Fulano
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Venha o leitor comigo assistir à abertura do
testamento do meu amigo Fulano Beltrão. Conheceu-o? Era um homem de cerca de
sessenta anos. Morreu ontem, dois de janeiro de 1884, às onze horas e trinta
minutos da noite. Não imagina a força de ânimo que mostrou em toda a moléstia.
Caiu na véspera de finados, e a princípio supúnhamos que não fosse nada; mas a
doença persistiu, e ao fim de dois meses e poucos dias a morte o levou.
Eu confesso-lhe que estou curioso de ouvir o
testamento. Há de conter por força algumas determinações de interesse geral e
honrosas para ele. Antes de 1863 não seria assim, porque até então era um homem
muito metido consigo, reservado, morando no caminho do Jardim Botânico, para
onde ia de ônibus ou de mula. Tinha a mulher e o filho vivos, a filha solteira,
com treze anos. Foi nesse ano que ele começou a ocupar-se com outras coisas,
além da família, revelando um espírito universal e generoso. Nada posso
afirmar-lhe sobre a causa disto. Creio que foi uma apologia de amigo por
ocasião dele fazer quarenta anos. Fulano Beltrão leu no Jornal do Comércio, no dia cinco de março de 1864, um artigo
anônimo em que se lhe diziam coisas belas e exatas: — bom pai, bom esposo,
amigo e pontual, cidadão digno, alma levantada e pura. Que se lhe fizesse
justiça, era muito; mas anonimamente, era raro.
— Você verá, disse Fulano Beltrão à mulher,
você verá que isto é do Xavier ou do Castro; logo rasgaremos o capote.
Castro e Xavier eram dois habituados da casa,
parceiros constantes do voltarete e velhos amigos do meu amigo. Costumavam
dizer coisas amáveis, no dia cinco de março, mas era ao jantar, na intimidade
da família, entre quatro paredes; impressos, era a primeira vez que ele se
benzia com elogios. Pode ser que me engane; mas estou que o espetáculo da
justiça, a prova material de que as boas qualidades e as boas ações não morrem
no escuro, foi o que animou o meu amigo a dispersar-se, a aparecer, a
divulgar-se, a dar à coletividade humana um pouco das virtudes com que nasceu.
Considerou que milhares de pessoas estariam lendo o artigo, à mesma hora em que
o lia também; imaginou que o comentavam, que interrogavam, que confirmavam,
ouviu mesmo, por um fenômeno de alucinação que a ciência há de explicar, e que
não é raro, ouviu distintamente algumas vozes do público. Ouviu que lhe
chamavam homem de bem, cavalheiro distinto, amigo dos amigos, laborioso,
honesto, todos os qualificativos que ele vira empregados em outros, e que na
vida de bicho do mato em que ia, nunca presumiu que lhe fossem —
tipograficamente — aplicados.
— A imprensa é uma grande invenção, disse ele
à mulher.
Foi ela, D. Maria Antônia, quem rasgou o
capote; o artigo era do Xavier. Declarou este que só em atenção à dona da casa
confessava a autoria; e acrescentou que a manifestação não saíra completa,
porque a ideia dele era que o artigo fosse dado em todos os jornais, não o
tendo feito por havê-lo acabado às sete horas da noite. Não houve tempo de
tirar cópias. Fulano Beltrão emendou essa falta, se falta se lhe podia chamar,
mandando transcrever o artigo no Diário
do Rio e no Correio Mercantil.
Quando mesmo, porém, este fato não desse
causa à mudança de vida do nosso amigo, fica uma coisa de pé, a saber, que
daquele ano em diante, e propriamente do mês de março, é que ele começou a
aparecer mais. Era até então um casmurro, que não ia às assembleias das
companhias, não votava nas eleições políticas, não frequentava teatros, nada,
absolutamente nada. Já naquele mês de março, a vinte e dois ou vinte e três,
presenteou a Santa Casa de Misericórdia com um bilhete da grande loteria de
Espanha, e recebeu uma honrosa carta do provedor, agradecendo em nome dos
pobres. Consultou a mulher e os amigos, se devia publicar a carta ou guardá-la,
parecendo-lhe que não a publicar era uma desatenção. Com efeito, a carta foi
dada a vinte e seis de março, em todas as folhas, fazendo uma delas comentários
desenvolvidos acerca da piedade do doador. Das pessoas que leram esta notícia,
muitas naturalmente ainda se lembravam do artigo do Xavier, e ligaram as duas
ocorrências: "Fulano Beltrão é aquele mesmo que, etc.", primeiro
alicerce da reputação de um homem.
