Gracejos que matam
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Ao Dr. Tomás de Carvalho ordinariamente, chamam-se, à francesa — espirituosos — uns sujeitos dotados de gênio
motejador, aplaudidos com a gargalhada e aborrecidos àqueles mesmos que os
aplaudem. São os caricaturistas da graciosidade.
O “espirituoso”, à moderna, abrange os variados ofícios que, antes da
nacionalização daquele estrangeirismo, pertenciam parcialmente aos seguintes personagens,
uns de casa, outros importados: chocarreiro — trejeitador — arlequim — palhaço
— proxinela — polichinelo — maninelo — truão — jogral — goliardo — histrião —
farsista — farsola — vegete — bobo pierrot — momo — bufão — folião, etc.
Esta riqueza de sinonímia denota que o bobo medieval bracejou na
Península Ibérica vergônteas e enxertias em tanta cópia que foi preciso dar
nome às espécies.
Ora, o “espirituoso” tem de todas. A antiga jogralidade, que era mister
vil, acendrada nos secretos crisóis do progresso social, chegou a nós
afidalgada em “espírito” e com o foro maior de faculdade poderosa, cáustica,
implacável.
Ainda assim, o estreme espírito português, por mais que o afiem e
agucem, é sempre rombo e lerdo: não se emancipa da velha escola das farsas: é
chalaça.
Há poucos meses, faleceu em Lisboa um “espirituoso” que andou trinta ou
quarenta anos a passear a sua reputação entre o Chiado e o Rossio. As gazetas,
ao mesmo passo que nos inculcavam o defunto como pessoa que vivera
aventurosamente uns setenta anos tingidos com primoroso pincel, descontavam
nestes defeitos a sua imensa graça e reproduziram nova edição melhorada das
suas anedotas.
Averiguado o “espírito” do homem em coisas burlescas de que fez
mercancia na feira política, liquida-se, quando muito, um folião que desbragava
a pena e desembestava asselvajadamente o insulto. Por este, que não deixou nome
sobrevivente para vinte e quatro horas — nem o terá aqui —, orça a maioria dos
jograis que tenho visto, nos últimos trinta anos, esburgar o osso da facção que
lhes alquila o engenho detraidor e acabarem antes da geração que os galardoou
com a moeda falsa das risadas.
O satírico de sala e botequim é mais funesto e menos trivial que o
político; mais funesto porque vulnera melindres — coisa que o caloso peito da
política não tem nem finge; menos trivial porque o chiste de Sterne, de Byron,
de Voltaire, do padre Isla, de Heine e Boerne não apegou aqui, nem se adelgaça
à feição da nossa índole, bem acentuada nas chocarrices plebeias de Gil Vicente
e Antônio José.
É mais funesto, repito; porque me ocorre hoje, regressando das Caldas de
Vizela, uma história funestíssima de que só eu posso lembrar-me. Duas chalaças
terçadas entre dois amigos cavaram sepulturas de vidas e honras. Se as novelas
pudessem ensinar alguma coisa, corrigindo aleijões da alma, eu pediria aos
gracejadores que lessem isto; e, nas ocasiões em que a língua lhes descabe na
boca, engrossada pela opilação da dicacidade, a refreassem com os dentes.
***
Era em 1851.
Apresso-me a declarar que, no tocante a nomes e localidades, desfigurei
tudo, salvo generalidades vagas e o lugar em que começa a narrativa. O que
menos monta na exatidão da história é o que aí se elide. Nomear pessoas e
terras seria denunciar inutilmente um crime. O criminoso está diante do juiz
inapelável e os seus filhos inocentes respeitam-lhe a memória.
Era, pois, em 1851, aos 15 de junho, nas Caldas de Vizela.
Entre os salgueiros que enverdecem uma ilheta acima da ponte que hoje
chamam “velha”, à hora da sesta, emboscaram-se sete pessoas que preferiam
aquele frescor acre do arvoredo, golpeado por meandros do rio, ao cheiro
sulfuroso e até sulfídrico da “Lameira”.
O grupo compunha-se de pessoas de diversas procedências:
D. Helena da Penha, chamada na sua terra a morgada velha. Cinquenta e
tantos anos, viúva do capitão-mor de Athey, educada em convento, murmurando da
educação e dos costumes do claustro, donde saíra com incertos conhecimentos no
catecismo, e alguma instrução em bisca sueca, e no Feliz Independente, do padre
Teodoro de Almeida. Excelente senhora, que se conteve viúva desde os trinta e
dois anos viçosos e temperados sanguineamente para não dar padrasto à filha
única.
D. Irene, a morgadinha nova, vinte e sete anos, galante, mais menina que
a sua idade, cheia de denguices, amimada, acriançando-se em trejeitos e
dizeres, descompondo as artifícios pueris com uns ares de desgarro e
desenvoltura — em bom sentido, aliás.
Decerto já observou, leitor, em senhoras de província, um desembaraço
bronco, um remexerem-se e bacharelarem despropositadamente — desaires
resultantes de lhes haverem dito que o pejo e o acanhamento são indícios de
educação aldeã. Estes despejos improvisados sem delicadeza nem natural, quando
topam diversa sociedade em praias ou caldas, dão-lhes ares do que não são e
abrem margem a suspeitas indecorosas; porque elas, com tais artes, conseguem
desornar-se dos comedimentos do pudor.
D. Irene eram assim. Depois veremos o que ela era mais
compridamente.
Direi agora dos cinco sujeitos do grupo.
O Abade de Santa Eulália, passante da meia-idade, pagão em literatura,
mestre de Latim no seu concelho de Cabeceiras. Citava Virgílio
apropositadamente. Quando alguém se dizia regalado com a frescura do
salgueiral, declamava um trecho das Églogas em que havia sálices. Ao sentar-se
na corcova do tronco retorcido de um amieiro, exclamava sempre, sibilando as delícias do meio-grosso: sub tegmine.
Tinha reumatismo e contava muitos casos milagrosos daquelas águas e outros
casos de amores que ali passaram, quando ele acompanhava a sua mãe, no tempo em
que as senhoras de Cabeceiras de Basto por lá faziam (dizia ele) o seu São
Miguel de amor. Em cavaco de homens, gretava-lhe a índole e declarava-se o
personagem ou protagonista dos casos atribuídos a terceira pessoa em presença
das morgadas. Honestava com citações de Ovídio (Ars amandi — passim) a lubricidade dos pecados da sua juventude; e
dizia com unção de velhaco: Delicta
juventutis meae, suspirando. Às vezes, encontrando senhoras sertanejas de
Basto, acotovelava o companheiro de passeio, e murmurava:
“Aqui vem uma das tais” — Uma das tais vinha a ser uma das suas amadas,
de 1825, a sílfide que ele havia ensinado a dançar o minuete e a gavota com
outras prendas, e não dava agora, no pisar coxo e na gordura fofa, o mínimo
vislumbre de ter sido silfídica e bastante leveira para o gingar picado da
gaivota.”Está como eu”, dizia o Abade.
..........................
Mudado como eu,
como ela,
Que a vejo sem
conhecê-la!...
cantava Garrett de uma das suas estrelas cadentes. O Abade, ao menos,
conhecia-as, embora enrocadas em tecido adiposo, e remoçava-as na sua
imaginação saudosa, alindando-as com o colorido escarlate da paixão. Bom e
discreto conversador, se a matéria obrigava à seriedade; filósofo eclético,
alegre, rijo de estômago, cabralista por amor da ordem, e herege, porque negava
que o Espírito Santo concorresse ao Concílio Tridentino. Em ciências
eclesiásticas, ignorantíssimo por livre vontade e voto deliberado. Eis o Abade
de Santa Eulália.
Álvaro de Abreu, da estirpe dos Abreus de Regalados, filho segundo da
casa e Honra de São Gens, em Refojos de Basto, bacharel em Direito, vinte e
nove anos compato de carnes, barbaçudo, cara plebeia, esbatida nas
proeminências malares, testa descantoada e pilosa até aos arcos das
sobrancelhas. Anel de ouro com armas: em campo vermelho cinco asas de ouro
sanguíneas nas cortaduras postas em sautor; timbre, uma asa idêntica. As mesmas
armas na cigarreira de prata, e nos botões dos punhos, e na ametista dos
berloques antigos, pendentes em châtelaine do cós das calças. Tinha cavalo e
lacaio fardado de azul com guarnições escarlates, botas de picaria com
prateleira e espora amarela encorreada de branco. Era inteligente como a
maioria dos bacharéis formados, e talvez mais. Em Coimbra, dado que não
versejasse, era da roda do Couto Monteiro, do Luís de Beça Correia, do João de
Lemos, do brasileiro Gonçalves Dias, do Lima poeta e do Evaristo Basto.
Recitava sentimentalmente às morgadas os solaus dos
irmãos Serpas; e as paródias do Beça e Couto Monteiro.
Cábula a minha
pachorrenta e gorda
Quem dentre as
folhas te espremeu dos livros!
Ou então, o caso da castelã que desafogava saudades:
.....................
tangendo no
mandolim,
e a chorar dizia
assim:
“Ó fado que foste
fado,
ó fado que já não
és!”a
Cito de memória, pouco fiel nestas coisas conspícuas.
Da convivência daqueles rapazes ficou-lhe um verniz epigramático.
Flagelava os padres do seu sítio com chalaças, era mais fino nos remoques ao
cirurgião, e fizera mudar da terra o boticário, com quem se inimizara
inexoravelmente desde que ele, por causa de umas eleições municipais,
solenizadas a arrocho, o doestou, no Periódico dos Pobres, de ateu e
carbonário. Ainda havia carbonários e ateus naquele tempo. Hoje há mais fé... e
petróleo.
Álvaro de Abreu tinha a saúde atlética e vermelha que eu desejo aos meus
leitores.
Viera a Caldas porque ali namorara, no ano anterior, a morgada nova, a
sua prima em quarto grau; visitou-a em Athey nas festas de Natal e Páscoa, e
combinou então encontrarem-se em Vizela.
Outro:
João Pacheco, do Arco de Baúlhe, morgado de Vale Escuro.
Um gentil rapaz de vinte e quatro anos, educado em Lisboa, onde tinha
nascido, quando o seu pai comandava uma brigada realista. Era órfão desde 1832.
Aos vinte anos emancipara-se, e retirou-se para a província, onde possuía
fartos bens e tias solteiras que muito lhe queriam e o indenizaram dos mimos
que não gozara na infância.
