Hussein Ben-Áli Al-Bálec e Miqueias Habacuc
(Conto argelino)
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Ao senhor Cincinato Braga.
Antes da conquista francesa,
havia, na Argélia, uma família composta de um velho pai doente e seis filhos
varões. Desde muito que o pai, devido aos achaques da idade, não se entregava
diretamente aos trabalhos da sua lavoura; mas, sempre que o seu estado de saúde
lhe permitia, tinha o cuidado de correr as suas terras com plantações, que eram
de tâmaras, alfa, oliveiras, laranjeiras, havendo somente uma parte que era
destinada à criação de ovelhas, cabras e bezerros. As plantações e a criação
estavam entregues a cinco dos seus filhos, pois o mais velho, ele o tinha
mandado ao Cairo, para estudar profundamente, na respectiva universidade, a lei
do Profeta e vir a ser um ulemá digno e sábio no Corão.
Áli Bálec Al-Bálec era o nome
desse filho do velho árabe e esteve de fato no Cairo; mas, bem depressa,
abandonou o estudo das santas leis de Alá e do Profeta e procurou a sociedade
dos infiéis.
Foi ter nas suas aventuras à
Grécia, onde se demorou muito tempo e adquiriu dos gregos muitos hábitos,
costumes e vícios. Não se pode em confiança dizer que os atuais sejam bem netos
dos antigos; mas são aparentados. A finura e sagacidade dos últimos para
abstrações filosóficas, para especulações científicas, para a análise dos
sentimentos e paixões, do que dão provas as suas obras de filosofia, as suas
criações científicas e as suas grandes obras literárias, empregam nos nossos
dias os atuais na mercancia, no tráfico, no escambo, em que sempre procuram,
com a máxima habilidade e sabedoria enganar não só os estrangeiros, como os
seus próprios patrícios.
No Oriente, só há um traficante
que não seja enganado pelo grego: é o armênio. Diz-se mesmo lá: o judeu é
enganado pelo grego, mas o armênio engana ambos.
Os turcos, de onde em onde, matam
estes últimos aos milheiros, não tanto por motivos religiosos, mas por ódio do
comprador cavalheiresco, do homem leal e crédulo, que se vê enganado
despudoradamente, e sente que não há, no outro que o ludibriou, nenhum
princípio de honra, de lealdade, de honestidade, que as relações entre os
homens o exigem.
Áli Bálec Al-Bálec, apesar de ser
muçulmano, foi atraído para o meio dos gregos e, com eles, aprendeu as suas
espertezas, maroscas e habilidades para enganar os outros.
E assim foi que ele andou fora da
casa paterna, fazendo o escambo dos mares do Levante, indo de Alexandria para
Constantinopla, daí para Jafa, deste porto para Salônica, desta cidade para
Corfu, perlustrando todos aqueles mares azuis, cheios de história, de lenda, de
sangue e piratas, comerciando e mesmo pirateando quando a ocasião se lhe
oferecia.
Ao saber da morte do pai, vendeu
logo a faluca que possuía e correu a receber a herança. Coube-lhe uma grande
data de terra, coberta de pés de tâmaras, enquanto os irmãos tinham as suas
cultivadas com alfa, com laranjeiras, oliveiras e um mesmo recebeu a sua parte
em terrenos de pastagens magras, onde pasciam rebanhos enfezados de ovelhas e
cabras.
Todos, porém, ficaram contentes
com a partilha e iam vivendo.
Áli Bálec Al-Bálec trouxera como
sua mulher uma israelita que renegara o Talmude pelo Corão, mas, apesar disso,
tinha o maior desprezo pelos muçulmanos, aos quais considerava grosseiros,
convencendo de tal coisa o marido a ponto dele não dar mais importância aos
seus próprios irmãos.
Logo ao voltar ainda os atendia e
os visitava; mas a mulher lhe dizia sempre:
— Esses teus irmãos são uns
brutos! Parecem mochos! Uns bobos! Que sandálias! O pano das suas chéchias é
barato e sempre está sujo! Deixa-os lá! Aos poucos, devido aos conselhos de sua
mulher, Salisa, da sua insistência, ele deixou de procurar os irmãos, fez-lhes
má cara, embora os filhos deles viessem de quando em quando, à casa do tio,
para ver o primo Hussein, que se ia criando mais pérfido que o pai e mais
orgulhoso que a mãe.
