Harakashy e as escolas de Java
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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“Tudo o que este mundo encerra é propriedade do brâmane, porque ele,
por seu nascimento eminente, tem direito a tudo o que existe."
Código de Manu.
Na minha peregrinação sentimental
por este mundo, fui ter, não sei como, à cidade de Batávia, na ilha de Java.
É fama que os franceses ignoram
sobremodo a geografia; mas estou certo de que, entre nós, pouca gente tem
notícias seguras dessa ilha e da capital das Índias Neerlandesas.
É pena, pois é da terra um dos
recantos mais originais e cheios de surpreendentes mistérios que se vão aos
poucos desvendando aos olhos atônitos da nossa pobre humanidade.
Lá, Dubois achou partes do
esqueleto do Pithecanthropus erectus;
e o doido do Nietzsche tinha admiração por certastrepadeiras dessa curiosa
ilha, porque, dizia ele, amorosas do sol, se enrodilhavam pelos carvalhos e,
apoiadas neles, elevavam-se acima dos mais altos galhos dessas árvores
veneráveis, banhavam-se na luz e davam a sua glória em espetáculo.
Os restos do afastado ancestral
do homem que Dubois encontrou, não os vi quando lá estive.
Trepadeiras e cipós vi muitos,
mas carvalho não vi nenhum. Nietzsche, que lá não esteve, certamente julgou que
Java tinha alguma semelhança com Saxe ou com a Suíça.
Não eram precisos os carvalhos
nem as tais trepadeiras, muito vulgarmente, como todas as plantas, amorosas da
luz, para tornar java interessante, porque só o aspecto mesclado de sua
população, a confusão do seu pensamento religioso, as suas antiguidades búdicas
e os seus vulcões descomunais seduzem e prendem a atenção do peregrino
desgostoso ou do sábio esquadrinhador.
Por meses e meses, o tédio mais
principesco desfaz-se naquelas terras de sol candente e orgia vegetal que,
talvez, com a Índia e os grandes lagos da África, sejam os únicos lugares da
terra que não foram ainda banalizados inteiramente.
Creio que não será assim por
muito tempo. Lá estão os holandeses; e edificaram até, na cidade de Batávia, um
bairro europeu chamado, na língua deles, Weltevreden (paz do mundo), cujas
damas se vestem e têm todos os tiques periódicos das moças de Hong-Kong ou de
Petrópolis.
Nos olhos das mulheres do bairro
europeu não há senão a mui terrena ânsia da fortuna; mas nos olhares negros,
luminosos, magnéticos das javanesas há coisas do Além, o fundo do mar, o céu
estrelado, o indecifrável mistério da sempre misteriosa Ásia. Também há volúpia
e há morte.
A massa de hindus, de chineses,
de anamitas, de malaios e javaneses, porém, esmaga a banalidade pretensiosa
daquelas holandesas rechonchudas que estão pedindo a sua imediata volta às
monótonas campinas da pátria, com as suas vacas nédias, os seus clássicos
moinhos de vento e a ligeira névoa que parece sempre cobri-las, para
readquirirem o necessário relevo das suas pessoas.
Não falando no famoso jardim
botânico dos arredores, Batávia, como São Paulo ou Cuiabá, possui
estabelecimentos e sociedades de ciência e de arte dignas de atenção.
A sua academia de letras é muito
conhecida na rua principal da cidade, e os literatos da ilha brigam e
guerreiam-se cruamente, para ocuparem um lugar nela. A pensão que recebem é
módica, cerca de cinco patacas, por mês, na nossa moeda; eles, porém, disputam
o fauteuil acadêmico por todos os
processos imagináveis. Um destes é o empenho, o nosso “pistolão”, que procuram
obter de quaisquer mãos, sejam estas de amigos, de parentes, das mulheres, dos
credores ou, mesmo, das amantes dos acadêmicos que devem escolher o novo
confrade.
Há de parecer que, por tão pouco,
não valia a pena disputar acirradamente, como fazem, tais posições. É um
engano. O sujeito que é acadêmico tem facilidade em arranjar bons empregos na
diplomacia, na alta administração; e a grande burguesia da terra, burguesia de
acumuladores de empregos, de políticos de honestidade suspeita, de leguleios
afreguesados, de médicos milagrosos ou de ricos desavergonhados, cujas riquezas
foram feitas à sombra de iníquas e aladroadas leis — essa burguesia,
continuando, tem em grande conta o título de membro da academia, como todo
outro qualquer, e o acadêmico pode bem arranjar um casamento rico ou coisa
equivalente.
