Frei Simão
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
CAPÍTULO
1
Frei Simão era um frade da ordem dos
Beneditinos. Tinha, quando morreu, cinquenta anos em aparência, mas na
realidade trinta e oito. A causa desta velhice prematura derivava da que o
levou ao claustro na idade de trinta anos, e, tanto quanto se pode saber por
uns fragmentos de memórias que ele deixou, a causa era justa.
Era frei Simão de caráter taciturno e
desconfiado. Passava dias inteiros na sua cela, donde apenas saía na hora do
refeitório e dos ofícios divinos. Não contava amizade alguma no convento,
porque não era possível entreter com ele os preliminares que fundam e
consolidam as afeições.
Em um convento, onde a comunhão das almas
deve ser mais pronta e mais profunda, frei Simão parecia fugir à regra geral.
Um dos noviços pôs-lhe alcunha de urso,
que lhe ficou, mas só entre os noviços, bem entendido. Os frades professos,
esses, apesar do desgosto que o gênio solitário de frei Simão lhes inspirava,
sentiam por ele certo respeito e veneração.
Um dia anuncia-se que frei Simão adoecera
gravemente. Chamaram-se os socorros e prestaram ao enfermo todos os cuidados
necessários. A moléstia era mortal; depois de cinco dias frei Simão expirou.
Durante estes cinco dias de moléstia, a cela
de frei Simão esteve cheia de frades. Frei Simão não disse uma palavra durante
esses cinco dias; só no último, quando se aproximava o minuto fatal, sentou-se
no leito, fez chamar para mais perto o Abade, e disse-lhe ao ouvido com voz
sufocada e em tom estranho:
— Morro odiando a humanidade!
O Abade recuou até a parede ao ouvir estas
palavras, e no tom em que foram ditas. Quanto a frei Simão, caiu sobre o
travesseiro e passou à eternidade.
Depois de feitas ao irmão finado as honras
que se lhe deviam, a comunidade perguntou ao seu chefe que palavras ouvira tão
sinistras que o assustaram. O Abade referiu-as, persignando-se. Mas os frades
não viram nessas palavras senão um segredo do passado, sem dúvida importante,
mas não tal que pudesse lançar o terror no espírito do Abade. Este
explicou-lhes a ideia que tivera quando ouviu as palavras de frei Simão, no tom
em que foram ditas, e acompanhadas do olhar com que o fulminou: acreditara que
frei Simão estivesse doido; mais ainda, que tivesse entrado já doido para a
ordem. Os hábitos da solidão e taciturnidade a que se votara o frade pareciam
sintomas de uma alienação mental de caráter brando e pacífico; mas durante oito
anos parecia impossível aos frades que frei Simão não tivesse um dia revelado
de modo positivo a sua loucura; objetaram isso ao Abade; mas este persistia na
sua crença.
Entretanto procedeu-se ao inventário dos
objetos que pertenciam ao finado, e entre eles achou-se um rolo de papéis
convenientemente enlaçados, com este rótulo:
Memórias
que há de escrever frei Simão de Santa Águeda, frade beneditino.
Este rolo de papéis foi um grande achado para
a comunidade curiosa. Iam finalmente penetrar alguma coisa no véu misterioso
que envolvia o passado de frei Simão, e talvez confirmar as suspeitas do Abade.
O rolo foi aberto e lido para todos.
Eram, pela maior parte, fragmentos
incompletos, apontamentos truncados e notas insuficientes; mas de tudo junto
pôde-se colher que realmente frei Simão estivera louco durante certo tempo.
O autor desta narrativa despreza aquela parte
das Memórias que não tiver absolutamente importância; mas procura aproveitar a
que for menos inútil ou menos obscura.
CAPÍTULO
2
As notas de frei Simão nada dizem do lugar do
seu nascimento nem do nome de seus pais. O que se pôde saber dos seus
princípios é que, tendo concluído os estudos preparatórios, não pôde seguir a
carreira das letras, como desejava, e foi obrigado a entrar como guarda-livros
na casa comercial de seu pai.
Morava então em casa de seu pai uma prima de
Simão, órfã de pai e mãe, que haviam por morte deixado ao pai de Simão o
cuidado de a educarem e manterem. Parece que os cabedais deste deram para isto.
Quanto ao pai da prima órfã, tendo sido rico, perdera tudo ao jogo e nos azares
do comércio, ficando reduzido à última miséria.
A órfã chamava-se Helena; era bela, meiga e
extremamente boa. Simão, que se educara com ela, e juntamente vivia debaixo do
mesmo teto, não pôde resistir às elevadas qualidades e à beleza de sua prima.