Em pouco, Áli ficou inteiramente
convencido da sua imensa superioridade sobre os seus humildes e resignados
irmãos.
Por ter na sua sala um tapete de
Esmirna, serem as suas armas de aço de Damasco, tauxiadas de ouro, julgava os
seus manos, que se tinham habituado à simplicidade e à modéstia, como
inferiores, iguais aos das tribos negras que viviam para além do deserto.
Julgando-os assim, esquecia-se que, enquanto ele viajava, enquanto ele aprendia
aquelas coisas finais, os irmãos plantavam, ceifavam e colhiam, para ele
aprender.
Além disso, Áli, como falasse
alguns patoás levantinos, julgava-se muito mais que todos os do vilaiete e
também, por possuir joias de ouro e pedras caras, valendo muitas piastras,
imaginava que tudo podia.
Por esse tempo, chegaram os
franceses e o caide apelou para
todos, a fim de socorrer o bei com homens e valores. Áli ofereceu uma das joias
do seu tesouro e quase por isso foi empalado. O joalheiro do palácio verificou
que as joias eram inteiramente falsas e, vindo o bei a saber disso, tomou a
coisa como afronta e mandou castigar severamente o doador.
Salisa, sua mulher, ficou, ao
conhecer a notícia, no mais completo desespero, não porque o marido estivesse
em risco de vida, mas pelo fato que a fortuna representada por aquelas joias
não era mais que fumaça.
Áli foi solto e jurou que havia
de enriquecer de novo. Aceitou sem resistência a dominação francesa e, com
alegria, viu que essa dominação trazia uma grande alta para as tâmaras que o
seu terreno produzia prodigiosamente.
Seus irmãos, a seu exemplo,
aceitaram os francos e continuaram na sua modéstia, observando muito
religiosamente as leis do Corão.
Áli, já habituado, em pouco se
misturou com os infiéis a quem vendia as tâmaras por bom preço e gastava o
grosso do rendimento que ia tendo em bebidas, apesar da proibição do Corão, em
orgias com os oficiais e funcionários franceses. Construiu um palácio que ele
pretendia parecido com aquele do grande califa Harum Al-Raxid, em Bagdá,
conforme é descrito no livro de histórias da princesa Xerazade.
Vendo que as tâmaras eram muito
procuradas pelos francos que, por elas, pagavam bom dinheiro, por toda a parte
começaram a plantar tâmaras; os irmãos de Áli, porém, não quiseram fazer tal,
pois sabiam por experiência de seu pai, que, desde que houvesse muitas tâmaras
para vender e, não se precisando desse fruto para o nosso comer diário, não era
possível que muita gente as quisesse comprar tão caro. Abundando tinham que
vendê-las mais barato, para atingir e provocar os compradores mais pobres.
Continuaram com a sua alfa, as
suas laranjeiras, a pascer os seus rebanhos, sem nenhuma inveja do irmão que
parecia rico e os desprezava.
Os seus sobrinhos, de quando em
quando, iam às terras do tio e ele, por ostentação, por vaidade e para mostrar
riqueza, lhes dava uma libra turca e as crianças voltavam para casa dos pais,
dizendo:
— Tio Áli é que é gente! Tem
tudo! Como ele é rico, por Alá! Os seus pais respondiam:
— Cada um se deve conformar com o
que Alá lhe dá! É bom que prospere, pois tem família... Deus é Deus e Maomé é
seu profeta.
Veio a morrer Áli, quando as
tâmaras começaram a cair de preço. Herdou-lhe os bens, além da mulher, o seu
único filho Hussein Ben-Áli Al-Bálec que tinha todos os defeitos do pai
aumentados com os de sua mãe.
Era vaidoso, presunçoso, ávido,
desprezando os parentes, para os quais era somítico e avaro, desprezando-os
como se fossem animais imundos e tidos em maldição pelas Leis do Profeta. Com
os franceses, entretanto, era mais pródigo do que o pai e fingia ter as suas
maneiras e usos.
