamente, com as pontas dos dedos, e engoliu-o...
Pareceu a Ko-Haru fugir-lhe a última esperança de salvar-se. Iludia-se. Em plenas trevas, escorregando pela goela babugenta do monstro, e penetrando na enorme rotunda da barriga, o anãozinho empunhou o sabre a duas mãos e foi espicaçando ao acaso, para a frente, para a direita, para a esquerda, o ventre, a fressura, os intestinos; o diabo sentiu-se de repente incomodado, sofreu ânsias atrozes, vomitou o jantar e Issumboshi de novo apareceu à luz do dia. O outro monstro tentou em seguida igual ardil, devorando o pigmeu; desta vez Issumboshi subiu-lhe para o nariz, em cujas fossas sanguíneas e felpudas recomeçou esgrimindo, a ponto de produzir tal comichão, que o diabo espirrou, salvando-se o inimigo pelos ares. Foi então que os demônios se encheram de pavor, convencidos de que tinham em frente de si um ente extraordinário, posto que de tão desprezível aparência; e deitaram a fugir...
Muito bem. Agora o herói cuida de acalmar a desolada dama, convence-a da ausência do perigo e faz-lhe ver que são horas de seguir para o palácio, onde decerto o pai a espera com ansiedade. Ko-Haru vai partir; antes porém testemunha ao pajem a sua muita gratidão, prometendo contar à família o sucedido, para que chovam justas recompensas sobre o seu denodado salvador.
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Partiram com efeito. Eis que, a curta distância, Ko-Haru encontra no caminho um utensílio ali abandonado, o pequenino martelo milagroso de que os demônios e os deuses se utilizam, certamente esquecido pelos monstros na ânsia de safarem-se. Tomou-o pressurosa. Perguntou o companheiro o que era aquilo; e, como ela lhe expusesse que bastava brandi-lo para a gente realizar os seus desejos, e que ele próprio, se algum desejo tinha, lho dissesse, que logo lhe seria satisfeito, Issumboshi berrou, no auge da comoção e da esperança: — “Altura! Altura! Altura” — Ko-Haru não percebeu o que ele queria. Ele então, mais prolixo, explicou que queria a altura de si próprio, crescer em tamanho, tornar-se um homem como todos os homens deste mundo. O milagre, a um gesto da musumé, realizou-se. Issumboshi atingiu num momento as regulares proporções de um guapo mocetão; ao lado da princesa, quem se pusesse a ver aquele par, diria-os feitos um para o outro, de encomenda...
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Chegaram ao palácio. A admiração foi grande; mas não sei o que mais comentários mereceu, se as peripécias da princesa, rematadas com tão feliz epílogo, se o milagre do martelo na pessoa de Issumboshi. Logo ali se lhe mudou o nome, para outro nome apropriado; recebeu do seu nobre protetor mil recompensas, mais tarde do soberano mui fartas honrarias, subindo aos mais altos cargos públicos; mas a mais doce recompensa que aqui se lhe pode assinalar foi tornar-se o esposo querido de Ko-Haru, que ele amava, do fundo da alma, desde o primeiro dia que lhe foi dado contemplá-la...

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