Asseveravam-lhe as tias que ele descendia de Duarte Pacheco Pereira — o
Aquites Lusitano...
— Que morreu no hospital... — atalhava o rapaz.
— A infâmia a quem toca... — emendava a Sra. D. Isabel Pacheco, freira
beneditina bastante instruída.
E, abrindo Os Lusíadas, apontava dois versos em que Luís de Camões
vingava Duarte Pacheco da injuriosa ingratidão de D. Manuel:
Isto fazem os reis cuja vontade Manda mais que a justiça e que a
verdade.
João Pacheco sorria-se.
A freira azedava com o desdém do sobrinho e repetia-lhe a ode pindárica
de Antônio Dinis, consagrada ao seu avô. Era, porém, quase ridículo o
entusiasmo antigo da filha de São Bento, declamando com teatral gesticulação a
farfalhuda estrofe:
Cem paraus
torveados
Donde por bocas
mil brota Mavorte
Entre horrorosos
brados,
Em fogo, em fumo,
em sangue envolta a morte,
Zargunchos,
frechas, que em chuveiros voam;
Elefantes bramindo
a terra atroam;
Netuno da batalha
ao som horrendo
No fundo mar se
espanta;
Nos eixos muda a
terra está tremendo,
Mas nada o grande
coração quebranta.
— O que eu penso desses versos — dizia o sobrinho da transportada
senhora — é que o bravo Duarte Pacheco espatifou muito índio, fez espadanar
muito sangue de povos que defendiam o seu lar, e nunca vieram aqui atacar o
nosso. Ora, a Providência castigou o Aquiles Lusitano, baixando-o a tragar na
barra dos desvalidos a miséria do rei de Calecut, arrojado por ele do trono à
indigência.
Com poucos mais traços, está bosquejado o perfil ideal de João
Pacheco. Completá-lo-ão os sucessos ocorrentes nesta história.
A sexta pessoa do grupo, que povoava o sinceiral do Vizela, era um dos Saint-Preux portuenses, o modelo acabado
da beleza varonil, já passante dos trinta e cinco anos, cansado, mas fingindo
que amava sempre porque era deveras querido. Não sei se ele, à imitação do
marselhês Louis Gauffredi, pactuara com o Diabo dar-lhe a alma em troca das
mulheres que soprasse; o que sei é que as damas que ele quis, sopradas ou não,
amaram-no. Parte dessas estava nas Caldas, a abrir o apetite enfarado ou a
diluir os empachos da nutrição rija. As meninas anêmicas e eloróticas dos
trovistas da atualidade, em 1851, pertenciam ainda à embriologia; assim como os
bardos, que atualmente lhes receitam boi e vinho do Porto, fermentavam no
ventre da Ideia... com I grande.
José de Almeida, o dom-joão do Porto, bem que reconhecesse os amavios
corpóreos da morgada de Athey, chegara à idade em que o espírito, ganhando
entojo às carnalidades, entra a namorar-se da beleza moral. Almeida zombava dos
trejeitos, do palavreado, das relambórias denguices de Irene. Quem o atraia àquele
grupo era João Pacheco; e quem atraía João Pacheco era o Abade de Santa Eulália
com o engodo das anedotas, com a simpatia das boas tolices e a prodigiosa arte
de exorcizar a tentação do suicídio das pessoas que penam em Vizela quinze dias
de junho. José de Almeida me dizia a mim...
A mim?... para um homem muito diverso que há vinte e quatro anos tinha o
meu nome, e esse tal era o último do grupo.
***
Dizia João Pacheco a José de Almeida uma vez:
— Este Abreu, se não tivesse cartas de bacharel, seria um homem regular;
porém, como não advoga, nem faz leis, nem as interpreta, quer à força mostrar
que a formatura lhe deu alguma distinção. Faz espírito. Traz sempre consigo as
pilhérias requentadas que forrageou em Coimbra e não perde lanço das desfechar
contra o Abade ou contra mim, se D. Irene lhas pode vitoriar com o sorriso
parvoeirão. Eu já lhe disse que os seus gracejos incomodavam o Abade e me não
lisonjeavam a mim. Se não se emendar, um dia jogo-lhe um remoque desagradável e
amordaça-o na presença da menina.
Isto dissera João Pacheco naquele dia em que o grupo, à hora da sesta,
se embrenhou no salgueiral.
Nesta ocasião, Álvaro de Abreu refinara no sestro da mordacidade. O
coração tem crises de embriaguez e sobre-excitações sanguíneas que refluem às
bossas cranianas. A morgada naturalmente deixara-se apertar suavemente nas
polpas do antebraço e correspondera à pressão voluptuosa. O bacharel, a meu
ver, esponjava as suas chalaças da abundância do coração. Eu também tive dose
na sua liberalidade. Estava eu a entalhar um M na casca de um amieiro. Era a inicial de uma das cinco Marias que
eu amava.
— Esse M — disse ele
galhofando — pode significar uma celebrada exclamação vociferada por Cambronne
em Waterloo.
— Prove a exclamação histórica — interveio José de Almeida, vingando-me
com aquele riso percuciente dele.
Todos perceberam, salvante as damas, que não conheciam os aromas da
história de França.
— Que horas são? — perguntou enfastiada a morgada Irene.
— Cinco — responderam todos, abrindo os relógios, exceto João Pacheco.
— Singular caso! — disse ele —, tenho este relógio há doze anos; é a
primeira vez que para, tendo corda. Se o ar sulfúrico de Vizela tiver sobre o
dono a influência que tem sobre o relógio, serei obrigado a parar; e parar, diz
não sei quem, é morrer.
— Mas é que tu precisas de corda... — remoqueou Álvaro.
— De corda preciso; de carrasco é que não, contando contigo — redarguiu
Pacheco.
— Apanhe aquele pião à unha, Sr. Doutor! — exclamou o Abade de Santa
Eulália.
As duas morgadas riram-se com bastante inteligência; e José de
Almeida, golfando três novelos de fumo da pipa do cachimbo turco,
regougou:
— Bem boa! bem boa! essa vou escrevê-la...
E tirou a carteira.
Álvaro de Abreu enfiou. As damas fitavam-no de modo que o esporeavam a
desforrar-se. O riso vingativo do Abade torturava-o; e; por fim, o silêncio de
todos era um comum vexame: sentia-se mortificada a gente.
D. Helena da Penha ergueu-se do seu frouxel de junco e relva,
dizendo:
— Vamos dar um passeio na ponte.
***
Todos se debruçaram no parapeito da ponte, menos Álvaro de Abreu, que se
retirou à entrada, pretextando o que quer que fosse.
— O doutor ficou entupido! — disse o Abade. — Foi uma embarrilação bem
merecida... Onde se dão aí se apanham. Cuidava ele que todos nós éramos
espolinhadouro do seu espírito!... Sempre com o dedo no gatilho da graçola! Uma
graça atura-se; mas estar sempre com o dente mordaz arreganhado, isso é próprio
dos botequins, em camaradagem de estudantes e banaboias.
— Tem razão, Sr. Abade — obtemperou D. Helena —, mas, a falar o que é
verdade, o Sr. Pacheco respondeu muito forte.
Aceito a repreensão da vossa excelência — disse urbanamente o cavalheiro
—, mas peço licença para não me arrepender. Quem me considera talhado para a
corda não se ofenda se eu o reputo digno de exercitar o instrumento da forca.
D. Irene exclamou:
— Credo!
Era a expressão espontânea do horror à palavra forca.
E, espevitando a língua, continuou saracoteando-se:
— Não gosto dessas coisas... Estou nervosa... O Álvaro ia pálido e
trêmulo...
Vejam lá se fazem algum desaguisado por causa de uma graça... Vamos
embora, mamã!
Estou muito nervosa... veja...
E oferecia o pulso ao Abade.
— Tem febre? — perguntou a mãe alvoroçada ao Abade.
— Está agitadinha — confirmou o Abade, envesgando para nós os olhos
zarolhos de velhacaria. — Quer apalpar, Sr. João Pacheco?
— Não percebo de pulso — disse o convidado.
Com licença... — interveio José de Almeida, — Eu vejo. —E, tateando o
pulso de Irene com o relógio aberto, disse: — Cem pulsações por minuto. Isto
não é febre... é amor, a minha senhora...
— Boa! — disse a menina, retirando a mão —, o Sr. Almeida tem
lembranças! O amor sente-se no coração, não é no pulso.
— O pulso é o denunciante do coração — retrucou o portuense. — O amor é
o sangue mais apressado.
— Faltava-me ouvir essa! — notou D. Helena, jubilosa por ver que a
menina já sorria.
— Em boa ciência é aquilo que diz o Sr. Almeida — confirmou o Abade.
— Efetivamente, o amor acelera a circulação do sangue.
— Aqui tem o voto de pessoa experiente — disse Almeida.
— Está feito... — assentiu o Abade, dando à cabeça três ligeiras
demonstrações de consentimento.
— É muito prendado, não tem dúvida... — respondeu ironicamente a viúva
do capitão-mor de Athey. — Ora, tenham juízo!
— Que remédio senão tê-lo, a minha senhora! — redarguiu o clérigo pagão.
— Sátiro velho não topa dríades nas florestas.
— Como estás, menina? — perguntou D. Helena à filha.
— Queria eu dizer, excelentíssima senhora, que o juízo em mim, velho de
cinquenta anos, não se recomenda, lastima-se.
— Como estás, menina? — perguntou D. Helena à filha.
— Sobressaltada... Tenho medo de alguma desordem... O primo Álvaro tem
tão mau gênio...
E fez várias visagens.
— Agradeço a sua compaixão, a minha senhora — ocorreu João Pacheco —;
mas peço-lhe que empregue a sua sensibilidade mais oportunamente.
***
Ao empardecer da tarde, José de Almeida foi procurado na farmácia da
Lameira, onde então florescia um boticário que parecia imortal pelas sandices
originais — e ninguém já hoje se lembra dele! Este pais não é para ninguém:
desenganemo-nos.
Era João Pacheco a chamá-lo de parte para lhe dizer:
— Acabo de ser procurado por dois sujeitos de Braga, que se dizem
padrinhos do desafio a que sou reptado por parte do Abreu. Respondi-lhes que eu
enviaria pessoa com quem se entendessem.
— Estou às tuas ordens — condescendeu prontamente Almeida, que era
padrinho vitalício de todos os duelos daquele tempo na sua briosa cidade.