Lá, a literatura não é uma
atividade intelectual imposta ao indivíduo, determinada nele, por uma maneira
muito sua e própria do seu feitio mental; para os javaneses, é, nada mais, nada
menos, que um jogo de prendas, uma sorte de sala, podendo esta ser cara ou
barata.
Os médicos, que, em Java, têm
outra denominação, como veremos mais tarde, são os mais constantes fregueses da
academia. Estão sempre a bater-lhe na porta, apesar de não ter a medicina nada
que ver com a literatura.
Pertencendo à academia de letras
— é o que imagino — como que eles ganham maior confiança dos clientes e mais
segurança no emprego dos remédios. Assim, talvez, pensem eles e também o povo,
tanto que a clínica lhes aumenta logo que entram para a ilustre companhia
javanesa.
E bem possível que as suas letras
e a sua fascinação pela academia visem somente tal resultado, porquanto, entre
eles, a rivalidade na clínica é terrível e mais ainda quando se trata de
competir com colegas estrangeiros. Usam contra estes das mais desleais armas.
Um houve, natural de um pequeno
país da Europa e de extração campônia, que só as pôde manter à distância,
usando de armas e processos grosseiramente saloios. Estava sempre de varapau em
punho e foi o meio mais eficaz que encontrou, para não lhe caluniarem e lhe
prejudicarem a clínica.
A literatura desses doutores e
cirurgiões é das mais estimadas naquelas terras; e isto, por dois motivos:
porque é feita por doutores e porque ninguém a lê e entende.
O critério literário e artístico
dos médicos de Java não é o de Hegel, de Schopenhauer, de Taine, de Brunetière
ou de Guyau, eles não perdem tempo com semelhante gente. Não admitem que a obra
literária tenha por fim manifestar um certo caráter saliente ou essencial do
assunto que se tem em vista, mais completamente do que o fazem os fatos reais.
Literatura não é fazer entrar no patrimônio do espírito humano, com auxílio dos
processos e métodos artísticos, tudo o que interessa o uso da vida, a direção
da conduta e o problema do destino. Não, absolutamente não.
Os doutores javaneses de curar
não entendem literatura assim. Para eles, é boa literatura a que é constituída
por vastas compilações de coisas de sua profissão, escritas laboriosamente em
um jargão enfadonho com fingimentos de língua arcaica.
Curioso é que a primeira
qualidade exigida em um livro de estudo é a sua perfeita, completa clareza, que
só pode ser obtida com a máxima simplicidade de escrever, além de um
encadeamento naturalmente lógico de suas partes, evitando-se tudo o que
distraia a atenção do leitor daquilo que se quer ensinar.
Vou explicar-me melhor e os
leitores verão como os sábios javaneses prendem a atenção, poupam o esforço
mental dos seus discípulos, empregando termos obsoletos e locuções que desde
muito estão em desuso.
Suponhamos que um médico nosso
patrício se proponha a escrever um tratado qualquer de patologia e empregue a
linguagem de João de Barros mesclada com a do Padre Vieira, sem esquecer a de
Alexandre Herculano. Eis aí em que consiste a literatura suculenta dos doutores
javaneses; e todos de lá lhes admiram as obras escritas em tal patoá
ininteligível. Darei um exemplo, servindo-me do nosso idioma.
Antes, porém, de dar essa mostra
do modo de escrever dos esculápios de lá, dar-lhes-ei o de falar, com uma
anedota que me contaram lá mesmo — porque lá há também irreverentes e
observadores. Uma família média, tendo o chefe doente e vendo que a moléstia
não dava volta com o modesto médico assistente, resolveu chamar uma das
celebridades da medicina javanesa.
A mulher do doente era quem mais
queria isto, porque, embora possam ser excelentes, com todos os bons
predicados, nenhuma mulher perde de todo a vaidade; e a visita de uma
notabilidade hipocrática fazia falar a vizinhança. Foi chamado o homem, o
doutor Lhovehy, uma celebridade retumbante, professor, membro de várias
academias, inclusive a de letras e a de história e geografia.
Ele foi de carro, com a visita
paga adiantadamente: cento e cinquenta florins. Em chegando junto ao doente,
com três jeitos de mau ator foi falando assim:
— Até agora quem no há tratado?
— O doutor Nepuchalyth.
— Mister é que tenhais sempre
atilamento com esses físicos incautos. Eles são homens que não curam senão por
experiência e costume; e é tão bom de enganar os néscios não afeitos ao bom
parecer dos físicos de valia que dão cor a facilmente serem enganados por eles
e o pior é que alguns clientes físicos, ou por contentar todos os do povo e não
querer trabalhar ou especular as curas, vão-se com o parecer deles; e porque ser
aprazível ao povo faz ao físico ganhar mais moedas, usam logo em princípio as
suas mezinhas deles.
