Idéias do Canário
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
Um homem dado a estudos de ornitologia, por
nome Macedo, referiu a alguns amigos um caso tão extraordinário que ninguém lhe
deu crédito. Alguns chegam a supor que Macedo virou o juízo. Eis aqui o resumo
da narração.
No princípio do mês passado, — disse ele, —
indo por uma rua, sucedeu que um tílburi à disparada, quase me atirou ao chão.
Escapei saltando para dentro de uma loja de belchior. Nem o estrépito do cavalo
e do veículo, nem a minha entrada fez levantar o dono do negócio, que cochilava
ao fundo, sentado numa cadeira de abrir. Era um frangalho de homem, barba cor
de palha suja, a cabeça enfiada em um gorro esfarrapado, que provavelmente não
achara comprador. Não se adivinhava nele nenhuma história, como podiam ter
alguns dos objetos que vendia, nem se lhe sentia a tristeza austera e
desenganada das vidas que foram vidas.
A loja era escura, atulhada das coisas
velhas, tortas, rotas, enxovalhadas, enferrujadas que de ordinário se acham em
tais casas, tudo naquela meia desordem própria do negócio. Essa mistura, posto
que banal, era interessante. Panelas sem tampa, tampas sem panela, botões,
sapatos, fechaduras, uma saia preta, chapéus de palha e de pelo, caixilhos,
binóculos, meias casacas, um florete, um cão empalhado, um par de chinelas,
luvas, vasos sem nome, dragonas, uma bolsa de veludo, dois cabides, um bodoque,
um termômetro, cadeiras, um retrato litografado pelo finado Sisson, um gamão,
duas máscaras de arame para o carnaval que há de vir, tudo isso e o mais que
não vi ou não me ficou de memória, enchia a loja nas imediações da porta,
encostado, pendurado ou exposto em caixas de vidro, igualmente velhas. Lá para
dentro, havia outras coisas mais e muitas, e do mesmo aspecto, dominando os
objetos grandes, cômodas, cadeiras, camas, uns por cima dos outros, perdidos na
escuridão.
Ia a sair, quando vi uma gaiola pendurada da
porta. Tão velha como o resto, para ter o mesmo aspecto da desolação geral,
faltava-lhe estar vazia. Não estava vazia. Dentro pulava um canário. A cor, a
animação e a graça do passarinho davam àquele amontoado de destroços uma nota
de vida e de mocidade. Era o último passageiro de algum naufrágio, que ali foi
parar íntegro e alegre como dantes. Logo que olhei para ele, entrou a saltar
mais abaixo e acima, de poleiro em poleiro, como se quisesse dizer que no meio
daquele cemitério brincava um raio de sol. Não atribuo essa imagem ao canário,
senão porque falo a gente retórica; em verdade, ele não pensou em cemitério nem
sol, segundo me disse depois. Eu, de envolta com o prazer que me trouxe aquela
vista, senti-me indignado do destino do pássaro, e murmurei baixinho palavras
de azedume.
— Quem seria o dono execrável deste bichinho,
que teve ânimo de se desfazer dele por alguns pares de níqueis? Ou que mão
indiferente, não querendo guardar esse companheiro de dono defunto, o deu de
graça a algum pequeno, que o vendeu para ir jogar uma quiniela?
E o canário, quedando-se em cima do poleiro,
trilou isto:
— Quem quer que sejas tu, certamente não
estás em teu juízo. Não tive dono execrável, nem fui dado a nenhum menino que
me vendesse. São imaginações de pessoa doente; vai-te curar, amigo...
— Como — interrompi eu, sem ter tempo de
ficar espantado. Então o teu dono não te vendeu a esta casa? Não foi a miséria
ou a ociosidade que te trouxe a este cemitério, como um raio de sol?
— Não sei que seja sol nem cemitério. Se os
canários que tens visto usam do primeiro desses nomes, tanto melhor, porque é
bonito, mas estou que confundes.
— Perdão, mas tu não vieste para aqui à toa,
sem ninguém, salvo se o teu dono foi sempre aquele homem que ali está sentado.
— Que dono? Esse homem que aí está é meu
criado, dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se
devesse pagar-lhe os serviços, não seria com pouco; mas os canários não pagam
criados. Em verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante
que eles pagassem o que está no mundo.
Pasmado das respostas, não sabia que mais
admirar, se a linguagem, se as ideias. A linguagem, posto me entrasse pelo
ouvido como de gente, saía do bicho em trilos engraçados. Olhei em volta de
mim, para verificar se estava acordado; a rua era a mesma, a loja era a mesma
loja escura, triste e úmida. O canário, movendo a um lado e outro, esperava que
eu lhe falasse. Perguntei-lhe então se tinha saudades do espaço azul e infinito...
— Mas, caro homem, trilou o canário, que quer
dizer espaço azul e infinito?
— Mas, perdão, que pensas deste mundo? Que
coisa é o mundo?
— O mundo, redarguiu o canário com certo ar
de professor, o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de
taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que
habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira.