Nas gazetas que começaram a
aparecer em Argel, Hussein Ben-Áli Al-Bálec era gabado e, apesar das leis do Corão
proibirem a reprodução da figura humana, uma delas lhe publicou o retrato. As
tâmaras começaram a descer; e, como Hussein tivesse notícias que, duas léguas
próximas, um outro muçulmano possuía uma grande plantação delas, começou a
pensar que era esta que fazia descer o preço das suas.
Em Argel, sobretudo no vilaiete
de Hussein, personificam-se sempre os fenômenos e a sutileza que um plantador
de tâmaras não pode bem conhecer, apesar de raça árabe, o filigranado das
induções da economia política...
Imaginou logo destruir a
plantação e mesmo toda aquela que aparecesse na redondeza. Supôs de bom alvitre
ir com alguns homens e queimar os coqueiros.
O dono certamente queixar-se-ia
ao caide, às autoridades francas; e
seria uma complicação. Homem de expedientes, lembrou-se de conseguir do capitão
francês da guarnição, Al-Durand ou Al-Burhant, a destruição do plantio rival.
Habitualmente, fez-se amigo do rume, encheu-o de presentes, de festas, de
bebidas, pois seguia o exemplo de seu pai nesse tocante; e o “cão do cristão”
se fez afinal seu amigo. Um dia, depois de uma festa, o militar, que pisava
indignamente a terra onde estavam os ossos do seu pai, após muitas queixas de
Áli, apiedado do árabe, apressou-se em ir à plantação do vizinho e castigá-lo.
Assim fez, com os seus soldados e os ferozes serviçais de Hussein. Houve
queixa; o capitão foi punido; mas o saas
de tâmaras não subiu nem meio gourde.
As suas finanças iam de mal a
pior, a casa magnífica ia dando mostras de ruína e os seus móveis e alfaias deterioravam-se
com o tempo. Sua mãe não cessava de censurar-lhe pelas faltas que não lhe
cabiam. Ela, com aquela arrogância muito sua e inveja também muito sua,
repreendia-o:
— Vês: as tâmaras caem de preço e
tu não tomas providência alguma. Os meus não são assim... Mas tens o sangue de
teu pai... É verdade que teus tios estão vendendo alfa, oliveiras, gado e
laranjas e ganham... Se tu não fizeres esforço algum, ficarás como eles, uns
macacos a viver em tocas e a dormir em pelegos de carneiro... Xmed, o teu segundo
tio, ganhou duzentas piastras em azeitonas e ficou contente. Queres ser como
ele?
— Que hei de fazer, mãe?
— Pensa; e não fiques aí a chorar
como mulher. Saul chorou? Davi chorou? Só o Deus dos cristãos chorou: Jeová não
ama o choro. Ele ama a guerra e o combate, até o extermínio. Lê os livros, os
que foram os meus e os teus que são também agora os meus. Lembra-te de Débora e
de Judite e eram mulheres!
Hussein Ben-Áli Al-Bálec não
podia dormir com a impressão das palavras de sua mãe. O saas de tâmaras continuava a descer de gourde em gourde, e ele
só se lembrava de Áli, de Ornar, de todos aqueles de sua raça que as tinham
levado em meio século, do Ganges ao Ebro. Mas o saas de tâmaras parecia não temer aquelas sombras augustas e
ferozes. Descia sempre.
Certo dia, apareceu-lhe um homem
que queria falar a sua mãe, Salisa. Era o irmão dela, Miqueias Habacuc. A irmã
e o sobrinho acolheram muito bem tão próximo parente e lhe falaram na baixa das
tâmaras que os atormentava. Miqueias, que era homem esperto em negócios, disse
para o sobrinho:
— Filho de minha irmã, tens meu
sangue, mas não a minha fé nos livros santos da sinagoga; mas teus avós Isaque,
Baruque, Daniel, Azaf, Etã, Zabulon, Neftali e tantos outros mandam que eu te
auxilie nesse transe da tua vida que é preciosa a eles e a mim, pois ela é
deles e também minha. Portanto, tais forem os presentes que tu me fizeres, eu
posso purificar-me de ter socorrido um ente que não é de Israel. Dize-o que o
rabino me perdoará.
Hussein ficou de pensar e, à noite,
conferenciou com sua mãe Salisa.
— Filho, dá-lhe alguns cequins
turcos e aquelas joias falsas que quase custaram a morte de teu pai. Porque —
ouve bem — o conselho dele pode ser falaz.