— Que arma escolhes? sabre? florete?
pistola?...
— Mais devagar — atalhou o morgado de Vale Escuro. — O Abreu não joga
arma nenhuma. O meu mestre de tiro foi o marquês de Nisa, de sabre foi o Chico
Belas e de florete foi o Petit. Sei pouco; mas sei mais que Álvaro. Se lhe
aceito o duelo, vou seguro da minha superioridade, e, pouco mais ou menos, não
sairei do campo com a consciência mais tranquila que um homicida. Vai tu, se me
queres obsequiar, dizer isto aos padrinhos.
José de Almeida voltou à noite.
— O Abreu teima em bater-se — disse-lhe ele. — Quer duelo de morte,
pistolas carregadas e desfechadas à ponta de lenço.
— Vai declarar aos padrinhos que aceito — deliberou serenamente João
Pacheco.
— Estás doido?!
— Faz o que te digo.
— Escolhe outra testemunha, enquanto eu vou avisar o regedor — retorquiu
sorrindo José de Almeida. — Eu pensei que eras um rapaz valente e prudente. Não
te batias, há pouco, porque as tuas vantagens repugnavam ao cavalheirismo; e
aceitas o combate, dada a igualdade que pode dar-se entre dois assassinos
estupidamente ferozes!
Pacheco ria-se: e Almeida discorria razoavelmente.
— Faz o que te digo — repetiu o morgado. — Pois tu, criança,
persuades-te que o Abreu deseja bater-se em tais condições? Os covardes têm
fantasias dessas enquanto o desafio procede nas incruentas conferências dos
parlamentários. Assevera tu ao Álvaro que eu aceitei o combate à ponta de
lenço; e espera o desfecho.
— Mas supõe que ele sustenta a palavra!...
— Sustentarei a minha. — E, batendo-lhe no ombro, acrescentou: — Vai sossegado.
O homem tem mais amor ávida que à honra. Ouviste? Se ele propuser o
duelo à ponta de língua, declara logo que não aceito.
Os bracarenses, ouvindo a resposta de Almeida, ficaram embaçados e
atônitos. O mais cordato, com o louvável intento de economizar sangue ilustre,
ponderou que era uma desgraça matarem-se dois cavalheiros da primeira nobreza
do Minho, e aventou o seguinte:
— Se João Pacheco lhe desse uma satisfação na presença das pessoas que
ouviram a injúria...
— Satisfação... como? — inquiriu Almeida. — Dizer-lhe que não o reputa
carrasco?
A emenda é pior que o soneto. Não proponho isso. Deixá-los
matarem-se!
Morrem gloriosamente. Tanto faz morrer de cálculos na bexiga como de uma
bala no coração.
João Pacheco já teve em Lisboa e Madrid quatro duelos de morte, e está
vivo.
— Parece-me isso extraordinário! — observou maravilhado o braguês,
supondo que no duelo de morte era obrigatório morrer.
— Não há nada de extraordinário. O estilo estatuído no Código de Honra é
que as pistolas, uma cevada de pólvora e pelouro e a outra simplesmente de
pólvora, sejam sorteadas. Pacheco teve sempre a sorte por si. Mas o nosso caso
é outro. Morrem ambos irremediavelmente.
— E nós? que há de ser de nós? — atalhou sobressaltado o filho da
outrora circunspecta Braga.
— Nós? — respondeu Almeida. — Praticaremos a rara virtude de nos não
matarmos. Os senhores fogem para a sua terra e eu para a minha. É o que legisla
o Código de Honra. As testemunhas, não podendo depor acerca da honra dos
afilhados mortos, safam-se a unhas de cavalo. O restante da tragédia pertence
ao coveiro.
Um dos padrinhos fez menção de lavar as mãos e disse:
— Eu cá de mim...
— É Pilatos neste negócio? — perguntou o portuense.
— E dois — respondeu também o outro, recordando e recitando três
passagens pesadas de um livro do conselheiro Rodrigues de Bastos a respeito de
desafios.
— Em que ficamos? — rematou José de Almeida. — Deixe lá o sermão.
— Vamos falar com o Abreu: e ou ele desiste de se bater, ou nós
declinamos a missão.
— Pois não se demorem, que João Pacheco já está escrevendo as suas
disposições testamentárias.
***
Conquanto a bravura não fosse o predicado mais proeminente do amador de
Irene, deu-se nele um fenômeno de heroísmo que pertence aos milagres do amor. A
nova, que os pálidos agentes lhe levaram, apenas o desfaleceu por instantes. A
imagem da prima foi-lhe, como a visão de Palas aos guerreiros da Grécia de
Homero, acoroçoando-lhe alentos sobrenaturais à sua índole.
— Pois morreremos! — exclamou ele com ar de Leônidas no desfiladeiro das
Termópilas.
— Resolves então morrer? — perguntou um dos padrinhos.
— Que remédio?!
— Arranja outras testemunhas... — intimou o segundo padrinho. — Nós
temos deliberado abrir mão desta asneira. Se te batesses por um motivo sério, verbi gratia, se o Pacheco te desonrasse
uma irmã ou coisa semelhante, ou te chamasse algum nome injurioso, ladrão, verbi
gratia, então estaríamos ao teu lado, e até seríamos os primeiros a
defender-te com as armas na mão; ora agora matar-se um homem a troco de uma
chalaça que não vale dois caracóis, isso é a bestialidade maior que pode
praticar um homem, se não está doido furioso! Lá que tu, verbi
gratia...
— Não dês mais razões — atalhou Álvaro de Abreu. — Procurarei outros
padrinhos...
Altercaram até às dez e meia da noite. Um dos dois bracarenses, que
argumentava valentemente com o recheio do verbi
gratia, repetiu as sãs doutrinas do conselheiro Rodrigues de Rastos,
piorando-as na linguagem. O certo foi que a pertinácia do sensato amigo vingou
abalar o ânimo renitente de Abreu, a ponto de lhe incutir por um lado da alma o
raciocínio e pelo outro lado o medo.
Entretanto, no quartel do morgado de Vale Escuro ocorriam casos
notáveis. José de Almeida, encontrando às onze horas da noite o Abade de Santa
Eulália, que vinha de fazer a partida de voltarete à morgada de Athey,
disse-lhe ao ouvido:
— Os homens matam-se amanhã ao romper da aurora. O Sol, quando nascer...
verá dois cadáveres.
O Abade não duvidou. A catadura do portuense tinha os assombros da catástrofe.
— Jesus, santo nome! — exclamou o padre. — Eu vou avisar o regedor, se
me dá licença; e quer dê, quer não, o meu dever é evitar tal desgraça.
— Não evita nada, Abade. O regedor só pode prendê-los no conflito de
transgredirem a lei. Quem sabe o lugar onde eles vão matar-se?!
O Abade apertou o passo, retrocedendo para casa de D. Helena. Entrou
ofegante e roxo. Assoprava as palavras e embebia no lenço vermelho as bagas de
suor que lhe bolhavam na testa. Referiu o que soubera de José de Almeida. Irene,
que estava ceando bifes de cebolada, foi logo atacada de histerismo, e a mãe
arrotava nas ânsias espasmódicas do flato. Outro padre que ali estava, capelão
e administrador da casa de Athey, pegou a declamar contra a relaxação do País,
desde 33 para cá.
— Senhora Morgada! — alvitrou o Abade atalhando a objurgatória política
do outro —, aqui perto de nós mora o Sr. João Pacheco. Se a vossa excelência
quer, vamos lá. É impossível que este cavalheiro resista às reflexões de uma
senhora que ele tanto venera!
— É já — assentiu D. Helena cobrindo-se com o xale e recomendando ao
capelão que fizesse companhia à menina.
Quando entraram, havia conferência entre os padrinhos de Álvaro e José
de Almeida. João Pacheco, segundo o estilo, não era presente; mas, contra o
estilo, em tais andanças, estava a dormir. Foi chamado para receber a visita da
Sra. Morgada. Espertou estrouvinhado e foi à saleta onde a senhora dialogava
ansiadamente com Almeida e com os outros acerca do desafio. O portuense havia
já anunciado que as condições mortíferas do duelo estavam modificadas. Abreu,
coagido pelos padrinhos, prescindira de morrer, e propunha o combate nos termos
comuns.
A fim de aplacar as agonias flatulentas da viúva, Pacheco asseverou-lhe
que não haveria ferimento de perigo. Quanto a recusar-se ao desafio, consoante
a dama rogava, alegou que a sua dignidade lho proibia. Redarguiu a consternada
senhora que ia pedir ao seu primo Álvaro que desistisse do duelo.
— Se ele desistir — observou Pacheco —, tem a vossa excelência conseguido
o seu bom intento; mas coloca o seu parente em má posição perante os
cavalheiros em quem confiou a desafronta da sua imaginária desonra. Vá
descansada, a minha senhora. O seu futuro genro não sofrerá mutilação de
espécie alguma. O nosso combate será um simulacro de esgrima, uma espécie de
ginástica de sala com espadas sem ponta nem gume.
***
Ao repontar da manhã, atravessamos o Vizela por umas alpondras sobre as
quais se encurvam hoje os arcos da Ponte Nova. Trinavam ainda os rouxinóis nas
margens frondosas do rio e ao longe assobiavam melros e grasnavam as pegas nos
pinheirais. A corrente murmurosa trapejava nas franças dos amieiros debruçados
à flor da água. Daí ladeamos o Banho do Mourisco, à volta do qual estavam umas
mulheres aldeãs espulgando-se nos seios com um despejo digno da inocência da
Arcádia. Os homens respectivos escodeavam as calosidades calcâneas ou
atarracavam tachas nos tamancos. Depois subimos uma charneca declivosa por
onde hoje se alarga e complana a estrada de Penafiel e entramos numa encosta de
tojeiras e sargaçais. Carregamos à esquerda, fraldejando o outeiro por sobre o
bravio, e emboscamo-nos por boiças de carvalheiras até encontrarmos uma
clareira chã e menos acidentada.
— É aqui — disse Almeida aos padrinhos de Álvaro.
Os combatentes despiram as quinzenas e os coletes.
Os pulsos de Álvaro negrejavam cabeludos e quadrados, de uns que o povo
diz que têm só uma cana, como sinal de rijeza inquebrantável: os dedos eram
penugentos e trigueiros, com as unhas sujas. As mãos de João Pacheco eram
magras, translúcidas e depauperadas do bom sangue que tinge a epiderme. O que
me deu a mim alento e esperança na vitória de Pacheco foi o sereno e risonho
aspeito do rapaz e a confiança na arte que neutraliza os ímpetos da força.
