História Comum
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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... Caí na copa do chapéu de um homem que
passava... Perdoe-me este começo; é um modo de ser épico. Entro em plena ação.
Já o leitor sabe que caí, e caí na copa do chapéu de um homem que passava;
resta dizer donde caí e por que caí.
Quanto à minha qualidade de alfinete, não é
preciso insistir nela. Sou um simples alfinete vilão, modesto, não alfinete de
adorno, mas de uso, desses com que as mulheres do povo pregam os lenços de
chita, e as damas de sociedade os fichus, ou as flores, ou isto, ou aquilo.
Aparentemente vale pouco um alfinete; mas, na realidade, pode exceder ao
próprio vestido. Não exemplifico; o papel é pouco, não há senão o espaço de
contar a minha aventura.
Tinha-me comprado uma triste mucama. O dono
do armarinho vendeu-me, com mais onze irmãos, uma dúzia, por não sei quantos
réis; coisa de nada. Que destino! Uma triste mucama. Felicidade, — este é o seu
nome, — pegou no papel em que estávamos pregados, e meteu-o no baú. Não sei
quanto tempo ali estive; saí um dia de manhã para pregar o lenço de chita que a
mucama trazia ao pescoço. Como o lenço era novo, não fiquei grandemente
desconsolado. E depois a mucama era asseada e estimada, vivia nos quartos das moças,
era confidente dos seus namoros e arrufos; enfim, não era um destino
principesco, mas também não era um destino ignóbil.
Entre o peito da Felicidade e o recanto de
uma mesa velha, que ela tinha na alcova, gastei uns cinco ou seis dias. De
noite, era despregado e metido numa caixinha de papelão, ao canto da mesa; de
manhã, ia da caixinha ao lenço. Monótono, é verdade; mas a vida dos alfinetes,
não é outra. Na véspera do dia em que se deu a minha aventura, ouvi falar de um
baile no dia seguinte, em casa de um desembargador que fazia anos. As senhoras
preparavam-se com esmero e afinco, cuidavam das rendas, sedas, luvas, flores,
brilhantes, leques, sapatos; não se pensava em outra coisa senão no baile do
desembargador. Bem quisera eu saber o que era um baile, e ir a ele; mas uma tal
ambição podia nascer na cabeça de um alfinete, que não saía do lenço de uma
triste mucama? — Certamente que não. O remédio era ficar em casa.
— Felicidade, diziam as moças, à noite, no
quarto, dá cá o vestido. Felicidade, aperta o vestido. Felicidade, onde estão
as outras meias?
— Que meias, nhanhã?
— As que estavam na cadeira...
— Uê! nhanhã! Estão aqui mesmo.
E Felicidade ia de um lado para outro,
solícita, obediente, meiga, sorrindo a todas, abotoando uma, puxando as saias
de outra, compondo a cauda desta, concertando o diadema daquela, tudo com um
amor de mãe, tão feliz como se fossem suas filhas. E eu vendo tudo. O que me
metia inveja eram os outros alfinetes. Quando os via ir da boca da mucama, que
os tirava da toilette, para o corpo
das moças, dizia comigo, que era bem bom ser alfinete de damas, e damas bonitas
que iam a festas.
— Meninas, são horas!
— Lá vou, mamãe! disseram todas.
E foram, uma a uma, primeiro a mais velha,
depois a mais moça, depois a do meio. Esta, por nome Clarinha, ficou arranjando
uma rosa no peito, uma linda rosa; pregou-a e sorriu para a mucama.
— Hum! hum! resmungou esta. Seu Florêncio
hoje fica de queixo caído...
Clarinha olhou para o espelho, e repetiu
consigo a profecia da mucama. Digo isto, não só porque me pareceu vê-lo no
sorriso da moça, como porque ela voltou-se pouco depois para a mucama, e
respondeu sorrindo:
— Pode ser.
— Pode ser? Vai ficar mesmo.
— Clarinha, só se espera por você.
— Pronta, mamãe!
Tinha prendido a rosa, às pressas, e saiu.
Na sala estava a família, dois carros à
porta; desceram enfim, e Felicidade com elas, até à porta da rua. Clarinha foi
com a mãe no segundo carro; no primeiro foi o pai com as outras duas filhas.
Clarinha calçava as luvas, a mãe dizia que era tarde; entraram; mas, ao entrar
caiu a rosa do peito da moça. Consternação desta; teima da mãe que era tarde,
que não valia a pena gastar tempo em pregar a rosa outra vez. Mas Clarinha
pedia que se demorasse um instante, um instante só, e diria à mucama que fosse
buscar um alfinete.
— Não é preciso, sinhá; aqui está um.
Um era eu. Que alegria a de Clarinha! Com que
alvoroço me tomou entre os dedinhos, e me meteu entre os dentes, enquanto
descalçava as luvas. Descalçou-as: pregou comigo a rosa, e o carro partiu. Lá
me vou no peito de uma linda moça, prendendo uma bela rosa, com destino ao
baile de um desembargador. Façam-me o favor de dizer se Bonaparte teve mais
rápida ascensão. Não há dois minutos toda a minha prosperidade era o lenço
pobre de uma pobre mucama. Agora, peito de moça bonita, vestido de seda, carro,
baile, lacaio que abre a portinhola, cavalheiro que dá o braço à moça, que a
leva escada acima; uma escada suada de tapetes, lavada de luzes, aromada de
flores... Ah! enfim! eis-me no meu lugar.
Estamos na terceira valsa. O par de Clarinha
é o Dr. Florêncio, um rapaz bonito, bigode negro, que a aperta muito e anda à
roda como um louco. Acabada a valsa, fomos passear os três, ele murmurando-lhe
coisas meigas, ela arfando de cansaço e comoção, e eu fixo, teso, orgulhoso.
Seguimos para a janela. O Dr. Florêncio declarou que era tempo de autorizá-lo a
pedi-la.
— Não se vexe; não é preciso que me diga
nada; basta que me aperte a mão.
Clarinha apertou-lhe a mão; ele levou-a à
boca e beijou-a; ela olhou assustada para dentro.
— Ninguém vê, continuou o Dr. Florêncio;
amanhã mesmo escreverei a seu pai.
Conversaram ainda uns dez minutos, suspirando
coisas deliciosas, com as mãos presas. O coração dela batia! Eu, que lhe ficava
em cima, é que sentia as pancadas do pobre coração. Pudera! Noiva entre duas
valsas. Afinal, como era mister voltar à sala, ele pediu-lhe um penhor, a rosa
que trazia ao peito.
— Tome...
E despregando a rosa, deu-a ao namorado,
atirando-me, com a maior indiferença, à rua... Caí na copa do chapéu de um
homem que passava e...
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