Amaram-se. Em seus sonhos de futuro contavam ambos o casamento, coisa que
parece mais natural do mundo para corações amantes.
Não tardou muito que os pais de Simão
descobrissem o amor dos dois. Ora é preciso dizer, apesar de não haver
declaração formal disto nos apontamentos do frade, é preciso dizer que os
referidos pais eram de um egoísmo descomunal. Davam de boa vontade o pão da
subsistência a Helena; mas lá casar o filho com a pobre órfã é que não podiam
consentir. Tinham posto a mira em uma herdeira rica, e dispunham de si para si
que o rapaz se casaria com ela.
Uma tarde, como estivesse o rapaz a adiantar
a escrituração do livro mestre, entrou no escritório o pai com ar grave e
risonho ao mesmo tempo, e disse ao filho que largasse o trabalho e o ouvisse. O
rapaz obedeceu. O pai falou assim:
— Vais partir para a província de ***. Preciso
mandar umas cartas ao meu correspondente Amaral, e como sejam elas de grande
importância, não quero confiá-las ao nosso desleixado correio. Queres ir no
vapor ou preferes o nosso brigue?
Esta pergunta era feita com grande tino.
Obrigado a responder-lhe, o velho comerciante
não dera lugar que seu filho apresentasse objeções.
O rapaz enfiou, abaixou os olhos e respondeu:
— Vou onde meu pai quiser.
O pai agradeceu mentalmente a submissão do
filho, que lhe poupava o dinheiro da passagem no vapor, e foi muito contente
dar parte à mulher de que o rapaz não fizera objeção alguma.
Nessa noite os dois amantes tiveram ocasião
de encontrar-se sós na sala de jantar.
Simão contou a Helena o que se passara.
Choraram ambos algumas lágrimas furtivas, e ficaram na esperança de que a
viagem fosse de um mês, quando muito.
À mesa do chá, o pai de Simão conversou sobre
a viagem do rapaz, que devia ser de poucos dias. Isto reanimou as esperanças
dos dois amantes. O resto da noite passou-se em conselhos da parte do velho ao
filho sobre a maneira de portar-se na casa do correspondente. Às dez horas,
como de costume, todos se recolheram aos aposentos.
Os dias passaram-se depressa. Finalmente
raiou aquele em que devia partir o brigue. Helena saiu de seu quarto com os
olhos vermelhos de chorar. Interrogada bruscamente pela tia, disse que era uma
inflamação adquirida pelo muito que lera na noite anterior. A tia
prescreveu-lhe abstenção da leitura e banhos de água de malvas.
Quanto ao tio, tendo chamado Simão,
entregou-lhe uma carta para o correspondente, e abraçou-o. A mala e um criado
estavam prontos. A despedida foi triste. Os dois pais sempre choraram alguma
coisa, a rapariga muito.
Quanto a Simão, levava os olhos secos e
ardentes. Era refratário às lágrimas, por isso mesmo padecia mais.
O brigue partiu. Simão, enquanto pôde ver
terra, não se retirou de cima; quando finalmente se fecharam de todo as paredes
do cárcere que anda, na frase pitoresca de Ribeyrolles, Simão desceu ao seu
camarote, triste e com o coração apertado. Havia como um pressentimento que lhe
dizia interiormente ser impossível tornar a ver sua prima. Parecia que ia para
um degredo.
Chegando ao lugar do seu destino, procurou
Simão o correspondente de seu pai e entregou-lhe a carta. O Sr. Amaral leu a
carta, fitou o rapaz e, depois de algum silêncio, disse-lhe, volvendo a carta:
— Bem, agora é preciso esperar que eu cumpra
esta ordem de seu pai. Entretanto venha morar para a minha casa.
— Quando poderei voltar? perguntou Simão.
— Em poucos dias, salvo se as coisas se
complicarem.
Este salvo,
posto na boca de Amaral como incidente, era a oração principal. A carta do pai
de Simão versava assim:
Meu caro Amaral,
Motivos ponderosos me obrigam a mandar meu
filho desta cidade. Retenha-o por lá como puder. O pretexto da viagem é ter eu
necessidade de ultimar alguns negócios com você, o que dirá ao pequeno,
fazendo-lhe sempre crer que a demora é pouca ou nenhuma. Você, que teve na sua
adolescência a triste ideia de engendrar romances, vá inventando circunstâncias
e ocorrências imprevistas, de modo que o rapaz não me torne cá antes de segunda
ordem. Sou, como sempre, etc.
CAPÍTULO
3
Passaram-se dias e dias, e nada de chegar o
momento de voltar à casa paterna. O ex-romancista era na verdade fértil, e não
se cansava de inventar pretextos que deixavam convencido o rapaz.