É tarde, temos de ir ouvir o testamento, não
posso estar a contar-lhe tudo. Digo-lhe sumariamente que as injustiças da rua
começaram a ter nele um vingador ativo e discursivo; que as misérias,
principalmente as misérias dramáticas, filhas de um incêndio ou inundação,
acharam no meu amigo a iniciativa dos socorros que, em tais casos, devem ser
prontos e públicos. Ninguém como ele para um desses movimentos. Assim também
com as alforrias de escravos. Antes da lei de 28 de setembro de 1871, era muito
comum aparecerem na Praça do Comércio crianças escravas, para cuja liberdade se
pedia o favor dos negociantes. Fulano Beltrão iniciava três quartas partes das
subscrições, com tal êxito, que em poucos minutos ficava o preço coberto.
A justiça que se lhe fazia, animava-o, e até
lhe trazia lembranças que, sem ela, é possível que nunca lhe tivessem acudido.
Não falo do baile que ele deu para celebrar a vitória de Riachuelo, porque era
um baile planeado antes de chegar a notícia da batalha, e ele não fez mais do
que atribuir-lhe um motivo mais alto do que a simples recreação da família,
meter o retrato do almirante Barroso no meio de um troféu de armas navais e
bandeiras no salão de honra, em frente ao retrato do imperador, e fazer, à
ceia, alguns brindes patrióticos, como tudo consta dos jornais de 1865.
Mas aqui vai, por exemplo, um caso bem
característico da influência que a justiça dos outros pode ter no nosso
procedimento. Fulano Beltrão vinha um dia do Tesouro, aonde tinha ido tratar de
umas décimas. Ao passar pela igreja da Lampadosa, lembrou-se que fora ali
batizado; e nenhum homem tem uma recordação destas, sem remontar o curso dos
anos e dos acontecimentos, deitar-se outra vez no colo materno, rir e brincar,
como nunca mais se ri nem brinca. Fulano Beltrão não escapou a este efeito;
atravessou o adro, entrou na igreja, tão singela, tão modesta, e para ele tão
rica e linda. Ao sair, tinha uma resolução feita, que pôs por obra dentro de
poucos dias: mandou de presente à Lampadosa um soberbo castiçal de prata, com
duas datas, além do nome do doador — a data da doação e a do batizado. Todos os
jornais deram esta notícia, e até a receberam em duplicata, porque a
administração da igreja entendeu (com muita razão) que também lhe cumpria
divulgá-la aos quatro ventos.
No fim de três anos, ou menos, entrara o meu
amigo nas cogitações públicas; o nome dele era lembrado, mesmo quando nenhum
sucesso recente vinha sugeri-lo, e não só lembrado como adjetivado. Já se lhe
notava a ausência em alguns lugares. Já o iam buscar para outros. D. Maria
Antônia via assim entrar-lhe no Éden a serpente bíblica, não para tentá-la, mas
para tentar a Adão. Com efeito, o marido ia a tantas partes, cuidava de tantas
coisas, mostrava-se tanto na Rua do Ouvidor, à porta do Bernardo, que afrouxou
a convivência antiga da casa. D. Maria Antônia disse-lho. Ele concordou que era
assim, mas demonstrou-lhe que não podia ser de outro modo, e, em todo caso, se
mudara de costumes, não mudara de sentimentos. Tinha obrigações morais com a
sociedade; ninguém se pertence exclusivamente; daí um pouco de dispersão dos
seus cuidados. A verdade é que tinham vivido demasiadamente reclusos; não era
justo nem bonito. Não era mesmo conveniente; a filha caminhava para a idade do
matrimônio, e casa fechada cria morrinha de convento; por exemplo, um carro,
por que é que não teriam um carro? D. Maria Antônia sentiu um arrepio de
prazer, mas curto; protestou logo, depois de um minuto de reflexão.
— Não; carro para quê? Não; deixemo-nos de
carro.
— Já está comprado, mentiu o marido.
Mas aqui chegamos ao juízo da provedoria. Não
veio ainda ninguém; esperemos à porta. Tem pressa? São vinte minutos no máximo.
Pois é verdade, comprou uma linda vitória; e, para quem, só por modéstia, andou
tantos anos às costas de mula ou apertado num ônibus, não era fácil
acostumar-se logo ao novo veículo. A isso atribuo eu as atitudes salientes e
inclinadas com que ele andava, nas primeiras semanas, os olhos que estendia a
um lado e outro, à maneira de pessoa que procura alguém ou uma casa. Afinal
acostumou-se; passou a usar das atitudes reclinadas, embora sem um certo
sentimento de indiferença ou despreocupação, que a mulher e a filha tinham
muito bem, talvez por serem mulheres. Elas, aliás, não gostavam de sair de
carro; mas ele teimava tanto que saíssem, que fossem a toda a parte, e até a
parte nenhuma, que não tinham remédio senão obedecer-lhe; e, na rua, era
sabido, mal vinha ao longe a ponta do vestido de duas senhoras, e na almofada
um certo cocheiro, toda a gente dizia logo: — aí vem a família de Fulano
Beltrão. E isto mesmo, sem que ele talvez o pensasse, tornava-o mais conhecido.