Despertando Miqueias, logo
Hussein foi ter com ele e propôs-lhe o escambo. O israelita, ao ver as joias,
nem olhou mais os cequins. Ficou com os olhinhos fosforescentes de tigre na
escuridão. Era como se fosse dar um salto de felino. Contou então ao sobrinho
como devia proceder.
— Tu que tens o sangue de minha
avó Micaia, que era da tribo de Jeroboão, e de Azarela, que era da casa de
Leedã, ouve, comprarás todas as tâmaras que houver na redondeza, mesmo antes de
amadurecerem, ficando elas nos pés. Quando for época de colhê-las, colhê-las-ás
todas, guardando em surrões nos armazéns de tua casa e não venderás senão
quando te oferecerem um lucro que dê a fartar para gastares...
— Tio amado e sábio: elas não
apodrecerão?
— Não importa. As poucas
“medidas” em que isto acontecer darão prejuízo, mas tu marcarás o lucro de modo
que o cubras.
Hussein Ben-Áli Al-Bálec
descansou um instante a cabeça sobre o peito, depois a ergueu de repente e
exclamou:
— Falas com a sabedoria do
Profeta, Miqueias Habacuc. Que Alá seja contigo!
Miqueias Habacuc, filho de Uriel
de Sepetai, não se quis demorar mais e partiu despedindo-se da irmã Salisa e do
sobrinho Hussein Ben-Áli Al-Bálec com lágrimas nos olhos, canastras pesadas com
os cequins turcos e as joias falsas com que o sobrinho lhe pagara o seu
profundo conselho de economia política hebraica.
Hussein fez o que lhe foi
aconselhado; e as tâmaras começaram a ter mais oferta de preço. Vendeu-as com
grande lucro no primeiro ano; no segundo, se sentia uma certa resistência no
mercado, ele as reteve em grande parte; mas, no terceiro ano, ele teve que
comprar a produção e viu que ia aumentando o estoque do que se pode chamar de
valorização das tâmaras. Viu bem que se continuasse a comprar a produção,
ficaria com ele demasiado aumentado, a sua fortuna comprometida e que fez?
Cedeu. As tâmaras começaram a descer gourde
a gourde. Teve uma ideia que um
sargento francês lhe indicou. Vendo que elas encalhavam nos seus armazéns e os
pedidos cresciam lentamente; vendo, pouco a pouco,
os seus coquinhos perdendo o valor, alugou alguns gritadores que berrassem, nas
ruas de Argel, a guerreira:
— Vivam as tâmaras! Não há coisa
melhor que as tâmaras de Hussein Ben-Áli Al-Bálec!
Nas gazetas, ele pagava anúncios
das suas tâmaras, mas não vendia mais que dantes. Deu-as de graça e, como toda
coisa dada de graça, elas só agradavam desse modo.
Em se tratando de vendê-las,
nada! Os surrões de tâmaras aumentavam nos seus armazéns, pois teimava em
comprá-las e guardá-las, para que elas não viessem afinal a não valer nada.
O tapete de Esmirna que o pai lhe
deixara desfiava-se, empenhou as armas preciosas, também a herança do pai, para
comprar mais sacas de tâmaras. Comprou um tapete falso e umas armas vagabundas
de um cabila mais vagabundo ainda, para pôr no lugar das antigas preciosidades.
Os outros plantadores, que se tinham limitado a colher e vender, iam vivendo
das suas modestas plantações; ele, Hussein Ben-Áli Al-Bálec, corria para a
ruína certa.
Foi por aí que, novamente, lhe
apareceu Miqueias Habacuc, seu tio, homem hábil e esperto nos negócios. Hussein
ficou espantado, mas o tio lhe disse:
— Rebento da minha querida irmã,
pelo Deus de Abraão, de Israel e de Jacó, não te amedrontes: vendi as joias por
um bom preço a um grego, com o que ganhei duas coisas: dinheiro e a glória de
ter enganado um cão dessa espécie. Mas, pelo Eterno! Esta ideia de pagar-me o
conselho em joias falsas não é tua...
Isto tem dedo de pessoa
inteiramente da minha raça de Mardoc e Malaquias...
Isto é de minha irmã! Não foi tua
mãe quem...