Nisto acordou o velho, e veio a mim
arrastando os pés. Perguntou-me se queria comprar o canário. Indaguei se o
adquirira, como o resto dos objetos que vendia, e soube que sim, que o comprara
a um barbeiro, acompanhado de uma coleção de navalhas.
— As navalhas estão em muito bom uso,
concluiu ele.
— Quero só o canário.
Paguei-lhe o preço, mandei comprar uma gaiola
vasta, circular, de madeira e arame, pintada de branco, e ordenei que a
pusessem na varanda da minha casa, donde o passarinho podia ver o jardim, o
repuxo e um pouco do céu azul.
Era meu intuito fazer um longo estudo do
fenômeno, sem dizer nada a ninguém, até poder assombrar o século com a minha
extraordinária descoberta. Comecei por alfabetar a língua do canário, por
estudar-lhe a estrutura, as relações com a música, os sentimentos estéticos do
bicho, as suas ideias e reminiscências. Feita essa análise filológica e
psicológica, entrei propriamente na história dos canários, na origem deles,
primeiros séculos, geologia e flora das ilhas Canárias, se ele tinha
conhecimento da navegação, etc. Conversávamos longas horas, eu escrevendo as
notas, ele esperando, saltando, trilando.
Não tendo mais família que dois criados,
ordenava-lhes que não me interrompessem, ainda por motivo de alguma carta ou
telegrama urgente, ou visita de importância. Sabendo ambos das minhas ocupações
científicas, acharam natural a ordem, e não suspeitaram que o canário e eu nos
entendíamos.
Não é mister dizer que dormia pouco, acordava
duas e três vezes por noite, passeava à toa, sentia-me com febre. Afinal
tornava ao trabalho, para reler, acrescentar, emendar. Retifiquei mais de uma
observação, — ou por havê-la entendido mal, ou porque ele não a tivesse
expresso claramente. A definição do mundo foi uma delas. Três semanas depois da
entrada do canário em minha casa, pedi-lhe que me repetisse a definição do
mundo.
— O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz
largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco
de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e
circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira.
Também a linguagem sofreu algumas
retificações, e certas conclusões, que me tinham parecido simples, vi que eram
temerárias. Não podia ainda escrever a memória que havia de mandar ao Museu
Nacional, ao Instituto Histórico e às universidades alemãs, não porque faltasse
matéria, mas para acumular primeiro todas as observações e ratificá-las. Nos
últimos dias, não saía de casa, não respondia a cartas, não quis saber de
amigos nem parentes. Todo eu era canário. De manhã, um dos criados tinha a seu
cargo limpar a gaiola e pôr-lhe água e comida. O passarinho não lhe dizia nada,
como se soubesse que a esse homem faltava qualquer preparo científico. Também o
serviço era o mais sumário do mundo; o criado não era amador de pássaros.
Um sábado amanheci enfermo, a cabeça e a
espinha doíam-me. O médico ordenou absoluto repouso; era excesso de estudo, não
devia ler nem pensar, não devia saber sequer o que se passava na cidade e no
mundo. Assim fiquei cinco dias; no sexto levantei-me, e só então soube que o
canário, estando o criado a tratar dele, fugira da gaiola. O meu primeiro gesto
foi para esganar o criado; a indignação sufocou-me, caí na cadeira, sem voz,
tonto. O culpado defendeu-se, jurou que tivera cuidado, o passarinho é que
fugira por astuto...
— Mas não o procuraram?
— Procuramos, sim, senhor; a princípio trepou
ao telhado, trepei também, ele fugiu, foi para uma árvore, depois escondeu-se
não sei onde. Tenho indagado desde ontem, perguntei aos vizinhos, aos
chacareiros, ninguém sabe nada.
Padeci muito; felizmente, a fadiga estava
passada, e com algumas horas pude sair à varanda e ao jardim. Nem sombra de
canário. Indaguei, corri, anunciei, e nada. Tinha já recolhido as notas para
compor a memória, ainda que truncada e incompleta, quando me sucedeu visitar um
amigo, que ocupa uma das mais belas e grandes chácaras dos arrabaldes.
Passeávamos nela antes de jantar, quando ouvi trilar esta pergunta:
— Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que
desapareceu?
Era o canário; estava no galho de uma árvore.
Imaginem como fiquei, e o que lhe disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse
doido; mas que me importavam cuidados de amigos? Falei ao canário com ternura,
pedi-lhe que viesse continuar a conversação, naquele nosso mundo composto de um
jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular...
— Que jardim? que repuxo?
— O mundo, meu querido.
— Que mundo? Tu não perdes os maus costumes
de professor. O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o
sol por cima.
Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse
crédito, o mundo era tudo; até já fora uma loja de belchior...
— De belchior? trilou ele às bandeiras
despregadas. Mas há mesmo lojas de belchior?
---
Imagem:
Correio Paulistano, edição 19 de 1952.
Imagem:
Correio Paulistano, edição 19 de 1952.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...