No ano de 1868 deu entrada na política. Sei
do ano porque coincidiu com a queda dos liberais e a subida dos conservadores.
Foi em março ou abril de 1868 que ele declarou aderir à situação, não à socapa,
mas estrepitosamente. Este foi, talvez, o ponto mais fraco da vida do meu
amigo. Não tinha ideias políticas; quando muito, dispunha de um desses
temperamentos que substituem as ideias, e fazem crer que um homem pensa, quando
simplesmente transpira. Cedeu, porém, a uma alucinação de momento. Viu-se na
Câmara vibrando um aparte, ou inclinado sobre a balaustrada, em conversa com o
presidente do Conselho, que sorria para ele, numa intimidade grave de governo.
E aí é que a galeria, na exata acepção do termo, tinha de o contemplar. Fez
tudo o que pôde para entrar na Câmara; a meio caminho caiu a situação. Voltando
do atordoamento, lembrou-se de afirmar ao Itaboraí o contrário do que dissera
ao Zacarias, ou antes a mesma coisa; mas perdeu a eleição, e deu de mão à
política. Muito mais acertado andou, metendo-se na questão da maçonaria com os
prelados. Deixara-se estar quedo, a princípio; por um lado, era maçom; por
outro, queria respeitar os sentimentos religiosos da mulher. Mas o conflito
tomou tais proporções que ele não podia ficar calado; entrou nele com o ardor,
a expansão, a publicidade que metia em tudo; celebrou reuniões em que falou
muito da liberdade de consciência e do direito que assistia ao maçom de enfiar
uma opa; assinou protestos, representações, felicitações, abriu a bolsa e o
coração, escancaradamente.
Morreu-lhe a mulher em 1878. Ela pediu-lhe que
a enterrasse sem aparato, e ele assim o fez, porque a amava deveras e tinha a
sua última vontade como um decreto do céu. Já então perdera o filho; e a filha,
casada, achava-se na Europa. O meu amigo dividiu a dor com o público; e, se
enterrou a mulher sem aparato, não deixou de lhe mandar esculpir na Itália um
magnífico mausoléu, que esta cidade admirou exposto, na Rua do Ouvidor, durante
perto de um mês. A filha ainda veio assistir à inauguração. Deixei de os ver
uns quatro anos. Ultimamente surgiu a doença, que no fim de pouco mais de dois
meses o levou desta para a melhor. Note que, até começar a agonia, nunca perdeu
a razão nem a força d'alma. Conversava com as visitas, mandava-as relacionar,
não esquecia mesmo noticiar às que chegavam, as que acabavam de sair; coisa
inútil, porque uma folha amiga publicava-as todas. Na manhã do dia em que
morreu ainda ouviu ler os jornais, e num deles uma pequena comunicação
relativamente à sua moléstia, o que de algum modo pareceu reanimá-lo. Mas para
a tarde enfraqueceu um pouco; à noite expirou.
Vejo que está aborrecido. Realmente
demoram-se... Espere; creio que são eles. São; entremos. Cá está o nosso
magistrado, que começa a ler o testamento. Está ouvindo? Não era preciso esta
minuciosa genealogia, excedente das práticas tabelioas; mas isto mesmo de
contar a família desde o quarto avô prova o espírito exato e paciente do meu
amigo. Não esquecia nada. O cerimonial do saimento é longo e complicado, mas
bonito. Começa agora a lista dos legados. São todos pios; alguns industriais.
Vá vendo a alma do meu amigo. Trinta contos...
Trinta contos para quê? Para servir de começo
a uma subscrição pública destinada a erigir uma estátua de Pedro Álvares
Cabral. "Cabral, diz ali o testamento, não pode ser olvidado dos
brasileiros, foi o precursor do nosso império." Recomenda que a estátua
seja de bronze, com quatro medalhões no pedestal, a saber, o retrato do bispo
Coutinho, presidente da Constituinte, o de Gonzaga, chefe da conjuração
mineira, e o de dois cidadãos da presente geração "notáveis por seu
patriotismo e liberalidade", à escolha da comissão, que ele mesmo nomeou
para levar a empresa a cabo.
Que ela se realize, não sei; falta-nos a
perseverança do fundador da verba. Dado, porém, que a comissão se desempenhe da
tarefa, e que este sol americano ainda veja erguer-se a estátua de Cabral, é da
nossa honra que ele contemple num dos medalhões o retrato do meu finado amigo.
Não lhe parece? Bem, o magistrado acabou, vamos embora.
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