Idílio no mar
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Impressões de uma tarde saudosa à bordo da
polaca espanhola Mercedes, do comando do velho “caballero” catalão D. Francisco Pagés, de Masnau.
Aquela
tarde esmorecida de outubro, de uma suave iluminação eteral, deixou-lhe para
sempre no espírito uma saudosa impressão de marinha sonhada, em alguma tela
encantadora de Bury ou num desses romances nebulosos de mar, em que os artistas
da Britânia põem, com o seu alado idealismo abstrato, noivados festivos e
louros singrando enseadas em calma, dentro de iates veleiros, com galhardetes de flores coroando latinos dourados.
Era uma vela
vogadora de cutter, que andava ao
longe a errar em contínuas bordadas inquietas, numa brancura idealizante de ave
polar, aparecendo, desaparecendo às vezes, por entre a imensa, flutuante
floresta nua dos mastros. Pelas águas marulhosas, riscadas de rendas de espuma,
pairava um doce frêmito viajeiro de viração austral, mansa aragem bonançosa,
amiga acariciadora das pequeninas velas albentes que cruzam o seio das rades.
E no ar morno e macio, de uma doçura tropical, por entre a vespertina
transparência dos brilhos, o encanto delicioso do céu alto e arqueado, com um
leve desbotamento sidéreo de velho velário cerúleo.
Debruçado da
borda, no tombadilho da polaca, ele olhava melancolicamente aquela mancha
singradora de latino alvo, sentindo desfilar no espírito um tropel de
recordações amadas... A plangência das longas noites do oceano, em que o seu
coração ansiara e chorara, órfão de afetos, em meio à solidão sem raias,
vibrava ainda as visões rútilas do seu sonho e as cordas vivas da sua alma. E,
pensativo e dolente, na ebriedade colorida de um silforama de imagens,
desenrolado em efervescentes cismares, quedara-se a olhar sonambulamente para a
singradura vaporosa daquela vela alada, que a enlanguescia ali, no poente
daquela rutilosa viagem, em que toda uma porção do seu ser, na atração de uma
beleza divina, ficara a boiar sobre as águas, longe, na magnificência de uma
cidade bendita, numa ilha de balada...
Mas o alto
pano nesgado se aproximava lentamente, na sua alvura enfunada, em pairos de asa
serena levada numa rajada, por entre os cascos adormecidos das naves, sonhando
nebulosamente — quem sabe! — num estado de quase espiritualidade, com a agitação
marulhosa das viagens ao largo, fecundas dos inauditismos de um mar que não
finda e da magia cenográfica dos espetáculos solares.
Naquele
navegar para ele, num murmúrio longínquo de aquosa cristanilidade, a rasgar
vitoriosamente o vitral da planura infindável, como demandando a polaca, a vela
clara aviva-lhe aos poucos, nas células em que fulgia o clarão de uma saudade
inefável, o esquisso imaterial e celeste de uma estância enluarada, que lhe
estava a bailar desde instantes, incompleto e esparso, na gestação incuriosa e
dormente da sua imaginação de nostálgico. E, de olhos em êxtase, com uma luz
espiritual insuflando cor e vida à sua Visão constelar, sob o brilho aureolante
de uma claridade mágica, já lhe tremia na emoção, suprassensivelmente, como o frisson psicológico de uma surpresa que
raia.
Com efeito,
repentinamente, o branco latino encantado desenhou-se inteiro numa aberta
resplandescente das águas, como se fosse a alma errante do Mar, um sonho albente
das ondas, o símbolo rútilo das Rotas —
guia bom das singraduras, bênção augusta da bonança, bandeira dos ventos,
pregoeiro das viagens! E o lento aproximar desta embarcação velejada sob o
entardecer tropical, tão repassado de nostalgia e sonhares à sombra silenciosa
que ia alastrando lentamente as etéreas paragens —
abria-lhe agora, com nitidez, na memória, a fúlgida cadência sonora daquela
estrofe de poema d’alma, que lhe nascera, uma tarde,
por um crepúsculo oceânico de lenda, ao abordar o litoral pinturesco
dessa ilha querida, onde o seu amor torreara ilusões, como uma Eiffel rutilante
em demanda do infinito sonhado...