Rompeu o combate à voz de José de Almeida. Álvaro de Abreu — caso
singular! — fechou os olhos e floreou a espada em sarilho tal que o adversário
lhe cedeu terreno, aparando-lhe uns botes e esquivando o embate dos
outros.
Eu seguia ansiado aquele vertiginoso redemoinho do aço que lampejava e o
tinido aspérrimo das lâminas. João Pacheco bradou:
— Pare lá.
Álvaro estacou, provavelmente pensando que o adversário estava
ferido.
— Este homem — disse o outro às testemunhas — fecha os olhos, não se
defende, e eu involuntariamente posso matá-lo!
— Se me permite uma reflexão — interpôs-se Almeida dirigindo-se a Álvaro
de Abreu —, o senhor está enganado com o seu sistema de esgrimir às cegas. Como
há de ver a espada do seu contendor?
— Não sei jogar espada — respondeu ele. — Faço o que sei e posso.
— Vejo que pode; mas o que sabe é perigoso — contestou Almeida. — A
vossa senhoria era já cadáver, se o quisesse o Sr. Pacheco. Bata como quiser,
mas veja o que faz: abra os olhos.
— Parece-me acertado — obtemperou um braguês com assentimento do outro.
Recuaram ao ponto designado no terreno. Rompeu Álvaro no mesmo estilo de
pancada de cego, mas com os olhos coruscantes e esbugalhados. João Pacheco
fez-lhe um golpe dos primorosos da arte, o coup de manchette, no antebraço, sobre os
tendões que inserem no pulso, com destridade e limpeza dignas das artes
benfazejas. Estava desarmado o possante Abreu. O discípulo do Chico Belas
honrara o mestre.
***
João Pacheco almoçou com José de Almeida para, em seguida, se recolher à
sua casa do Arco. Percebia-se-lhe um aborrecimento penoso do sucesso. Confessou
que tinha vergonha deter ferido um homem que desconhecia o jogo das armas e
fechava covardemente os olhos. Retirava-se para evitar o espetáculo em que
havia de exibir-se logo que a triste façanha se divulgasse.
Acompanhamo-lo até Guimarães. Aqui nos disse ele:
— Não vos admireis se um dia vos constar que fui assassinado à traição.
O rancor do Abreu há de respirar seja por onde for. Na família antepassada
deste homem há crimes que dariam matéria para um romance sanguinário. Os
próprios parentes dizem que o pai de Álvaro matara o irmão para lhe suceder no
vinculo e matara um cunhado para administrar e desfalcar a casa da irmã. Era
capitão-mor e amordaçava as suspeitas. Este filho herdou-lhe a índole; mas,
aquecido ao sol de outra civilização e mais cultivado que o pai, supura-lhe a
peçonha na língua. Não o temo a ele; mas devo acautelar-me dos facinorosos que
acoita na sua casa, como se prevalecessem ao novo sistema as antigas Honras dos
paços senhoriais.
Quando voltamos de Guimarães, Álvaro de Abreu passeava na estrada, de
braço ao peito, com as primas e com o Abade de Santa Eulália.
— Íamos agora visitá-lo, Sr. Abreu — disse José de Almeida. — Ainda bem
que o encontramos excelentemente disposto.
— Estou bom — respondeu secamente.
— Fê-la bonita o Sr. Pacheco!... — invectivou D. Helena.
— Ainda há de topar quem lhe abata as bazófias... — acrescentou a filha,
chibatando com o guarda-sol um festão de madressilva.
— As minhas senhoras — contrariou solenemente José de Almeida —, o Sr.
João Pacheco procedeu com extremado cavalheirismo.
— Muito cavalheiro! pois não! — replicou D. Irene sarcasticamente com
uns esgares lorpas.
— Com toda a certeza, muito cavalheiro — insistiu o portuense. — Aqui
está o Sr. Álvaro de Abreu que me não desmente.
O invocado respondeu grunhindo:
— Hum.
E Almeida prosseguiu:
— Se as vossas Excelências, as minhas senhoras, não negassem a honradez
generosíssima de João Pacheco, eu teria a conscienciosa obrigação de apelidar
infame quem lha duvidasse. Assim, pedindo vênia a vossas Excelências para não
dar peso à sua opinião em matérias tão alheias do seu juízo, sustento que é um
biltre quem negar o cavalheirismo de João Pacheco na pendência que teve esta
manhã com o Sr. Álvaro de Abreu.
E, fitando-o, esperava resposta, que não logrou.
— Acabou-se! — interveio o Abade. — Com águas passadas não moem
moinhos...
— Diz bem, Sr. Abade — aplaudiu a morgada velha. — Não se fale mais
nisso.
— O que eu sei — juntou Irene — é que, no ano passado, gozamos em Vizela
dois meses deliciosos; e este ano veio aquele Sr. Pacheco lá de Lisboa
perturbar a nossa alegria com as suas prendas de jogador de espada.
José de Almeida sorriu-se com o mais característico gesto de mofa,
abaixou a cabeça sem se descobrir e retirou-se sacudindo a calça com o chicote
de baleia.
Montado no cavalo de que apeara, quando avistou o grupo, disse-me rubro
de cólera:
— Aquela mulher fez-me acreditar que é possível dar-se um pontapé na
parte posterior do merinaque de uma senhora.
***
Quando, por fins de junho, saímos de Vizela, mexericava-se que um rapaz
do Porto, oriundo de família inglesa e celebrado por vinte e sete fraques que
estadeava com os respectivos coletes, fora visto, à claridade da lua cheia,
cochichar com Irene, ele no quinchoso e ela no muro do quintal.
Em fins de julho, José de Almeida, no encalço de uma liteira portadora
de certo objeto amado, voltou a Vizela e observou uns aleijões psicológicos na
enfermidade crônica chamada o sexo pelas senhoras de Basto.
A saber:
Irene, admitida aos saraus e passeios das ilustres famílias da Torre da
Marca, Machados Pindelas, Guedes da Costa, Alentém, Infias e Paço de Sousa,
ouvir a motejar de Álvaro, à conta do desafio, por causa das grotescas
arremetidas de esgrima pelo sistema obsoleto da cabra-cega. Alguns fidalgotes,
às vezes, no meio das salas, sem se resguardarem da morgadinha, fechavam os
olhos e terçavam as bengalas com atitudes farsistas. As gargalhadas atroavam, e
Irene disfarçava o despeito perguntando às vizinhas que brinquedo era aquele.
Afinal, teve uma sincera amiga que lhe explicou o libreto daquelas pantomimas,
metendo a riso o Abreu.
Coincidiu então a chegada do sujeito dos vinte e sete fraques a Vizela,
galhardeando em prendas de sala, e savoir vivre com mulheres, muito
distintamente. De feito, Jacques Smith, educado em Londres, enfarinhado nos
ademanes franceses, enfronhado em vaidades de fidalgo que tinha os ossos do seu
patriarca saxônio na Palestina, elegante e quase inteligente, formava de tudo
isto, reunido aos vinte e sete fraques e respectivos coletes, uma personalidade
capaz de sensibilizar damas no uso de caldas e amor.
A frescura montezinha da filha do capitão-mor de Athey, a garridice um
tanto canhestra, os seus saltos de ovelha espantadiça e o fluido do olhar que
ela derramava remirando-o de esconso escandeceram Smith. Era atrevido como
todos os sujeitos de cerebelo grande, onde demora a bossa da amatividade. A lua
cheia de junho e julho viu coisas que a poesia costuma idear nas varandas das
Julietas e que a prosa espreita em qualquer horta de couve galega por entre
festões de abóbora-menina.
O bacharel Abreu não viu tanto como a casta Lua; mas farejou. O rival
tinha o prestigio que esmaga com a superioridade. O coração do homem traído
abisma-se a chorar na consciência que diz: “Eu valho menos que o meu rival.”
Enfureceu-se, e vozeou rusticidades à prima, que lhas escutou como quem as
recebe impassivelmente com a condição de perjurar. Não se desculpou nem carpiu.
Aborrecia-o, porque era irrisório desde o duelo, e porque estava perdida de
amor, fulminada por Jacques Smith, bom tipo da perfeição viril, tirante as
escrófulas cicatrizadas no pescoço.
Álvaro de Abreu foi para a sua aldeia. Jacques voltou em princípios de
Agosto, com José de Almeida, para a praia da Foz.
Perguntando-lhe Almeida se a morgadinha de Athey passara à história,
respondeu:
— Pois então!
— Era uma rapariga fresca... — disse o outro.
— Sim, fresca e indigesta como a melancia.
***
Em uma gazeta do Porto, de 15 de novembro do mesmo ano de 1851, lia-se
esta correspondência datada no Arco:
Esta vila sofreu a
perda irreparável de um cavalheiro consumado em toda a extensão da palavra e
representante de uma família, talvez a mais ilustre das províncias do Norte,
pois entre os seus avoengos se conta o grande e imortal Duarte Pacheco Pereira,
por antonomásia o Aquiles Lusitano e o Leão dos Mares.
Ontem de manhã
saíra o Sr. João Pacheco a visitar uma a sua prima em Refojos de Basto, onde
passou o dia até às quatro da tarde. O cavalo em que montava era um potro não
educado ainda e comprado nas manadas espanholas que vieram à feira de São
Miguel. Os seus amigos, posto que João Pacheco fosse ótimo cavaleiro, muitas
vezes lhe observaram que os caminhos precipitosos destas aldeias eram
impróprios para ensinar potros.
Fiado, porém, na
destreza do pulso e firmeza de joelhos, o temerário cavaleiro rompia por esses
algares e barrocais com um denodo digno de melhor emprego. Realizaram-se
funestissimamente as previsões dos seus amigos.
Ao lusco-fusco
entrou pelo portão da casa de Vale Escuro o potro sem o cavaleiro, com as
rédeas e bridões despedaçados. O mesmo foi levantar-se na casa um clamor a que
todos os vizinhos acudiram. João Pacheco era extremosamente amado por três
tias, respeitáveis senhoras, que não viam outra coisa neste mundo. Amigos e
criados, salmos todos pelo caminho de Refojos; e a meia légua de distância, num
barrocal fundo e lamacento (espetáculo doloroso!), encontramos o cadáver de
João Pacheco, de bruços, com as mãos submersas no lamaçal e sem gota de sangue
que denunciasse o órgão ferido. Como já era escuro, e o cadáver só podia
levantar-se depois do exame judiciário, ali ficamos alguns amigos até ao dia
guardando os despojos de tão nobre rapaz, desastradamente morto na flor da
vida! O cirurgião examinou-o e apenas lhe encontrou o crânio amolgado, sem
extravasação de líquidos, exceto dois fios de sangue que derivavam do nariz.
