Irado até à cura...
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Ampla alcova: no “armoire à glace” refletida
como outro vasto cômodo...
Rico mobiliário de pau-cetim com
incrustações de jacarandá reluzente...
Um leito de casados, e sobre ele,
cadavérico, peles e ossos, despojado de carnes, ventrudo, olhar ansioso, o
louro Ormindo, lutando com a morte...
É um erro de diagnóstico, rebelde a
enfermidade à medicação despropositada.
Junto do leito, uma banca, e sobre esta, além
de um termômetro e de um cronômetro, desenvolta frascaria...
Aos pés da cama, fatigada, sonolenta, às
vezes, Doca é heroína na vigília: o seu semblante merencório só consegue alguma
graça quando Eloy visita o enfermo.
***
— A morte
acena-me, e eu me vou indo aos pedaços sorrateiramente... Doca, tu bem vês como
eu morro todos os segundos, como eu mínguo sem cessar...
— Tem fé
em Deus, Ormindo.
— Morrerei
com ela, sim. A fé! Ela é o facho iluminador da estrada eterna... Como deve ser
doloroso não crer em nada, Doca!... Sentir a alma cair no vácuo... Ah! não me
conformo, porém... Morrer quando tanto preciso é viver... Vou deixar-te na
penúria... a braços, por certo, com os créditos da medicina e da farmácia...
— Tu
pensas demais.
— Como
não hei de pensar? Vejo-te, e sei que rilharás a côdea endurecida e atrasada. É
com horror que prevejo as tuas infelicidades... És nova. Mas de que servirá a
tua mocidade sem pão, os teus verdes anos sem um amparo? És bela. Mas de que
prestará a tua lindeza se não tiveres um manto para o frio e um abanico para o
calor? Nova e bela... na viuvez! Quem sabe o teu destino mulher a quem tanto
amei?
— A
pobreza é um estímulo, Ormindo: saberei trabalhar a fim de haver com honra um
pedaço de pão e alguns côvados de fazendas...
— Não te
peço nada, e peço-te muito: não mácula o nome de teu marido. A erva reverdece a
fronde dos vegetais, aumenta-lhes a copa, enobrece-lhes o aspecto: crava-lhes, porém,
até ao durano, as raízes assassinas e rouba-lhes a seiva até à morte. A árvore
cessa de existir com a trepadeira fitócida que lhe rendilha os contornos. A
mulher deve pensar que o bem-estar não é a honra, e que há tranquilidades mais
homicidas do que a erva do passarinho... A desonra não provem da pobreza, da
fome ou mesmo da nudez. A desonra é fruto das transigências de alma, e a mulher
viúva é a que pode piormente transigir... Que dores!... Ui!...
— Estás
vendo: pioras quando falas!
— Doca,
no meu caso extremo, a morte é assim qualquer coisa como uma sorte grande...
— Num
bilhete branco para mim que fico sem ti... Não sabes aproveitar o silêncio como
um meio de cura, não sabes tirar partido, poupando forças para momentos mais
graves...
— Durarei
muito pouco.
— Não
podes saber mais do que os médicos.
— Ah!
mulher! Só eu posso saber o que sinto, o que senti, e como se avizinha o
instante derradeiro... Dizem que os extremos se tocam. É verdade, pois tenho
neste momento a visão mais lúcida dos meus primórdios. Que é isto senão que se
vai fechar a circunferência de minha translação em torno do vácuo universal? O
aneurisma cresce, avoluma-se, rouba-me a vida, bem o sinto agora. Tem a forma
de uma espera, é um globo pequenino de vivos, na luta pela existência. Vai
arrebentar, latejando e doendo, pulsando e abafando-me de vez... Pensas tu que nunca
me iludi com a esperança da cura? Iludi-me, mas antes de todos...
— Quem
está vivo, Ormindo, ainda não está morto, e toda a cura é plausível.
— A tua
dedicação é cega. Desde que adoeci, desde que sobre o coração senti a formação
mortífera do mal circulatório, certifiquei-me estar mais longe do mundo do que
do nada. E deste momento para cá, que fiz para denunciar que creio na cura? Ao contrário,
a minha vida tem sido a chama de uma vela a lutar com o sopro das auras. Não há
um instante em que não me morra uma alegria, em que não nasça uma saudade. Em
torno de mim bailam as ondas frias do nada, como brinca a mariposa teimosa em
torno de uma lâmpada.
— Agravas-te,
Ormindo! Cala a boca por piedade! As tuas palavras são outros tantos punhais
que me sangram o coração.
— Que
horas serão?
— Já é
noite.
— E os
médicos que não vieram?
— Vieram,
sim. Tu estavas dormindo.
— Os
médicos não vieram, não... Até a minha esposa conspira contra a minha
existência...
— Não
pesas as tuas palavras, Ormindo.
— Já sei
de tudo. Perderam a esperança, abandonaram-me. Não passarei de hoje. Estou
condenado a horas.
— Descansa
um pouco.
— Descansar,
agora, só de vez. Bem curta foi a minha felicidade, e parece-me que foi ontem à
tarde que nos vimos pela primeira vez. Um sonho às vezes tem existência mais
real, porque nos acompanha do momento da concepção em criança ao instante da
morte na velhice. Ai!... falta-me o ar...
— Assim
queres! Falas tanto...