— Foi. E que fizeste do dinheiro,
tio amado da minha alma; socorro da minha vida?
— Emprestei-o aos turcos com bons
juros e quando os cobrei, quase me esfolaram. Muito tem sofrido a raça de
Israel; mas o que sofri deles, nem contar te posso — ó descendente do grande
Al-Bálec, companheiro de Musa — conquistador das Espanhas!
Acabava de dizer estas palavras,
quando entra no aposento em que estavam Salisa, a feroz Judite, a eloquente
Débora — que, ao dar com o irmão, se põe em prantos, exclamando:
— Irmão do coração, sábio
Miqueias! Tu que descendes como eu de Micaia, da tribo de Jeroboão, e de
Azarela, que era da casa de Leedã, salva-me pelo nosso Deus de Abraão, de
Israel e de Jacó — salva-me!
E a feroz Judite e eloquente
Débora chorou não a sua dor, nem a dos outros, mas o dinheiro que se sumia.
Contou, então, Hussein ao tio,
como a ruína se aproximava; como a valorização das tâmaras, no começo dando tão
bom resultado, viera a acabar, no fim, em desastre completo.
O velho Miqueias, filho de Uriel
de Sepetai, coçou as barbas hirsutas; os seus olhinhos luziram naquele quadro
de pelos cerdosos; depois, faiscando-os malignamente, perguntou ao sobrinho:
— Com que dinheiro tu, sobrinho
meu; com que dinheiro fizeste a operação? Hussein disse-lhe que fora com o
dinheiro dele e o da sua mãe. Miqueias
Habacuc, judeu de Salônica, homem
esperto e hábil em negócios, sorriu com gosto e demora, dizendo após:
— Tolo que és!
— Por quê?
Habacuc assim falou de súbito,
logo imediatamente à pergunta:
— Que me darás em troca pela
explicação?
— A última bolsa de cequins de
ouro que me resta.
— És generoso e grande, sobrinho
meu, filho de Salisa, minha irmã, guarda-a. Ganharemos
mais. Fizeste mal em empregar o teu dinheiro e o da tua mãe. Devias empregar o
dos outros.
— Como, tio Miqueias?
— Tu não sabes, meu sobrinho,
essas operações de câmbio e de banco. Eu as sei. Nós agora vamos organizar a
defesa das tâmaras, isto é, impedir que especuladores reduzam à miséria e à
desolação esta rica região do Magreb, como dizia o teu grande avô, Al-Bálec.
Vamos pedir dinheiro aos seus habitantes, para que não morram de fome e não
pereçam à míngua por falta de trabalho.
— Não me darão, tio.
— Dar-te-ão, sobrinho do meu
coração; dar-te-ão. Chama teus tios, irmãos de teu pai, e os filhos, e
convence-os que devem dar as economias que têm, em moeda, para poderes lutar
com os que querem acabar com as plantações de tâmaras do vilaiete. Dize-lhes
que se não o fizerem as plantações morrerão, os habitantes fugirão, aqui ficará
tudo deserto, sem água e sem pastagens; e os bens deles nada valerão e serão
também eles obrigados a fugir, perdendo muito, senão tudo.
— E em troca?
— Tu lhes darás vales que
vencerão juros e pagarás os vales em certo prazo.
— Mas...
— Nada objetes, meio do meu
sangue de Sepetai, mas meu sobrinho inteiramente. Não sabes o que é a cobiça;
não sabes o que é querer ter dinheiro sem trabalhar. Eles aceitarão na certa e,
não sendo ricos em breve precisarão de dinheiro. Eu vou pôr um “bazar” com o
saco de cequins de ouro que te resta e farei saber que desconte esses vales
teus, em dinheiro ou em mercadoria. O pouco dinheiro que tens atrairá o deles,
tu comprarás tâmaras, mas pagarás em vales que vencerão o juro de dois por
cento, mas que eu descontarei a vinte, trinta e mais por cento.
— Se não quiserem descontar, tio que
és sábio como o mais sábio dos ulemás, como há de ser?
— Tens o dinheiro dos teus
parentes. Em começo, pagarás tudo em dinheiro. Mas teus parentes, precisando de
dinheiro, irão, como te disse, procurar-me. Eu os atenderei imediatamente. A
fama correrá e ninguém temerá receber os teus vales.