Presume-se com bom fundamento que o cavalo o cuspira contra uma rocha angulosa
que forma um dos valados da barroca; porque também na palma da mão direita
mostra contusões resultantes de se amparar contra as escarpas do penhasco. Não
pode atribuir-se esta catástrofe a outra causa que não seja a queda. Se fosse
homicídio, seriam outros os vestígios de ferimentos; além de que, João Pacheco
era benquisto, honestíssimo, respeitador da honra das famílias, não obstante
haver sido criado e educado em Lisboa. Além de rico, era um gentil rapaz; pois
não consta que deitasse a perder algumas dessas centenas de jovens pobres que
se consideram felizes quando os fidalgos as levam à vereda da desonra.
Nós, os seus
amigos, chorá-lo-emos enquanto as suas virtudes lembrarem como exemplo a Filhos
e cidadãos. Que descanse na perpétua morada da virtude o tão chorado mancebo; e
peço ao altíssimo resignação para a sua inconsoláveis tias!...
Quando li compungido esta correspondência, lembraram-me as palavras de
Pacheco, na última hora em que o vi: “Não vos admireis se um dia vos constar
que fui assassinado à traição.”
Comuniquei a minha desconfiança a José de Almeida.
— Palpita-me que foi assassinado pelo Abreu! — concordou o meu amigo, e
acrescentou: — Escrevo hoje ao Abade de Santa Eulália, citando-lhe as palavras
de João Pacheco e pedindo os pormenores do desastre.
O Abade respondeu que eram infundadas as nossas desconfianças;
porquanto, no dia 11, em que João Pacheco perecera, estava Álvaro de Abreu na
feira de São Martinho, em Penafiel, com ele, Abade, e com as senhoras morgadas
de Athey; e que por sinal nesse dia perdera o Abreu cento e tantas moedas de
ouro ao monta, à vista de dezenas de pessoas que nunca o tinham visto
jogar.
E rematava a carta deste teor:
Os namorados
fizeram as pazes. A pequena veio das Caldas muito coada de cores e com
grandes... Olheiras (ia a escrever “orelhas”). Nos primeiros dias,
enfanicava-se a cada passo e dava uns ais românticos como as damas de Basto de
1825. Infandum... renovare dobrem. Depois, a mãe, que é também matreira de
1825, escreveu ao Abreu dizendo-lhe que a sua filha era vítima da ingratidão
dele. Aquela “lua cheia” de Vizela de que a vossa senhoria me falava, não foi
ouvida a tal respeito. Ora o Abreu quer-me parecer que sabia pouco menos que a
referida Tétis e que o janota luso-britânico de que reza a crônica escandalosa
das termas romanas do corrente ano, 1890, da era de César. Porém, como o
patrimônio dele é magro e as fazendas de Athey são de encher (e de fechar) o
olho, a vossa senhoria verá que, afinal, a morgadinha, embora não tenha de
desatar a cinta virginal, apanha marido, parente, fidalgo e bacharel. Se
depois, as costelas lho pagarão, isso não é da minha conta. Lá se avenham; mas
melhor será que ele se resigne, e feche os olhos como no duelo, porquanto saco
com honra e proveito é raro, ou não o há, se o anexim é tão verdadeiro, quanto
eu sou da vossa senhoria amigo e venerador, Abade Silva.
***
No ano seguinte, a floresta de amieiros do Vizela já não deu sombra e
frescura a nenhum dos seus hóspedes do ano anterior.
A José de Almeida e a mim figurou-se-nos que as frondas do salgueiral
afestoavam um túmulo. Doeu-nos pungentíssima a saudade de João Pacheco. Nunca
mais ali voltamos.
Estavam nas Caídas a morgada velha e o Abade de Santa Eulália.
Irene e o seu marido, Álvaro de Abreu, esperavam-se mais tarde.
Esperava-os D. Helena; mas o Abade secretamente nos disse que D. Irene
nem o marido tornariam a Vizela em dia da sua vida.
Segredou-nos que a morgadinha, ao oitavo dia de casada, tentara fugir
para a mãe...
— Oh! — exclamou Almeida —, ao oitavo dia! que lua-de-mel! — a meu ver —
piscou o Abade entortando a boca disformemente —, esta lua-de-mel recebia a luz
reflexa daquela outra lua cheia aqui das Caldas, tão a sua conhecida, Sr.
Almeida,.
— Maganão! O Abade é o calendário de todas as luas que iluminam há trinta
anos os amores noturnos de Vizela...
— O que o senhor não sabe é que o marido lhe bate às cegas...
— Sim? Agora vejo que o homem, no duelo, obedecia ao costume.
— E, quando sai, fecha-a num quarto de cantaria que lá chamam a “torre”,
e até dos criados a zela!
— Que amor e que conceito lhe merece! — disse Almeida com a secura
irônica do seu gênio quando as situações demandavam piedade.
— Eu vi-a há quinze dias na igreja de Refojos. Que mudança! Está
escaveirada, sem atavios, o desalinho da desgraça... Fez-me compaixão! O marido
estava à beira dela; não pude sequer dizer-lhe que fugisse.
— Mas a mãe... assim a deixa desprotegida?
— A mãe definha-se; e não saber tudo o que ela sofre, porque a filha não
se queixa...
— Não entendo essa resignação! — objetou Almeida.
— Entendo-a eu. Irene era descompassadamente estúpida a respeito de
certas coisas...
— A respeito de todas, pensava eu — emendou o portuense.
— Cuidou que o matrimônio era o conserto de certos aleijões com que fora
daqui de Vizela.
— Fez do marido algebrista, percebo.
— É isso; mas o bacharel tem lá os seus Provarás...
— De cacete, hem?
— E a mulher tem medo que o marido peça contas à sogra dos desatinos da
filha.
— As meninas que em tais condições se casam não temem as mães, Abade.
Casou ela livremente?
— Com toda a liberdade, e contra a vontade da mãe. Tanto assim que a
velha, prevendo que o Abreu seria mau esposo, entregou-lhe simplesmente o que
era do pai da noiva: setenta mil cruzados em propriedades. A casa vale o tresdobro.
Foi velhacaria muito louvável; porque, dizia ela: “Se o marido a maltratar,
ameaço-o com a privação do meu dote, que é privilegiado e isento da meação da
casa.” É o que ela está ensaiando: já anunciou a venda de duas quintas. Veremos
como ele se porta...
— Por essas duas quintas fechará o genro os olhos ao passado e ao
futuro. Ele bem sabia que Irene o desprezou pelo Jacques Smith. Que alentado
canalha salpicado de brasões! Não posso despersuadir-me que foi ele o assassino
do infeliz Pacheco...
— Juro que não foi: já o defendi.
— Então, mandou-o matar.
— Isso é uma hipótese sem nenhum fundamento. No cadáver de João Pacheco
não havia sinal de ferro, nem de tiro, nem contusões de pancadas. Foi a queda
do cavalo, que era bravo. Não dê vulto a essa suspeita aleivosa.
***
Joeirando as minhas reminiscências de coisas relativas a Irene,
referidas pelo Abade em cartas a José de Almeida, apuro o seguinte, na
correnteza dos anos de 1853 a 1855:
Sem impedimento dos dissabores conjugais, Irene deu à luz o seu primeiro
filho, e, mediante o prazo restrito para o fenômeno da geração, provou a sua
fecundidade com segundo rapaz robusto. Donde se depreende que ele a não
espancava incessantemente.
Irene vivia mais desoprimida desde que o marido reatara com uma
raparigaça barrosã a mancebia interrompida pelo casamento. Ele pernoitava fora
noites seguidas e não sofria em casa a menor inquietação com ciúmes.
Durante o primeiro ano, raro dia passava que a não atanazasse com
perguntas cruamente torpes acerca de Jacques Smith. Depois, parecia esquecido
ou reconciliado, se não era antes o receio de que a mulher lhe fugisse e a
sogra alienasse as quintas.
No meado de 1855, a morgada velha faleceu nos braços da filha,
recomendando-lhe que recorresse nas suas aflições ao Abade de Santa Eulália.
Desde este dia, recrudesceram em Álvaro de Abreu os desprezos, as injúrias e
até a difamação da mulher. Aos seus parentes, que o arguiam de devasso,
respondia que lhe era mister aturdir uma desonra com outras: e, pondo em miúdos
a frase anfibológica, delatava a fragilidade antematrimonial da sua mulher e
parenta.
Apertada pelos insultos face a face, Irene disse-lhe um dia:
— Se eu tivesse um irmão que pegasse numa espada, você não me ofenderia
assim...
— Se você tivesse um irmão que pegasse numa espada e me ferisse com ela,
iria para onde foi um homem que uma vez me feriu...
Irene não percebeu o sentido latente da réplica; mas referiu ao Abade a
passagem, digna de ponderação.
“Quem sabe”, dizia ele consigo, “se José de Almeida acertou quanto à
morte de João Pacheco".
Os criminosos asilados sob as telhas de Álvaro de Abreu favoreciam a
suspeita: entre outros somenos na tuba da fama avultavam o José Pequeno, da
Lixa, e o José do Telhado, que o neto dos senhores de Regalados sentava à sua
mesa, quando Irene ficava no quarto. Entrou em averiguações o Abade, e soube
que os dois salteadores, quando João Pacheco morreu, estavam na casa dos Abreus
de Refojos, jogando a esquineta com os criados.
Como quer que fosse, o Abade entrou-se de medo bem entendido quando
Irene lhe pediu que a protegesse e resgatasse da escravidão em que vivia.
“Este homem, se eu me intrometo nos distúrbios da sua casa, é capaz
demandar um dos seus celerados apunhalar-me!”, conjeturava ele racionalmente.
Não obstante, indagava com cautela o modo de libertar Irene pelo
divórcio, ou pela fuga para mosteiro ou casa de família honesta. As famílias
honestas recusavam-se a receber a esposa difamada pelo marido; as menos
honestas esquivavam-se a desavenças com Álvaro de Abreu, respeitando mais os
hóspedes que o hospedeiro. Os donos das casas endinheiradas dormiam
tranquilamente enquanto o amigo do José do Telhado e José Pequeno lhes não
retirasse a sua estima.