— Deixa-me
ir, Doca, ao meu destino: não há rio que não chegue ao mar. Demorado, se grandes
e muitas curvas descreve; rápido, se retas consegue... Quatro anos e parecem
quatro horas! Tu talvez não te lembres mais do meu enfeitiçamento; não me
esqueço eu do sorriso único com que festejaste o nosso encontro. Toda a tarde,
toda a noite... Oh! que lindo luar te prateou as pupilas, te diademou os
cabelos e te banhou luciferamente as espáduas! Meses depois, o casamento... A
noite de núpcias vivazes... O nosso lar... O nosso amor insatisfeito sempre
para acordar novas carícias, para fomentar alegrias... A esperança de um
filho... O recuo da esperança... E tudo isto acabar quando mesmo
principiava?!...
— Não
temas a morte: um cérebro que pensa como o teu dá confiança na renascença da
vida.
— A alma
não morre, Doca! É ela quem esta vivendo agora. Os pulmões fraqueiam, o coração
tem espasmos, a visão escurece-se, a voz arrasta-se, mas o cérebro pensa...
Crês tu que, porque não falam, todos os moribundos não pensam? Iludes-te! É a
hora de maior pensamento. Só recompor todo o passado a fim de o ligar ao presente
e encerrar o círculo das sensações mundanas, é pensar robustamente. Um
moribundo que eu vi, não tinha a fala. Os membros eram paralíticos, os olhos
envidrados e fotografavam a luz do dia para a eternidade... Pois bem! esse
homem assim amortecido, repeliu com o gesto brusco de uma perna o suplício de
uma injeção nos últimos instantes... Acaso, não pensaria mais aquele cérebro de
tanta vontade? Outros há que conhecem até o segundo derradeiro: fazem
despedidas... Ah! como deve ser tocante o adeus de um esposo que aí deixa a
companheira sem a certeza de um agasalho... Um que vai, a outra que fica...
Qual dos dois padecerá mais no extremo momento? Doca, ouve-me bem: tu vais
entrar num terceiro mundo... Alegras-te com a nova?... Pensas que deliro ou que
não falo certo?
— Não me
alegro, confranjo-me: viste um lampejo maior de esperança iluminar-me o
rosto...
— Como és
amante?!... Quererias de coração e de alma, com todos os afetos e vontades, a
minha cura?
— Tenho
provado o meu desejo de ver-te salvo e tornado à saúde.
— É bem
pouco um desejo!
— Duvidas
que todas as minhas forças funcionam só na intenção de possuir-te novamente
são?
— Não
duvido! Pareceu-me que te aborrecias, inda há pouco, com a prolongação de minha
tortura...
— Aborrecer-me
eu!...
— E
então?!...
— Tens
coragem! Só me representa que gravarás na alma uma eterna desconfiança da
amizade de tua esposa...
— Isto
não!
— Pois
parece, Ormindo!
— Neste
caso, escutas-me com agrado?
— Sim.
— Posso
falar?
— Não.
— Ah! já
sei... É a mesma quizília de que falar é um desperdício de forças orgânicas...
— Diz o
doutor...
— Nenhum
deles sabe nada... Quem pensa deve falar. Onde o meu cérebro conteria tanta
palavra que tenho pensado? Eu te dizia que tu vais entrar num terceiro mundo, e
para cada um desses mundos, devido às intenções animais dos homens, a equação
da mulher é perigosamente diversa. Virgem, ela tem a expressão de um sonho;
esposa, representa uma realidade; e viúva, ela é uma alma em que se derramam os
mananciais copiosos da luxúria humana... Virgem, foste uma criadora; esposa,
uma inspiradora; viúva, serás, em nome da honra de teu marido, uma redentora...
Ai!... Doem-me os pulmões... Morrerei, porém, com todas as sensações...
— Não
morrerás, Ormindo!
— São os
teus votos?
— Duvidas
de mim, dos meus afetos, dos meus afagos, do meu amor, inda no instante
derradeiro?
— Não
duvidei jamais: fui um esposo feliz, muito feliz.
— Pois
então?!...
— Dá-me a
tua mão...
— Estás
frio!
— É a
gelidez da morte... Não tardará... Fazes-me um favor?...
— Se o
faço...
— É para
depois de minha morte...
— Juro-te.
— Mas,
responde franca e precisamente, para que eu não sucumba com uma dúvida...
— Pede o
que quiseres... Pede... não!... ordena!
— Estou
acabado. Lutou comigo a morte, que, se não me derrubou de vez, vai invadindo-me
com o gelo de seu hálito das extremidades para o coração. Bestam-me instantes.
Vais enviuvar e a viuvez é um despenhadeiro. Peço-te em nome de minha
tranquilidade, que te cases, imediatamente, a fim de que não paire uma só nuvem
sobre a limpidez do teu e do meu nome... Casarás logo... Peço-te... É o último
sacrifício em prol do teu defunto...
— Intranquilizas-me,
Ormindo.
— Não há razão
para isso.
— Se tu
mandas...
— Mando,
não; peço... Agradar-te-á Eloy?
— Queres,
Ormindo, a verdade antes da morte?
— É isso...
— Pois
bem! O que tu propões já estava assentado entre nós outros...
***
A ira irrompe brutalmente na alma do traído
moribundo, que faz um grande esforço e se salva com o despedaçamento brusco do
mioma desconhecido, do assassino erro de diagnóstico...
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