— Compreendo. E as tâmaras?
— Irás vendendo a bom preço e
guardando o dinheiro, deixando que uma grande parte apodreça. Tu viverás na
pompa, na grandeza, e um belo dia, em vez de eu descontar vales, adquiro-os com
ágio. Toda a gente quererá os teus vales e encheremos as arcas de dinheiro.
— E no fim, no pagamento, como
será?
— Marcarás um prazo longo, pela
festa do Beirão, e daqui até lá teremos tempo de agir.
Hussein Ben-Áli Al-Bálec empregou
todas as lábias que lhe ensinou Miqueias Habacuc. Seus tios e primos entregaram-lhe
as economias, pois ficaram muito contentes que ele se lembrasse de defendê-los,
de impedir a ser completa a miséria. Tio e sobrinho encheram os simplórios
homens de todos os afagos, de todas as blandícias, e iniciaram a defesa das
tâmaras, que era a própria defesa do vilaiete.
Um único não quis entregar as
terras de pastagem. Foi o tio que herdara as terras de pastagem. Dissera o
velho:
— As tâmaras não são do gosto de
todo o mundo e as que se colhem são de sobra para os que gostam delas. Hão de
se as vender barato por força, pois são demais.
Hussein Ben-Áli Al-Bálec, porém,
deu início à sua obra de grande eficácia para todo o vilaiete, ostentando uma
riqueza, um luxo e uma magnificência que reduziram, fascinaram a imaginação do
povo do lugar e das circunvizinhanças.
O seu palácio foi aumentado; as
suas estrebarias ficaram cheias de soberbos ginetes do Hedjaz, nas suas
piscinas só corriam águas perfumadas — tudo ficou sendo um encanto no seu
alcáçar e dependências.
A fama de sua riqueza corria por
toda a parte e até, em Argel, a branca, a guerreira, seu nome era falado. Dizia
a boca do povo:
— Se todos fossem como Hussein
Ben-Áli Al-Bálec conquistaríamos todo o Magreb, expulsando os rumes.
O seu crédito ficou sendo tal que
todo o dinheiro que havia naquelas terras entrou para as suas arcas.
As tâmaras subiram de preço, de
fato; mas pouco. Entretanto, enquanto vendia um terço, guardava dois. Miqueias
Habacuc exultava, com os descontos que fazia e com o dinheiro que era trazido
para as mãos do sobrinho. Só a irmã, a feroz Salisa, temia o fim e perguntava
ao irmão:
— Como pagaremos tantos vales, se
já gastamos o dinheiro deles e temos mais tâmaras guardadas que
vendidas?
— Cala-te, irmã que és minha. Aí
é que está a minha grande sabedoria. O dinheiro amoedado desapareceu e os vales
de Hussein corriam como moeda. No começo equivaliam ao
seu valor em cequins; mas, bem depressa, para se comprar com eles um saas de trigo, tinha-se de gastar o duplo
do que se gastava antigamente. O povo começava a desconfiar, quando veio
rebentar a guerra de Abdelcáder, emir de Mascara. Andava ele precisando de
homens e víveres. O emir, que sabia do prestígio de Hussein naquele vilaiete,
oferece-lhe alguns milhares de libras turcas, para que mandasse homens.
Miqueias, que sabe do caso,
intervém, e propõe que o sobrinho aceite, contanto que o emir lhe compre as
tâmaras. O emir acede, paga as mil libras turcas, compra as tâmaras de que não
precisava.
E Hussein convence os parentes
que devem partir para os goums. Para
isso falou como um santo marabuto.
Antes da festa do Beirão, época
que era marcada para o vencimento dos vales, fugia, com a mãe, a feroz Salisa,
o tio Miqueias Habacuc, homem hábil e esperto em negócios — cheios todos de
ouro, ricos de apodrecer.
No vilaiete a população caiu na
miséria, menos aquele tio de Hussein Ben-Áli Al-Bálec, que não quis entrar na
defesa das tâmaras.
Durante muito tempo, pastoreou as
suas ovelhas e tosou os seus carneiros. Os seus netos ainda hoje fazem a mesma
coisa naquele lugarejo argelino, onde as inocentes tamareiras, se não
constituem objeto de maldição, são tidas como simples árvores de adorno.
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