Galé da dor
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O Maurício,
um belo rapaz, fino, inteligente, elegante, estava agora perdido para sempre.
Aparecera-lhe inopinadamente a “moléstia
maldita”, a cuja
lembrança tanta vez a sua alma gemera
e gelara, porque sentia rolar no seu sangue aquele vírus horrível, que desde os seus antepassados — havia um século decepava cruelmente os melhores varões da família.
Muito rubro,
com todos os germens daquele “mal” hereditário,
tinha um grande cuidado consigo; mas nesse dia de sol escaldante, em que uma
viva combustão estival pairava nas camadas aéreas, entrara da rua fatigado e
metera-se num banho frio.
Tigrou-se-lhe
a pele de roxo, engrossaram-se-lhe os tecidos. O rosto, maculado,
ingurgitou-se, tomando um aspecto duro, túrgido. As orelhas encorparam-se
prodigiosamente, e o nariz, violáceo, intumesceu de maneira brutal, dilatando
as narinas. As conchas das pálpebras espessaram-se, reviraram-se, numa tumidez
enorme, conservando os olhos uma umidade mucosa, pelados de sobrancelhas. A
boca tumefacta contorcera-se em tromba, de onde manava uma saliva chorosa,
torpe, pútrida. A pele gretara-se, dessorando pus.
Tornara-se
medonho, repelente; sentia vergonha de si próprio; não aparecia a ninguém. Só
furtivamente, de um modo tímido, nos dias alegres, a cabeça envolta num plaid, deixando ver apenas os olhos sem
cílios e debruados de vermelho, chegava à janela de um torreão da casa que
deitava para o mar.
Era às vezes
pela tarde. Seguia, então, horas e horas, as velas cruzando a larga superfície
verde. Contemplava o casco dormente dos navios ancorados, o alto perfil das
mastreações, as montanhas do continente, desenhando-se saudosamente sobre a
tela esmaiada do firmamento, os belos ocasos de estio, acesos num alastramento
de flamboyants em flor...
E
enclausurado nessa vida de túmulo, contemplando a natureza como quem já não
pertence ao mundo, abalado por uma plangência sem nome, abandonava a janela,
nervoso, trêmulo, soluçando. A nostalgia enterrava-lhe no coração os seus
bisturis.
E nesses
instantes amargos, a imagem rútila da Amada, evocada intensamente pela
imaginação, aparecia-lhe nimbada de luz, por uma aberta de nuvens, no céu
sereno de seu espírito, como uma Nossa Senhora que acudisse piedosamente à
súplica fervorosa de um místico, por entre os murmúrios de uma oração.
Amava, com
todas as veemências febris da paixão com todo o ardor tropical da sua alma, de
vinte anos, a uma virgem ideal, branca como uma estátua de mármore, pura como
as estrelas, olhos azuis e castos como os miosótis, luminosos e lindos como as
nossas manhãs. Era uma menina angelical, que fora a companheira querida de sua
irmã, nos bons tempos do colégio, que costumava conversar com ele, outrora, nos
dias felizes. E a não via, já lá iam dois anos. Que dor, que imensa saudade,
saber que ela ali estava, defronte, naquele mesmo bairro pitoresco de litoral
florido, e nem ao menos a poder contemplar um instante, temendo ser visto!...
Vinham-lhe,
então, desesperações formidáveis, blasfêmias, gritos de desgraçado contra Deus,
irritações de ateu, e, após tudo isso, um certo temor religioso, um remorso
aflitivo, uma ideia muito viva da Providência, que fazia o seu pobre coração
torturado cair de repente em contrita adoração, murmurando: “Eu creio em ti, ó Deus!...”
E quedava-se
demoradamente numa imobilidade de magnetizado, enterrado numa cadeira de
braços, perdido num cismar profundo, o rosto tombado sobre a mão, num
arrepanhamento de feições que lhe torcia a boca, tornando-o horrível, com o
olhar fisgado no chão, sem movimento, inerte. Permanecia assim até alta noite,
até a madrugada, em insônias esmagadoras. E todos os dias a mesma vida, vazia, deserta,
negra, tumular, até que caísse por fim na augusta pacificação do Nirvana...
Mas à
maneira que a moléstia avançava, implacável, sentia crescer, deitar mais fundas
raízes no seu peito, aquele amor indomável, desalentante e descorrespondido
agora, que nunca o vencera e torturara tanto.
Um sábado,
quando as sugestões do desespero e da dúvida, como um bando de lavras
estranhas, surgiam-lhe no cérebro, a devorar-lhe os filões do discernimento — ruídos espalhafatosos de carros que se aproximavam,
sublevando a costumada quietude do bairro e fazendo estremecer os prédios,
trouxeram lhe de repente ao espírito uma lembrança terrível dela, da radiante
criatura que o fazia viver ainda e por quem e para quem era perdido, perdido...
Então,
arrastado por um pressentimento extraordinário, atirou-se audazmente à janela
ante os olhares espantados de todos, e, aí, aparvalhado, trêmulo, estrangulado
quase por um aperto de dor na garganta, viu-a passar, num cupê, ao lado de um
belo rapaz — magnífica, a grinalda de flores de
laranjeira cingindo-lhe a cabeça de virgem, o longo véu de tule
caindo-lhe pelas costas, sobre as nuas espáduas brunidas, num tecido tênue de
bruma.
Como um
animal apunhalado de repente, em pleno coração, o Maurício teve um grito
sinistro. Depois retirou-se mudo, tonto, tresvairado, indo cair de bruços sobre
a cama, numa dor onipotente e sobre-humana, num traspassamento de mágoas
supremas e infinitas!...
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