Depois de ter pronunciado esse
exórdio com toda a solenidade teatral e doutoral, o Garcia de Orta não
anunciado, da sublime escola de Java, examinou o doente e receitou em grego.
Quase ao sair, a mulher perguntou-lhe:
— Doutor, qual a dieta?
— Polho cozido ou caldo dele.
A mulher voltou para junto do
marido, sem ter compreendido a dieta, pois temeu mostrar-se ignorante em face
do sábio, indagando o que era polho.
Logo que a viu, o marido ralhou-a
com doçura:
— Filha, eu não dizia a você que
esses médicos famosos não servem para nada?... Este que você trouxe fala que
ninguém o entende, como se a gente falasse para isso... Receita umas mixórdias
misteriosas... Sabe você de uma coisa? Continuo com o doutor Nepuchalyth, ali
da esquina. Este ao menos tem juízo e não inventou um modo de falar para ele só
entender.
O exemplo de que falei acima é o
que se encontra em obras de um famoso doutor lá de Java. Cito um único, mas
poderia citar muitos. O javanês, doutor de curas, queria dizer: "Sou de
opinião que a febre deve ser combatida na sua causa".
Julgou isto vulgar, indigno do
seu título e das suas prerrogativas consuetudinárias, e escreveu provocando a
máxima admiração dos seus leitores, da seguinte forma:
“Erro, quer parecer-me, é não se
atentar donde provém tal febre com incendimento e modorra, para só tratá-la às
rebatinhas, tão de pronto como se mesmo fora ela a doença, senão consequência
muita vez de vitais desarranjos imigos da sã vida e onde o físico de recado
achará a fonte ou as fontes do mal que deixa assim o corpo sem os bons e sãos
aspeitos de sua habitual composição".
Depois de uma beleza destas, a
sua entrada na academia foi certa e inevitável, pois é nessa espécie de
pot-pourri de estilos de tempos desencontrados, com o emprego de um vocábulo
senil, tirado à sorte; de salada de feitios de linguagem de épocas diferentes,
de modismos de séculos afastados uns dos outros, que a gente inteligente de Java
encontra a mais alta expressão da sua oca literatura. Há exceções, devo
confessar. Continuo, sem me deter nelas.
A ciência javanesa está muito
adiantada. Nunca se fez lá a mais insignificante descoberta; nunca um sábio
javanês edificou uma teoria qualquer.
Penso que tal se dá por não haver
precisão disso; os da estranja suprem as necessidades da mentalidade javanesa.
O sábio da Batávia é o contrário
de todos os outros sábios do mundo. Não é um modesto professor que vive com
seus livros, seus algarismos, suas retortas ou éprouvettes. O sábio de Java, ao contrário, é sempre um ricaço que
foge dos laboratórios, dos livros, das retortas, dos cadinhos, das épuras, dos
microscópios, das equatoriais, dos telescópios, das cobaias, tem cinco ou seis
empregos, cada qual mais afanoso, e não falta às festas mundanas.
A presunção de cientista,
entretanto, não há quem lá não a tome. Basta que um sujeito tenha aprendido um
pouco de álgebra ou folheado um compêndio de anatomia, para se julgar cientista
e se encher de um profundo desdém por toda a gente, sobretudo pelos literatos
ou poetas. Contudo todos desse gênero querem sê-lo e, em geral, são péssimos.
Vou lhes contar um caso que se
passou com o doutor Karitschâ Lanhi, quando foi nomeado diretor do câmbio do
Banco Central de Java. Esse doutor era professor da Escola de Sapadores, da
qual mais adiante falarei, e por isso se julgou no direito de pleitear o lugar
do banco. No dia seguinte de sua nomeação, o seu subalterno imediato foi
perguntar-lhe qual a taxa de câmbio que devia ser afixada.
— Sempre para a alta. Qual foi a
taxa de ontem?
O empregado retrucou:
— 18 5/17, doutor.
O sábio pensou um pouco e
determinou:
— Afixe: 18 5/21, senhora Hatati.
O homem reprimiu o espanto e todo
o banco riu-se de tão seguro financeiro que lhe caia do céu, por descuido. Não
houve remédio senão demitir-se ele uma semana depois de nomeado.
São assim os graves sábios de
Java.
Não nos afastemos, porém, do
nosso estudo.
