História rústica
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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I
Era já noite
alta quando o Zé Lírio transpôs a porteira, bêbedo a cair. Recolhia das Areias,
do engenho do Gaia, ainda àquela hora aceso e ruidoso, onde uma multidão
bailava e ria, numa alegria campestre, celebrando as bodas da Josefina, uma das
filhas mais novas do velho lavrador. A rapariga casara ao entardecer, sob um
poente de púrpura e o dobrar dos canários nas ramagens dos caminhos. O noivo
era um primo, ausente desde anos, longe no Rio Grande do Sul, de onde chegara
havia semanas a visitar a família. Moreno e robusto, o rapaz encantava, pelo
porte hercúleo, o sorriso límpido, o brilho negro dos olhos, a cor quente e
viril do rosto tinto pelo sol do mar. Crescera e se fizera homem como remador,
no rude serviço da barra, onde ganhara algum dinheiro, passando depois a
contramestre de iate. Mal chegara ao sítio, apaixonara-se pelos cabelos
dourados da prima, os seus olhos azuis de longos cílios bastos, os dentes
alvíssimos, o corpo alto e primaveril, de amplas ancas virginais. A prima
correspondera-lhe logo às carícias másculas, abandonando para sempre o Zé
Lírio, coitado, que a adorava loucamente, desde muitos anos. E, ajustado o
casamento, tudo se consumara naquele sábado.
E ali,
agora, numa angústia, na grande dor do coração apunhalado, o Zé Lírio não pôde
dar mais um passo: tropeçante, as pernas trêmulas, agarrando-se às varas da
estreita cerca que ia dar ao terreiro separando o vasto pasto ao lado, foi-se
arrastando até os degraus de pedra da entrada, onde caiu, preso dos soluços e
das lágrimas apesar da carga de álcool, a cabeça pendida, numa atitude
alquebrada...
II
Todo aquele
dia levara a beber, numa longa inquietação, a cruzar a estrada, por defronte do
engenho, onde havia uma animação desusada. Às vezes, sem ninguém o ver, dando
volta pela Várzea, metia se no extenso mandiocal da empena, que ia até o campo,
e ficava horas e horas a espreitar, agachado sob as ramas verdes tremendo ao
vento. Daí, por debaixo das frondes do laranjal e do cafezal em redor, entre os
troncos eretos, descortinava as paredes barreadas dos fundos e o terreno
arenoso onde a criação se agitava vivamente, cacarejando sob a luz de ocre
ardente. Na varanda linguarejava-se, numa algazarra adorável. De vez em
quando, raparigas da vizinhança, que tinham ido ajudar os preparativos da
festa, e a Josefina, atravessavam, num rumor alegre e chalrando, para os lados
da fonte. No cercado da horta, saias brancas engomadas fulguravam ao sol.
Então,
enternecido e acometido de dolorosa saudade, entrou a lembrar-se dos tempos
felizes em que começou a frequentar o engenho. Fora por umas farinhadas, havia
dez anos, tinha ele dezoito. Um dos filhos do Gaia adoecera das bexigas e ele
fora ajudar a fornear. Era num inverno de grande geada. Em todos os cantos
tiritava-se. E as raparigas, que raspavam a mandioca, logo ao escurecer iam
empoitar-se para ao pé do forno, junto às brasas dos toros, cujas labaredas
vermelhas e risonhas aqueciam e clareavam a casa, mais que as chamazinhas
mortiças das antigas candeias de azeite, ardendo penduradas aos altos paus do
aparelho. E a Josefina, que andava ainda pelos doze anos, mas muito
desenvolvida, com os seiozinhos nascentes espetando o largo corpete de chita,
os lindos olhos de um azul úmido e novo, a cabeça coroada de esplêndidas meadas
de ouro caindo-lhe pelas espáduas ebúrneas até a curva deliciosa e escultural
dos quadris — entrou a preocupar o seu coração,
ainda virgem e são como as estrelas, dominando-o, imprimindo-lhe sensações e
sonhos que lhe faziam pulsar mais forte o sangue nas veias. Nascera-lhe então
uma grande alegria, uma grande esperança, com estremecimentos nervosos, as
impetuosidades meigas dos que acordam para o amor. A rapariga, na intimidade do
trabalho e naquele conchego magnífico e constante dos engenhos, pelas invernias
bravas, portas fechadas ao leste cortante desde a tardinha olhava-o sempre
afetuosamente, sorrindo, admirando-lhe o tórax rijo e socado de roceiro, cujos
braços possantes, durante as longas fornadas, moviam a pá sem descanso. Ele
olhava-a também, timidamente, furtivamente, numa imensa candura de cão. E todas
as noites os seus olhares voavam de um para o outro, com inefável ternura, à
luz da fornalha crepitante...