E, naquele tempo, havia governadores civis, administradores de concelho,
regedores, cabos de polícia, etc. Esta corporação de funcionários não prendia
ladrões: fazia deputados.
***
Irene instava com urgentes rogos. Dizia desatinos ao Abade. Traçava
planos vulgares; mas de escândalo estrondoso. Fugiria para o Porto, onde estava
um homem que ela amava: iria pedir-lhe o amparo do amante ou a vingança do
cavalheiro. Tinha lido o Palmeirim de Inglaterra; mas não conhecia o Cavaleiro
da Triste Figura. O Abade recomendava-lhe juízo e paciência; e pensava mais
fervorosamente em salvá-la do amante que do marido. Falava-lhe dos filhos. A
comoção era medíocre. As mães que desafogam as suas angústias, ajoelhando à
beira de um berço, estão salvas. Irene carecia da virtude redentora das
esposas, que fazem os seus anjinhos intercessores com a justiça divina. Era
criminosa. O marido cuspia-lhe uma injúria, e ela abaixava o rosto
indelevelmente manchado. Um dos esteios da honra quebrara-o a jovem solteira em
Vizela: restava-lhe outro — o da sinceridade com o noivo aborrecido: quebrou-o
também. Se a sorte lhe deparasse marido tão amante quanto generoso, a
regeneração fá-la-ia o esquecimento do erro, e o segundo batismo da alma seria
a unção das lágrimas nas faces cariciosas dos filhos. Havia uma chaga a
cicatrizar na consciência de Irene; não lha leniram com o bálsamo do amor ou da
caridade: exulceraram-lha a ferroadas de inúteis vitupérios. As mulheres assim,
quando não se engolfam no tremedal, ou são feias como o pecado, ou
predestinadas como Santa Pelágia e Santa Maria Egipcíaca.
O Abade de Santa Eulália solicitou a proteção de um prelado, o seu
parente, a favor da desditosa Irene. Conseguiu-se a entrada da esposa fugitiva
no Convento de Santa Clara de Coimbra. O Abade avisou-a, guiando-a no passo da
fuga. Irene deveria sair para uma das suas quintas de Cerva, onde costumava ir
ao Outono, e fugir de lá com duas pessoas da confiança do Abade. Aceitou
alegremente a proposta; porém, dias depois que se transferira à quinta donde
devia fugir, com efeito fugiu; mas não eram confidentes do Abade as pessoas que
lhe protegiam a retirada pela serra de Marão em direitura ao Porto.
A mulher de Álvaro de Abreu escondeu-se nos arrabaldes daquela cidade,
no Bom Sucesso, numa casa-chalé, telhada e ladrilhada de asfalto negro à
inglesa, com estores impenetráveis e à volta um silêncio sepulcral a ouvir —
permita-se-me a expressão — os suspirosos murmúrios que lá dentro se atabafavam
nas alcatifas e nos cortinados.
Aquela casinha abarracada era o chalé de Jacques Smith, o homem dos
vinte e sete fraques para quem a frescura da melancia era indigesta.
Não é natural que a esposa fugitiva fizesse por ali escala para o
cubículo de Santa Clara.
***
Avisado Álvaro de Abreu que a sua mulher desaparecera da quinta de Cerva, deixando os filhos com recomendação às amas que os entregassem ao pai, não se afligiu desesperadamente. Sabia que Irene suspirava pelo convento e que o Abade, confidente dela, era o agente desse plano. Procurou o Abade na sua residência e perguntou-lhe, carranqueando, onde estava a doida.
— Não sei, Sr. Abreu.
— Não mangue comigo, Abade... Em qual convento está Irene? O senhor
tratou disso, foi a Braga, falou ao deão, etc.
— Sem dúvida; mas a Sra. D. Irene, quando foi procurada para entrar no
Convento de Santa Clara de Coimbra, já tinha saído da quinta.
— Não me conte lérias, Abade! — retorquiu sarcasticamente o bacharel. —
Eu estou a ler-lhe na alma. Irene vai requerer o divórcio, guiada pelos seus
conselhos.
— Não é verdade, Sr. Abreu — atalhou o Abade.
— Não me desminta. Que interesse tem o senhor, pastor de almas, em
insinuar a desordem no seio de uma família?
— Já disse a vossa senhoria...
— O senhor é tolo! Parece que não tem amor à pele... Repare no que lhe
digo: se a justiça, a requerimento de Irene, me inquietar, quem paga as custas
é o Sr. Abade de Santa Eulália. Fica avisado.
— Mas... Sr. Abreu... juro-lhe pela sagrada hóstia...
— Não me fio em hóstias!... Padres! corja de marotos! pensam que estamos
ainda nas trevas do absolutismo!... Fica avisado, entende-me?
E saiu tinindo rijo com as esporas no pavimento e dando estalos com o
chicote.
O Abade era uma congestão de pavor, com o espírito estritamente
necessário para pensar em transferir-se para outra abadia.
Nesses dias de sobressalto, escrevera ele a José de Almeida,
contando-lhe as suas cólicas em linguagem picaresca. Mais egoísta que
caritativo, dava ao Diabo do Inferno a tonta da Irene e perguntava onde iria
parar aquela extravagante.
Quanto a mim [aventava o solerte Abade], a mulher está aí no Porto, sob
a proteção da bandeira inglesa, enquanto eu cá estou debaixo do cacete
português do marido. Ela muitas vezes me disse que tinha aí paladino. Procure-a
a vossa senhoria; e, se tiver modo de lhe transmitir os meus cumprimentos pela
bestialidade que fez, peça-lhe que não demande o marido, visto que as custas já
eu fui citado para as pagar em moeda de costela. Entretanto, diligencio
escapulir-me daqui. Está vaga uma boa abadia no Alto Minho. Vou requerer a
mudança, esperançado no valimento da vossa senhoria. O deputado do círculo há de fazer-me guerra, porque eu laboro nas fileiras da rainha e Carta
e votei contra ele; mas, repito, conto com a vossa senhoria e com o José
Bernardo. Não me desconviria nesta ocasião um canonicato em Braga, e já mó
ofereceram os senhores Cabrais em 1850; hoje torço a orelha... Ah! femeaço!
femeaço! Quando a política me agourava uma mitra, as mulheres far-me-iam
rejeitar o chapéu de cardeal. Mulheres, piores que o Diabo, diz o Eclesiastes.
Devia de estar velho quem disse isto... Finalmente, agora, em remate de
cantiga, vem essa doida da Irene perturbar o meu repouso!... Quem me mandou a
mim endireitar tuertos, se ela já estava retorcida!? Etc.
José de Almeida, contando com a fatuidade de Jacques Smith, mostrou-lhe
a carta do Abade e perguntou-lhe se ele podia informá-lo.
Smith riu à farta das graçolas do padre, encaracolou as guias do bigode,
estirou três vezes os braços com sacudida elegância, assentou a gola do fraque
décimo nono, fez meia volta sobre os tacões, enclavinhou os dedos alisando os
vincos das luvas, e falou desta arte:
— Eu te digo. É uma pobre rapariga. Deixei-a, como sabes. Escreveu-me
sempre.
Respondi-lhe de vez em quando. Quis fugir à mãe. Pediu-me que a fosse
esperar a Guimarães. Dissuadi-a de tal parvoíce. Desesperou-se, quando soube
que eu fora para Paris, e casou-se por despeito. Que estupidez! uma mulher com
duzentos contos! Cheguei de Paris, e encontrei uma carta de Irene, escrita na
véspera do casamento. Era um adeus com raiva e lágrimas. Dizia que não lhe importavam
as consequências... — que, se o marido a matasse, Deus me pediria contas.
Compadeceu-me esta tolice! Passados dois anos, escreveu-me uma história
deplorável de dores íntimas. É vítima do amor que me teve. O marido mata-a
lentamente e atormenta-a com o meu nome. Respondi-lhe em nome suposto, com
pesar, com dó, com saudade, queres que te diga? amando-a!... Caprichos do
coração... Primeiramente, aconselhei-a a que se separasse do bruto; depois
aprovei o refúgio do convento; por fim, quando ela me disse: “Vou suicidar-me”,
fui buscá-la. Andei cavalheiramente?
— Com toda a certeza. A ter ela de se matar, fizeste bem. Salvaste-a da
morte e das penas eternas que esperam os suicidas — aplaudiu Almeida,
casquinando frouxos de riso que eram uma satânica beleza na fisionomia
dele.
— Estás a gracejar? — respondeu o outro com aprumo entre inglês e
portuense.
— Pois tu falas tão fúnebre que eu deva ouvir-te com as lágrimas nos
olhos? Rio-me dos advérbios que eu e tu usamos nestes casos. Cavalheiramente!
Foste buscá-la cavalheiramente! E se tivesses casado com ela, na ocasião em que
a comparavas à melancia fresca e indigesta, com que advérbio celebrarias a tua
ação?...
— Casar!... Por que não casas tu?...
— Isso é outra questão...
— É a mesma: porque não casas tu com...
E recenseou meia dúzia de nomes tão respeitáveis presentemente que só
cada um de per si bastaria para desbotar o pudor das Pórcias e Cornélias. José
de Almeida, em verdade, no terreno da morigeração, estava deslocado.
Mudou sensatamente de rumo; e, voltando ao ponto, disse:
— Que queres que eu responda ao Abade?
— Diz-lhe que D. Irene está comigo; e que o diga ao marido, se isso
convier à sua defesa. Quanto a demandas, que não se assuste o selvagem nem o
Abade.
Fez uma pirueta congenial, acenou ao jóquei, sentou-se de um pulo no
coxim do mail-coach e silvou a pita do pingalim na crina
dos alazões, que saíram curveteando.
“Aí vai um perfeito feliz”, dizia a mocidade portuense verminada de
invejas.
Seria um pouco mais feliz que um mendicante sadio se não tivesse um
aneurisma a arfar-lhe no coração. Compensações.
***
O Abade, recebendo a resposta do portuense, procurou Álvaro de Abreu e
disse-lhe:
— Lamento a desgraça de que não tenho a mínima culpa. A Sra. D. Irene
está... onde a levou a fatalidade. Se a vossa senhoria me admite um conselho,
não se divulgue tal desgraça.
E, contando-lhe com melindrosos rodeios que O. Irene vivia com Jacques
Smith, ofereceu-se para intervir no remédio deste escândalo.