À medida que
o cutter avançava, num vasto sulco
onduloso, em direção à polaca, todo o seu casco esguio e alvo se detalhava nas vagas,
em linhas finas e artísticas de requintada construção naval, desde os vivos
frisos das bordas ao tope do mastaréu triunfante, erguido no ar como a ponta de
um gigantesco florete embolado, ferindo verticalmente o Azul, que se diria
sangrar sobre o mastro, na golfada de sangue tremulante de um galhardete
encarnado.
Mas de
repente, e a pequena distância, a esguia embarcação começou a panejar,
atravessada ao vento, num embalo ritmado, sobre a ondulação inquieta, e ele
pode ver, através das irradiações do seu sonho e da vaga luz interior da sua
nebulose mental, a silhueta inefável de dois seres amantes, destacando à
balaustrada oscilante da popa, na líquida toalha de espuma, como um casal
divino de deuses saído de um mito da Hélade. Banhava-o idealmente a claridade
cendrada do alto, descendo em desmaio de tons sobre as ondas e rolando
etereamente por entre a cordoalha e os mastros. E ali a boiar, como num fundo
azulado de ópera marinha, aquele idílio de costa europeia setentrional cortava
de um encanto fidalgo, de velhas civilizações cheias de arte, as águas de
Guanabara.
Na frouxidão
alvacenta do pano murcho e rugoso, a estalar contra os cabos nessa virada de
bordo, e erguendo ao ar osciladoramente como uma teia de aranha fantástica, o cutter caía, caía na corrente, em busca
do beijo cheio da aragem. A pequena coberta recurva aparecia agora amplamente,
em linda modelação quase oval, reluzindo artisticamente na variada coleção dos
objetos náuticos, que se exibiam aí em singular exposição flutuante de alfaias
estranhas ou de bric-à-brac. E o que
mais sobressaía, no meio desse luxo naval, eram as altas amuradas corridas onde
se erguiam as enxárcias, a gaiúta envidraçada, as malaquetas de metal e de aço,
o bordado trincaniz amarelo, o pequeno castelo inclinado, os turcos curvos e em
gancho como antigas armas de abordagem, o cintado cabrestante encapado, as
pequenas âncoras pesadas, os finos croques reluzentes e o molinete rodante onde
se prendem as amarras...
Nesse
instante, porém, nada disso impressionava já a sua imaginação visionada,
arrebatada num enlevo ante o formoso e louro par, vogando inefavelmente sob a
luz fugidia do ocaso em meio à berceuse da
vaga. Sutilmente, todo o seu ser vibrava, na doçura dessa contemplação,
aclarada interiormente pelos afetos passados, no enternecimento de uma grande
simpatia por essas almas aladas, noivando, na tolda da bela embarcação
adejante, sob o encanto do céu vesperal...
Mas a alta
vela nevada fugia, batida de uma rajada — e
o gracioso casco vogador retomava a primitiva bordada, numa faixa meandrosa de
espuma que esfervia e ondulava. Agora, à balaustrada branca, tombada para a
borda roladora, o belo casal olhava o mar, invadido de ternura, algemados os
olhares em fundos êxtases de amor.
A tarde
fenecia nos páramos azulados do espaço, desolado já num esmorecimento saudoso.
Longe, muito longe, na amplidão curva do horizonte, onde as vagas tremiam em
longos frisos de esmeralda, uma branda mancha de sol vermelhava, sobre as
brumas do ocidente, como um esbatido de nácar. E o belo cutter sumia-se no estofo cerúleo das vagas. Mas por muito tempo
ainda a láctea brancura nevoenta do seu alto latino, sugestiva de lembranças
passadas, numa alegre estância vivida, ficou a boiar além, numa névoa de
saudade...
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