Mas
decorreram os meses, a mandioca acabou. O trabalho daquele ano findara. A sua
paixão, porém, tornara-se mais intensa, e ele, muito estimado pelo Gaia e a
família, não saía do engenho, frequentando-o à noite, nas palestras carinhosas
dos serões. No ano seguinte, pelas novas farinhadas, já a afeição de ambos
tinha uma reciprocidade mais íntima; falavam-se a sós, sem os acanhamentos, as
hesitações dos primeiros tempos; e, a certa hora, de dia, davam-se rendez-vous ingênuos à sombra das
ramagens, no pomar, ou junto às pedras da fonte, mutuando confidências
infinitas, desviando-se os olhares, num embaraço rústico que os tornava
escarlates, apesar da frescura que se erguia do espelho verde d'água onde,
muitas vezes, o salto inesperado de uma rã os fazia debandar, num temor.
E fora
dentro daquela horta, que ele estava agora a contemplar enternecido, que ela
lhe dera o primeiro beijo, uma manhã de festa, quando colhia rosas para Nossa
Senhora. Ainda lá estava, cobrindo toda uma parte da pequena cerca, erguida
vitoriosamente para o céu nos braços frondentes e altos do cinamomo, com as
suas inumeráveis corolas amarelas radiando como astros, a velha roseira da
Índia que tanto os cobrira com o seu esplendor e fragrância. Como a sua vida
correra plácida e feliz, então!...
E, num
desfalecimento e numa angústia, rompia a chorar por momentos; depois erguia-se,
numa fúria, os olhos raiados de sangue, os punhos cerrados, ameaçando a casa
por entre as verduras. E afastava-se, resmungando, num nervosismo, quebrando
brutalmente com os pés a rama tenra que lhe impedia o caminho...
III
À meia
tarde, quando começavam a afluir ao engenho os convidados, Zé Lírio
encaminhou-se para a venda do Justino, na Rua Velha, por onde tinha de passar o
noivado. Nesse momento entravam a se aglomerar à porta os primeiros rapazes
para a costumada algazarra da noite. O Zé entrou praguejando, todo sujo, os
cabelos emaranhados, chapéu carregado sobre a fronte, as feições amarradas, e,
dando “boas tardes” a todos, foi sentar-se a
um canto, pedindo cachaça. Tinha a larga face cavada, engelhada, a barba
revolta, e os olhos reluziam, negros e inchados nas órbitas, com uma luz
desvairada. De repente, recaiu num silêncio e, com o braço apoiado ao balcão,
parecia dormitar. Ninguém ousava falar alto, temendo-lhe as amplas espáduas
possantes. Apenas alguns, mais afastados, comentavam baixo o “caso” do pobre rapaz, com palavras de compaixão e afeto.
Mas,
subitamente, as crianças que andavam a traquinar no terreiro, romperam a
gritar, num alarido infantil:
— Olha o casamento! Olha o casamento!
Todos
correram para a porta, quando o Zé Lírio ergueu-se, de um salto, de faca em
punho, procurando investir para a estrada, aos berros:
— Ah! que os mato!... Canalha!...
Foi uma
debandada, uma balbúrdia de mil demônios. Mas o Justino, que tinha uns músculos
de touro, um homenzarrão, outrora tropeiro e domador, pulou-lhe em cima, com
uma presteza de gato, e agarrou-o de um ímpeto, enlaçando-o pelo tórax e
empurrando-o, aos trambolhões, para o fundo da venda.
Agora, de
toda a parte acudiam pessoas.
No préstito
festivo, enfrentando a casa já de volta da igreja, houve como um frêmito, uma
perturbação que o fez estacar, empalidecendo a todos, em presença do motim. O
noivo conservava-se, porém, impassível, hercúleo e ereto no seu fraque preto
cheio de dobras, mas a seu lado, a noiva parecia trêmula e de cera, sob o tule
tênue do véu.