Das grandes artes técnicas, a
mais avançada, como era de esperar, é a medicina. O tratamento geralmente
empregado é o do vestuário médico. Consiste ele em usar o doutor certo traje
para curar certa moléstia. Para sarar bexigas, o médico vai em ceroulas; para
congestão de fígado, sobrecasaca e cartola; para tuberculose, tanga e chapéu de
palha de coco; antraz, de casaca, etc., etc.
Este curioso método foi
descoberto recentemente em um país próximo que o repudiou, mas veio
revolucionar a medicina da grande ilha. Os físicos locais adotaram-no
imediatamente e aumentaram o preço das visitas e redobraram a caça aos
empregos, para atender às despesas com a indumentária e os aviamentos.
Estava a ponto de esquecer-me de
falar no ensino da célebre ilha do arquipélago de Sonda, pois tanto me alonguei
no estudo dos seus médicos, que vou ter a ele com pressa.
Existe uma universidade com três
faculdades superiores: a de "Sapadores", a de "Cortadores",
e a de "Físicos". Os cursos destas faculdades duram cerca de cinco
anos, mas cada uma delas tem um curso menor, de dois ou três anos. A de
"Sapadores" tem o de "consertadores de picaretas"; a de
"Cortadores", o de "embrulhadores"; e a de
"Físicos", o de "cobradores".
Nas margens do Jacarta, rio que
banha Batávia, quem não tem um título dado por uma dessas faculdades não pode
ser nada, porquanto, aos poucos, os legisladores da terra e a estupidez do povo
foram exigindo para exercer os grandes e pequenos cargos do Estado, quer os
políticos, quer os administrativos, um qualquer documento universitário de
sabedoria.
Todos, por isso, tratam de
obtê-lo e é a mais dura vicissitude da vida ser reprovado no curso. E raro, mas
acontece. Os jovens javaneses empregam toda espécie de meios para não serem
reprovados, menos estudar. Essa contingência pueril da "bomba", na
sociedade javanesa, leva às almas dos moços daquelas paragens um travo tão
amargo de desconforto que toda a felicidade que lhes chegar posteriormente não
o atenuará, e muito menos será capaz de dissolvê-lo.
E mesmo que ele se acredite por
sua própria iniciativa, mais valiosa e mais segura que os papéis oficiais; por
mais aptidões que demonstre sem título — tem que vegetar em lugares subalternos
e dar o que tem de melhor aos outros titulados, para que figurem estes como
capazes. Ele escreverá as cartas de amor; mas os beijos não serão nele.
Por um curioso fenômeno
sociológico, as ideias bramânicas de casta se enxertaram nas caducas concepções
universitárias do medievo europeu e foram dar nas ilhas de Sonda, sob o
pretexto de ensino, nessa estranha e original concepção do doutor javanês. Aproveito
a ocasião para avisar os leitores que essa concepção religioso-universitária
também existe na República de Bruzundanga.
Creio, porém, que ela é
originária da grande ilha da Malásia donde foi ter àquela república, por
caminho que não descobri.
Como todo moço que tem legítimas
ambições naquele recanto do nosso planeta, Harakashy, um javanês que foi muito
meu amigo mais tarde, conseguiu entrar para a Escola dos Sapadores, a fim de
acreditar-se na sociedade em que vivia, e ter o seu lugar sob o sol, com o
título que a faculdade dava. Era malaio com muitas gotas de sangue holandês nas
veias, mas sem fortuna nem família. No começo, as coisas foram indo, ele
passou; mas, em breve, Harakashy desandou e foi reprovado umas dez vezes na
universidade.
Em absoluto, não houve injustiça.
O meu amigo nada sabia, porque ingenuamente deduzira dos fatos que a principal
condição para ser aprovado, nos exames de Java, é não saber. Enganava-se,
porém, supondo que tal homenagem fosse prestada a todos.
Recebem-na os filhos dos grandes
dignitários da colônia, dos ricaços, dos homens de negócios que sabem levantar
capitais; mas escolares que não têm tal ascendência, como o meu amigo, estão
talhados para engrossar a estatística dos reprovados, a fim de comprovar o rigor
que há nos estudos da Universidade de Batávia.
Dá-se isto, não por culpa total
dos professores; mas pelas solicitações de toda a sociedade batavense que quer
seus lentes universitários, homens de salão, de teatros caros, de bailes de
alto bordo; e eles, para aumentar as suas rendas, que custeiem esse luxo, têm
que viver ajoujados aos ministros que dão empregos, ou aos brasseurs d'affaires que lhes pedem emprestados os nomes para
apadrinhar empresas honestas, semi-honestas e mesmo desonestas, em troco de
boas gorjetas.