— Como? — interpelou Álvaro iradamente.
— Meditarei no modo da encaminhar ao convento.
Abreu ringiu os dentes e rosnou:
— O senhor, se não fosse uma besta, seria um canalha que vem aqui
avisar-me da infâmia dessa mulher!...
— Oh, senhor! — exclamou o Abade, conturbado do ímpeto do fidalgo.
— Pois eu venho participar-lhe.
— O quê? Que vem o senhor participar-me? Que estou desonrado? Ora
ponha-se no meio da rua antes que o despeje pela janela! Quem perdeu, quem
prostituiu essa devassa, foram os seus conselhos. O Abade limpava o suor e
gaguejava.
— Rua! — bradou Álvaro —, e mude de terra, quando não... faço-o esfolar.
Você teve quinhão nas devassidões da mãe; que lhe importa a devassidão da
filha?
Era uma seva calúnia, propalada por Álvaro de Abreu e aceite pela
opinião pública. O Abade então chorou, ergueu a cara com arrogância e bradou:
— O senhor informa as honradas cinzas da sua sogra! Eu não posso
vingá-la, mas Deus nos vingará, a ele e a mim!
— Fora, hipócrita! Rua!
O padre saiu aturdido. Zuniam-lhe os ouvidos e congestionava-se-lhe o
sangue na cabeça.
E, desde esta hora — dizia ele —, nunca mais teve saúde nem descanso.
Apagou-se-lhe a clara e serena satisfação da vida. Fechou a aula de Latim.
Insulou-se da convivência dos amigos. Tinha cinquenta e seis anos. A filosofia
socrática não bastava a robustecer-lhos contra os abalos da religião de Jesus.
Entrou-lhe no espírito a memória severa do seu passado licencioso. Pesares,
abafados pela dúvida, exulceraram-se em remorsos. Ara o assombro dos fregueses.
O relâmpago da fé abrasara-o. Fez-se missionário e, no púlpito, desentranhava a
invencível e penetrante eloquência das lágrimas.
Acaso vi o nome deste padre na lista de missionários que uma gazeta
injuriava.
Comuniquei o espantoso achado a José de Almeida.
O meu amigo escreveu-lhe. Na volta do correio, a resposta dizia assim:
O desgraçado a quem escreveis morreu. Subsiste um penitente a rogar vos
de mãos postas que, antes do inverno da vida, ofereçais a Deus as vossas
lágrimas em desconto das que fizestes chorar.
— Que celebreira! — disse Almeida. — Quem havia de esperar isto de um
padre tão patusco!
E mais nada — celebreira! Que desabrimento com umas ingentes dores,
dobradamente deploráveis, se são quimeras!
Eu, de mim, compreendi aquela transformação, porque decifrara os
segredos dela na minha alma. Aos vinte e um anos estudara eu Teologia, com o
propósito de ir missionar entre os vituperados da loucura da Cruz. Recai,
propelido pela zombaria do mundo; mas aprendi a não zombar.
***
Por aquele tempo, um cavalheiro de Basto, o Sr. Paulino Teixeira
Botelho, murava um terreno lavradio que nos anos anteriores fazia parte da
feira de São Miguel, em Refojos. A política de campanário introduzira a sua
garra nesta contenda de propriedade. O povo, acirrado pelos adversários
políticos do Sr. Paulino Teixeira, ameaçara derribar o muro e invadir a
propriedade a ferro e fogo. O proprietário, forte do seu direito e bravo do seu
natural, aceitou a luva, aguerrilhou criados e caseiros e avisou as autoridades
que tomaria sobre si o desempenho dos deveres que incumbiam aos fiscais da
segurança pública.
Os amotinados eram, pela maior parte, jornaleiros, soldados com baixa, a
ralé íntima das aldeias,
poucos lavradores e alguns caseiros de casas afidalgadas. Entre estes,
sobrepujava na investida e na bravura da excitação um Manuel Fialho, que tinha
sido lacaio de Álvaro de Abreu, e àquele tempo era o seu feitor em duas quintas
nas margens do Tâmega. Fora ele quem arremetera primeiro ao muro e aperrara um
bacamarte ao peito de um criado da casa agredida.
Rompeu a espingardaria, menos trovejada que o alarido da multidão. As
balas zuniam na ramagem dos castanhais. Milhares de pessoas, de envolta como
gado espavorido, despejavam a feira. O povo inerme açodava com o alarido os
combatentes. Dos de fora, alguns caíam feridos, outros baqueavam sob os muros
derruídos.
O mais pimpão, Manuel Fialho, caíra atravessado por um pelouro do peito
às costas. Acudiram a levantá-lo do chão lamacento alguns dos seus
sequazes.
— Quero confessar-me! — rouquejava ele. — Levem-me onde esteja um
padre!...
Depressa, que morro!
Olharam em redor, e viram um sacerdote que, de mãos postas, sem receio
das balas que lhe sibilavam de perto, pedia ao povo que se retirasse.
— Além está o Sr. Abade de Santa Eulália! — exclamou um dos amparadores
do agonizante.
Outro correu a dar-lhe parte de que estava ali um feitor do fidalgo de
Refojos mortalmente ferido que se queria confessar.
— Trazei-mo depressa, eu o espero nesta primeira casa... —disse o
Abade.
O moribundo, nos braços de dois homens, entrou para um quarto onde o
esperava o confessor. A confissão e a vida duraram-lhe dez minutos.
***
Álvaro de Abreu, quando, ao fim da tarde, lhe disseram que Manuel
Fialho, antes de expirar, pedira confessor e morrera nos braços do Abade de
Santa Eulália, acusou nas alterações de cor e fixidez dos olhos alvoroço
aflitivo.
Os dois filhinhos, conduzidos pela despenseira, iam beijar a mão do pai
para se deitarem. Álvaro manteve quieto entre eles, prostrado numa cadeira, abstraído,
enquanto as crianças lhe contavam a batalha da feira, imitando a troada dos
tiros com a boca e a estratégia com umas manobras infantilmente graciosas. A
despenseira, pensando que o pai se entretinha com os pequenos, retirou-se
admirada. Era raro deter-se Álvaro cinco minutos com os filhos; e, quando eles
se demoravam, afastava-os desabridamente.
Neste comenos, anunciou-se o Abade de Santa Eulália.
Abreu levantou-se de golpe, fincou na cabeça os dedos engrifados e
resmoneou:
— É certo...
O criado, que dera o anúncio, esperava a resposta.
— Que entre!... e leva estas crianças... — disse Álvaro.
O criado foi à sala de espera e fez sinal ao Abade que entrasse pela
porta da direita.
— Deixe ir comigo os meninos — disse o Abade, tomando-lhos cada um na
sua mão.
As crianças, pondo no rosto caricioso do velho os seus grandes olhos,
iam alegremente, saltando sobre um pé, e floreando as suas espingardas de cana
fabricadas expressamente para darem aos criados um simulacro do tiroteio
daquele dia.
— Com licença. Louvado seja o nosso Senhor Jesus Cristo — saudou o Abade
à entrada da sala, introduzindo as crianças.
— Entre! — disse o fidalgo.
O missionário, entrado à sala, fechou a porta e disse:
— As crianças podem entrar porque são anjos e não entendem as nossas
palavras.
Em nome delas, tenho de pedir: e elas pedirão comigo.
Álvaro de Abreu escutava-o em pé, imóvel, hirto. O Abade mal o divisava
na quase escuridão da vasta quadra, assombrada de castanheiros seculares.
— Senhor Álvaro de Abreu — prosseguiu o Abade com a voz tremente —, ouvi
de confissão, em artigo de morte, Manuel Fialho, o homem que matou João
Pacheco, com a pancada de um mangual na cabeça, e à traição na Barroca das Duas
Fontes, ao anoitecer do dia 11 de novembro de 1851. Este homem só compreendeu e
temeu a justiça divina quando se sentiu varado por uma bala. Eu venho rogar a
vossa senhoria que compreenda e tema a justiça divina manifestada na morte
violenta do seu criado Manuel Fialho, homicida do inocente João Pacheco. Não
lhe direi que se tema da justiça humana, porque o único homem que podia
acusá-lo é morto; e eu não o acusarei na Terra; porém, se Deus chamar a minha
alma a depor no tribunal divino, direi que de mãos postas e na presença do seus
filhinhos lhe pedi que se curvasse pela contrição e pela penitência aos pés de
Jesus Cristo misericordioso.
E ajoelhou aos pés de Álvaro com as criancinhas adiante de si.
— Levante-se, Sr. Abade! — balbuciou o marido de Irene, erguendo-o nos
braços. — Eu sou um miserável, sou indigno da sua estima... Perdoe-me as
injustiças que lhe fiz...
— Não tenho que perdoar... Adeus, anjinhos — disse o padre beijando as
crianças. — Ide ver-me algumas vezes à residência, que vos ensinarei a orar a
Deus por o vosso pai e... por a vossa mãe.
— A mamã? Onde está? — perguntou o menino mais velho, que tinha quatro
anos.
O Abade passou o canhão da batina pelos olhos e saiu.
A voz lamentosa do padre soou no deserto, as lágrimas caíram sobre o
penhasco estéril.
Álvaro desdava as roscas da serpente do remorso sem grande esforço: era
ateu.
Bazofiara sempre de racionalista; mas da sua razão era excluído Deus.
Acreditava, tal qual vez, nas vantagens sociais da virtude e nos perigos do
crime; mas para além da torrente negra da morte não aceitava sequer a discussão
absurda.
Apalpava-o agora duramente a desgraça. Havia um homem que podia acusá-lo
de assassino covarde; tinha uma esposa adúltera que passeava ao grande sol das
praias e das praças o seu escândalo; rareavam à volta dele os cavalheiros
considerados; acanalhavam-no os celerados que se acolhiam às suas quintas; as
autoridades judiciárias, açuladas pela imprensa, aguilhoavam os regedores a
assaltarem-lhe as casas. Perderam-lhe o respeito, e até nos periódicos o
amalgamavam com os hóspedes, invocando os manes dos condes de Regalados.
Convulsionavam-no frenesis, exasperos que ninguém mitigava com o amor ou
com os linimentos da amizade. Os risos das crianças irritavam-lhe a
misantropia. Era-lhe impossível a quietação e baldado o paliativo das deleitações
brutais.
Deliberou viajar. Não podia vender quintas sem o consenso da
mulher.