No
ajuntamento que se adensara em volta, vozes clamavam:
— Não é nada,
gente! É o Zé Lírio com a cana!
O préstito
recomeçou a sua marcha, enquanto lá nos fundos da venda o rapaz, num desatino e
colérico, tentava furiosamente desprender-se dos braços poderosos do outro.
À noite, já
de todo acomodado, o Zé Lírio soltara-se para as Areias. A lua cheia mostrava o
disco além, por cima dos montes da cachoeira, lavorada e branca como uma salva
de prata, voltada para os campos, vertendo um polvilho de claridade. O rio, lá
embaixo, no seio chato da planície, estendia uma larga faixa rutilante de
níquel, comida aqui e ali pelo mangal denso das margens. Nos maciços de
folhagens, cujos cimos escorriam umidade láctea, a brisa álgida do norte gemia
melancolicamente. Do alto espaço azulado, as estrelas lançavam cintilações de
diamantes em poeiras inumeráveis. E jamais a profundidade dos céus pareceu
conter mais densa nuvem de pó luminoso.
O Zé seguia,
de cabeça inclinada, pela fita clara e arenosa do caminho correndo entre sebes,
ruminando a sua dor no cruel despedaçamento de todo o seu ser. E essa noite
admirável, sob a qual caminhava com o desespero no coração, parecia-lhe
pungitivamente uma tremenda ironia da Natureza, sempre indiferente e inabalável
às coisas humanas!
Ao descer o
Caminho Novo, depois da chama de cólera em que ardera, uma nostalgia sem nome
varou-lhe a alma, ao avistar ao longe a profusa iluminação do engenho,
destacando saudosamente por entre a verdura. Na encruzilhada, quase ao pé da
porteira estacou, ao deparar-se-lhe multidão enorme, homens e mulheres que se
apinhavam no terreiro, banhado pelas luzes derramando-se das janelas, de onde
lhe chegava aos ouvidos o rumor compassado da dança de envolta com os sons
roufenhos de uma gaita. Temendo ser visto, ganhou a picada do Bom Jesus em
direção à venda do Teixeira, de onde voltou depois, às guinadas, bêbedo,
completamente bêbedo. E, cortando pelo imenso vassoural que ia sair defronte do
engenho, varou o caminho, onde errou toda anoite, num esmagamento de derrota, a
praguejar desesperadamente contra os que não o ouviam, embriagados também nos
arruídos da festa. Afinal, numa última e já cansada revolta, tomando o caminho
de casa, pela vez derradeira lançou ao vento este brado angustioso e pressago,
que longamente ecoou no ar:
— Desgraçados!...
E
desapareceu, aos solavancos e aos tombos, sob a luz silenciosa do luar tocando
agora o zênite.
IV
Havia quase
um ano que a Josefina abandonara o Zé Lírio, porque ele, desde a morte da mãe,
dera em entregar-se à bebida e, em certas ocasiões, desordenava-se, dando que
falar no sítio.
A rapariga
não o via desde o último coroado no
engenho, onde ele, uma noite, muito embriagado, levantara uma rixa, da qual
resultou saírem os irmãos feridos e o pai expulsá-lo para sempre, proibindo-lhe
as visitas.
Então,
profundamente apaixonado com o desprezo em que o lançara a noiva e toda a boa
família do Gaia, à qual a bem dizer pertencia, ficara de todo perdido, dando-se
abertamente ao álcool. Mas a sua paixão jamais cessara, e ele, embora arredio,
andava ao fato de tudo, sabendo dos passos da Josefina. Por isso, desde que lhe
disseram do casamento dela com o primo, nunca mais deixara as Areias, rondando
o engenho, noite e dia; e naquele sábado, mais do que nunca, os seus pés
infatigáveis freneticamente revolveram ali a poeira do caminho.
V
Agora, à
porta de casa, bêbedo e exausto, com o coração despedaçado e vazio, num
desmoronamento íntimo de todos os afetos, o Zé Lírio sentia como uma grande
enervação inteiriçá-lo, sobre os degraus de pedra. Desfalecido, num
acobardamento mortal, ali jazia ainda ao ar gelado da noite. Tudo, em volta,
permanecia numa mudez de sacrário. As árvores nem sequer farfalhavam de leve
nos campos adormecidos, velados pela dealbação do luar. E nenhum outro som no
espaço além do ladrar soturno e rouco dos cães, ao longe.
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