Quem meu filho beija, minha boca
adoça — diz o nosso povo.
Em uma sociedade que se modelou
assim, não era possível que o meu Harakashy fosse lá das pernas.
Entretanto, eu o conheci e o
senti muito inteligente, culto, amigo dos livros e todo ele saturado de anseios
espirituais. Gostava muito de filosofia, de letras e, sobretudo, de história.
Leu-me ensaios e eu achei muito bem escritos, revelando uma grande cultura e um
grande poder de evocar.
Mas Java é muito estúpida e não
admite inteligência senão nos "sapadores", nos "físicos" e
nos "cortadores".
Ainda não lhes disse o que são os
tais "cortadores". São estes assim como os nossos advogados e o seu
emblema é uma tesoura, devido a ser, senão de regra, mas de praxe, de tradição
que toda defesa ou acusação judiciária tenha o maior número de citações
possíveis e tais peças são mais estimadas quando as referências aos autores
consultados vêm nelas coladas com os próprios retalhos dos livros aludidos. A
tesoura é instrumento próprio para isto e, dessa maneira, enriquece os
"cortadores", pois os arrazoados dessa natureza são muito bem pagos,
embora lhes estraguem as bibliotecas que alcançam muito baixas licitações
quando vão a leilão.
Atribui o desastre da vida
escolar do meu amigo ao fato de ele não ter nenhum jeito para qualquer das
grandes profissões liberais que a Batávia oferece aos seus filhos.
Se Harakashy nascesse em França
ou em outro país civilizado, naturalmente a sua própria vocação encaminhá-lo-ia
para uma aplicação mental, de acordo com a sua feição de espírito; mas, em
Java, tinha que ser uma daquelas três coisas, se quisesse figurar como
inteligente. Não achando campo para a sua atividade cerebral, muito pouco
atraído para o estudo das "picaretas automáticas", muito orgulhoso para
bajular os professores e aceitar aprovações por comiseração, o meu amigo ficou
naquela exuberante terra sem norte, sem rumo, absolutamente sem saber o que
fazer.
Ensinava para vestir-se e comer.
E todos que o conheciam desde menino admiravam-se que, ao infante galhardo dos
seus primeiros anos, se houvesse substituído nele um rapaz macambúzio, isolado,
amargo e cruel nas suas conversas camarárias, ressumando sempre uma profunda
tristeza.
Aos profundos, parecerá vão; aos
superficiais, parecerá tolo — tão grandes consequências para tão fracas causas.
Não me animo a discutir, mas
lembro que o amor tem qualquer coisa de parecido...
Visitei-o sempre. Amei-o na sua
desordem de espírito, imensa e ambiciosa de fazer o Grande e o Novo. Em uma das
minhas visitas, encontrei-o no seu modesto quarto, deitado em uma espécie de
enxerga, fumando e tendo um gordo livro ao lado. Eu entrava sem me anunciar.
Trocamos algumas palavras e ele me disse logo após:
— Fizeram muito bem em não me
deixar ir adiante.
— E essa!
— Não te admires. Continuo a
estudar história e estou convencido.
— Como?
— Lê este manuscrito.
Passou-me então um códice
fortemente encadernado em couro. Era o livro que tinha ao lado. Pude ler o
título: História da Universidade de Batávia com a biografia dos seus mais
distintos alunos, por Degni— Hatdy — 1878.
— Quem é este Degni— Hatdy?
perguntei.
— Foi um gênio, meu caro. Um
gênio de escola... Recebeu medalhas, diplomas, prêmios... Vive ainda, mas
ninguém o conhece mais.
— É de interesse, a memória?
— É, e bastante, pois traz a
lista dos alunos ilustres da universidade.
— Quais foram?
— Newton, Huyghens, Descartes,
Kant, Pasteur, Claude Bernard, Darwin, Lagrange.
— Chega.
— Ainda: Dante e Aristóteles.
— Uff!
— Gente de primeira, como vês; e,
quando soube, tive orgulho de ter sido de alguma forma colega deles; mas...
Por aí acendeu um cigarro, tirou
duas longas fumaças com a languidez javanesa e continuou com a pachorra batava:
— Mas, como te dizia, bem cedo
tive vergonha de ter um dia passado pela minha mente que eu era capaz de
emparelhar-me com tais gênios. E verdade que não sabia terem eles frequentado a
universidade... Vou esconder-me em qualquer buraco, para me resgatar de tamanha
pretensão.
—Saí. Ainda o vi durante alguns
dias; mas, bem depressa, desapareceu dos meus olhos. Pobre rapaz! Onde estará?
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