Hipotecou-as com enormes usuras. Embolsou o dinheiro à farta para
demoradas viagens e saiu, entregando os filhos para uma cunhada, esposa do
irmão morgado.
Desde 1857 a 1861 triunfou a vida nas principais cidades da Europa.
Conheceu todos os salões e todos os antros. Viu a devassidão no espavento das
pompas do Louvre, onde as duquesas apresilhavam diamantes nos bicos dos peitos,
e remirou-se nos grandes espelhos dos bordéis em que as mulheres, nuas como as
bacantes, se espreguiçavam sobre divãs, com os seios aljofrados de pérolas e os
cabelos aromatizados de grinaldas de jasmim. Em Veneza, Milão, Paris, Londres,
Madrid, em todas as cidades capitais, comprava um daumont,
dois cavalos e uma mulher dar mais cotadas; às vezes, comprava duas mulheres e
quatro cavalos. Chamavam-lhe conde, porque nos seus trens fizera pintar a coroa
dos Abreus, condes do Pico de Regalados.
D. Irene viajava simultaneamente com Jacques Smith. Uma vez, no Prado,
em Madrid, o faeton de Smith perpassou pelo breque de Álvaro, que boleava.
Refestelavam-se nos coxins duas francesas do café-concerto. Jacques acotovelou
Irene e disse-lhe, risonho:
— Aos pares, hem? E tu a imaginá-lo a semear calondros em Basto...
Irene chorava.
— Por que choras?
— Por os meus filhos, que não têm pai, nem mãe, e hão de ficar pobres.
Álvaro avistara a mulher, cravara-lhe os olhos indecisos, reconheceu-a,
e não tenho a certeza se lá no íntimo da
sua pessoa lhe chamou descarada.
É natural que sim.
O honesto era ele.
***
Em 1862, um padre que administrava as quintas de Álvaro de Abreu não
achou usurário que lhe adiantasse mais dois contos de réis que o fidalgo pedia
com urgência. Um legitimista minhoto que visitara D. Miguel na Alemanha
propalou que vira Álvaro de Abreu em Florença muito doente, descarnado,
tossindo, com o peito retraído, as gengivas brancas e as orelhas secas. Os
usurários enfiaram de pavor. Se ele morresse, a viúva e os órfãos, alegando
lesão enormíssima e ilegalidade dos contratos, levantar-se-iam com os
rendimentos hipotecados das propriedades. Álvaro esperava em Londres a letra. O
padre-mordomo enviou-lhe algum dinheiro, desculpando os capitalistas com o
boato da sua enfermidade.
Resolveu repatriar-se, a fim de restabelecer-se no Minho. A sua doença
era o corolário da libertinagem: a caquexia. Os médicos franceses
aconselharam-lhe as águas minerais de Cauterets nos Pirenéus. Mudou de rumo.
Era-lhe grata a esperança de voltar à Pátria restabelecido e gordo para
desmentir o legitimista. Bebeu as águas sulfúricas de Cauterets, consumou o
esfacelamento dos intestinos baixos, e morreu medicinalmente. Além de um
titular português que lhe assistiu na morte e enviou a Portugal a notícia,
ninguém, por afeto ou caridade, lhe umedecera os beiços na derradeira febre.
Contou o titular a José de Almeida que o tal Abreu tinha um pasmo de olhos
horrendo quando agonizava.
Veria o espectro de João Pacheco?
***
O Abade de Santa Eulália rezava uma missa por alma de Álvaro de Abreu
quando D. Irene, trajada de luto rigoroso, entrou na casa de Refojos, onde
esperava encontrar os filhos. Disse-lhe o mordomo que os meninos, por direção
do Abade, estavam a educar no colégio de Landim, oito léguas distante. Escreveu
ao missionário, pedindo-lhe que lhe levasse a sua amizade e o seu perdão. O
velho, que ela não vira nos últimos nove anos, era tão acabado, tão decomposto,
que Irene chorava, comparando-o ao festivo e juvenil Abade que radiava alegria
na casa de Athey.
— Afinal... — murmurou o padre.
— Aqui estou... — soluçou Irene.
— Quer ver os seus filhos?
— Sim...
— Vou mandá-los buscar. Cuidei deles, porque a sua cunhada não podia
sofrê-los: e as criancinhas amavam-me... E preciso, a minha senhora, salvar o
que puder desta casa por amor destes meninos. Com ordem e economia, se Deus me
der vida, tudo se fará.
Irene apressava o inventário, resgatava as vendas ilícitas, anulava
hipotecas, afanava-se em liquidar o que devia pertencer-lhe da meação do casal
e dos rendimentos absorvidos na totalidade pelo marido.
Observara-lhe o Abade que um tamanho apuro de contas iria, sem ela
querer, cercear o patrimônio dos filhos.
— Se a vossa excelência acrescentava ele — tenciona reduzir as suas
despesas ao viver aldeão, sobra-lhe tanto do que percebe da sua metade que
talvez possa deixar intatos os rendimentos dos órfãos.
— Tenciono ir viver no Porto... — explicou ela.
— Ah! — exclamou o Abade. — Com que então, a minha senhora... ainda não?
— Ainda não... O quê?
— Nem o grito da consciência? Nem o grito do exemplo? Nem a presença de
dois filhos? Bendito seja Deus!
Este diálogo constrangido foi cortado por um servo que entregava a
correspondência.
— Não veio carta? — perguntou ela agitada.
— Não, a minha senhora, veio somente esta folha.
Era o Comércio do Porto. D. Irene atirou-o sobre uma jardineira, com
enfado, e encostou a face à palma da mão, carregando o sobrolho. O Abade
chamara o menino mais novo, que tinha oito anos, e disse-lhe:
— Vem cá, Manuel Filipe, lê-me aqui as notícias deste jornal; quero que a tua mãe veja que lês correntemente.
E deu-lhe o jornal aberto. A mãe parecia estranha ou aborrecida.
O menino procurou a secção de notícias, e leu:
OBITUÁRIO:
Ontem, pelas sete horas dá manhã, desapareceu do número dos vivos um dos
mais estimados e gentis cavalheiros desta cidade. Um aneurisma no coração
arrebatou fulminantemente o Sr. Jacques Smith, que...
Irene levantou-se arrebatada bradando:
— Que ê? Que é?
E, pegando no jornal que tremia nas mãos do menino assustado, leu as
primeiras linhas que ouvira ler, premiu o coração asfixiado pela angústia,
rolou nas órbitas os olhos turvos sob as pálpebras convulsas e caiu sem
alentos.
— Por que foi?! — perguntou o aflito menino ao Abade. — Ela morre?
— Não, Manuel Filipe. Isto não há de ser nada. A tua mamã conhecia esta
pessoa que morreu, e... teve pena.
Depois, dobrou o Comércio do Porto e meteu-o na algibeira da batina para
que o filho de O. Irene de Abreu nunca mais tornasse a ler o nome de Jacques
Smith.
***
Em 1871, Manuel Filipe de Abreu e o seu irmão Jerônimo de Abreu e Lima,
ambos terceiranistas da Universidade, vieram às Caldas de Vizela, com a sua
mãe, a Sra. D. Irene.
Esta ilustre e respeitada fidalga de Athey não contava ainda cinquenta
anos e estava hemiplégica — metade do corpo paralítico. Era transportada em
cadeira de rodas ao Ranho da Bomba Forte. Uma vez, quis ir até à Ponte Velha,
que não via desde 1851. Em frente da ilheta onde em 15 de junho daquele ano
Álvaro de Abreu e João Pacheco trocaram os fatais gracejos, mandou parar a
cadeira. Quedou-se longo tempo absorvida na contemplação do salgueiral; depois
enxugou duas lágrimas. Que lágrimas, ó leitor!... Os filhos perguntaram-lhe
porque chorava; e ela, estrangulada pelos soluços, contorcia-se, pedindo-lhes
que a tirassem dali, que sentia já o frio da morte.
Levaram-na apressadamente para o quartel numa das casas situadas no
local chamado o Médico. Ao nascer do Sol do seguinte dia dobravam a finados os
sinos de São João das Caldas. A fidalga de Athey expirara nos braços dos seus
dois filhos.
Perguntei ao capelão desta senhora se ainda era vivo o Abade de Santa
Eulália, muito afeiçoado à senhora falecida.
— Não, senhor. Esse santo morreu há três anos: a paixão da fidalga foi
tamanha que caiu na cama; e, quando se quis erguer, estava lesa. Os meninos
ainda choram por ele.
***
CONCLUSÃO
Das sete pessoas que, em junho de 1851, estiveram no sinceiral do
Vizela, vive somente uma, que sou eu.
O conselheiro José de Almeida expirou, no Inverno passado, na casa de
saúde do médico Ferreira, do Porto.
Na derradeira vasca do longo paroxismo, circunvagou os olhos baços à
volta do seu leito. Era irmão, era esposo e era pai. Não viu a irmã, nem a
esposa, nem o filho. Finara-se no desamparo e desamor dos indigentes a quem a
caridade dos hospitais empresta um catre ainda quente de outro cadáver. A sua
existência tinha sido um continuado festim: o que houve formidavelmente sério
na sua vida foi a morte. Morrem assim os que não radicaram, em anos vigorosos,
a santa amizade no coração da família.
José de Almeida não podia ter uma desvelada amiga, porque, nos seus anos
de gentilíssima juventude, espezinhara as mulheres que o adoravam com aquela
cegueira misteriosa das paixões absurdas; e, já na sazão glacial da vida,
esposara uma que o acalcanhou com o desprezo dele e da sua própria infâmia,
quando lhe viu a epiderme arrugada e o bigode branco.
A sociedade recebera-o e bajulara-o quando ódios e invejas lhe denegriam
o nome, aureolado de aventuras amorosas. A beira do seu leito de enfermidade
esquálida e do seu ataúde soterrado na vala comum eram seis os restantes dos
seus centenares de amigos.
A noite era de outubro. O nordeste assobiava nas gradarias dos túmulos e
ramalhava os ciprestes gotejantes do zimbro da tarde.
Nos camarotes tépidos do teatro lírico falava-se do defunto; e algumas
senhoras idosas, refluindo vinte anos na corrente da sua vida remansosa,
olhavam para a cadeira onde então José de Almeida se assentava. E algumas
dessas, voltando o rosto, escondiam as lágrimas rebeldes, para não serem vistas
dos maridos e das filhas.
E perdoaram-lhe.
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