Entretanto, como o espírito dos amantes não é
menos engenhoso que o dos romancistas, Simão e Helena acharam meio de se
escreverem, e deste modo podiam consolar-se da ausência, com presença das letras
e do papel. Bem diz Heloísa que a arte de escrever foi inventada por alguma
amante separada do seu amante. Nestas cartas juravam-se os dois sua eterna
fidelidade.
No fim de dois meses de espera baldada e de
ativa correspondência, a tia de Helena surpreendeu uma carta de Simão. Era a
vigésima, creio eu. Houve grande temporal em casa. O tio, que estava no
escritório, saiu precipitadamente e tomou conhecimento do negócio. O resultado
foi proscrever de casa tinta, penas e papel, e instituir vigilância rigorosa
sobre a infeliz rapariga.
Começaram pois a escassear as cartas ao pobre
deportado. Inquiriu a causa disto em cartas choradas e compridas; mas como o
rigor fiscal da casa de seu pai adquiria proporções descomunais, acontecia que
todas as cartas de Simão iam parar às mãos do velho, que, depois de apreciar o
estilo amoroso de seu filho, fazia queimar as ardentes epístolas.
Passaram-se dias e meses. Carta de Helena,
nenhuma. O correspondente ia esgotando a veia inventadora, e já não sabia como
reter finalmente o rapaz.
Chega uma carta a Simão. Era letra do pai. Só
diferençava das outras que recebia do velho em ser esta mais longa, muito mais
longa. O rapaz abriu a carta, e leu trêmulo e pálido. Contava nesta carta o
honrado comerciante que a Helena, a boa rapariga que ele destinava a ser sua
filha casando-se com Simão, a boa Helena tinha morrido. O velho copiara algum
dos últimos necrológios que vira nos jornais, e ajuntara algumas consolações de
casa. A última consolação foi dizer-lhe que embarcasse e fosse ter com ele.
O período final da carta dizia:
Assim como assim, não se realizam os meus
negócios; não te pude casar com Helena, visto que Deus a levou. Mas volta,
filho, vem; poderás consolar-te casando com outra, a filha do conselheiro ***.
Está moça feita e é um bom partido. Não te desalentes; lembra-te de mim.
O pai de Simão não conhecia bem o amor do
filho, nem era grande águia para avaliá-lo, ainda que o conhecesse. Dores tais
não se consolam com uma carta nem com um casamento. Era melhor mandá-lo chamar,
e depois preparar-lhe a notícia; mas dada assim friamente em uma carta, era
expor o rapaz a uma morte certa.
Ficou Simão vivo em corpo e morto moralmente,
tão morto que por sua própria ideia foi dali procurar uma sepultura. Era melhor
dar aqui alguns dos papéis escritos por Simão relativamente ao que sofreu
depois da carta; mas há muitas falhas, e eu não quero corrigir a exposição
ingênua e sincera do frade.
A sepultura que Simão escolheu foi um
convento. Respondeu ao pai que agradecia a filha do conselheiro, mas que
daquele dia em diante pertencia ao serviço de Deus.
O pai ficou maravilhado. Nunca suspeitou que
o filho pudesse vir a ter semelhante resolução. Escreveu às pressas para ver se
o desviava da ideia; mas não pôde conseguir.
Quanto ao correspondente, para quem tudo se
embrulhava cada vez mais, deixou o rapaz seguir para o claustro, disposto a não
figurar em um negócio do qual nada realmente sabia.
CAPÍTULO
4
Frei Simão de Santa Águeda foi obrigado a ir
à província natal em missão religiosa, tempos depois dos fatos que acabo de
narrar.
Preparou-se e embarcou.
A missão não era na capital, mas no interior.
Entrando na capital, pareceu-lhe dever ir visitar seus pais. Estavam mudados
física e moralmente. Era com certeza a dor e o remorso de terem precipitado seu
filho à resolução que tomou. Tinham vendido a casa comercial e viviam de suas
rendas.
Receberam o filho com alvoroço e verdadeiro
amor. Depois das lágrimas e das consolações, vieram ao fim da viagem de Simão.
— A que vens tu, meu filho?
— Venho cumprir uma missão do sacerdócio que
abracei. Venho pregar, para que o rebanho do Senhor não se arrede nunca do bom
caminho.
— Aqui na capital?
— Não, no interior. Começo pela vila de ***.
Os dois velhos estremeceram; mas Simão nada
viu. No dia seguinte partiu Simão, não sem algumas instâncias de seus pais para
que ficasse. Notaram eles que seu filho nem de leve tocara em Helena. Também
eles não quiseram magoá-lo falando em tal assunto.
Daí a dias, na vila de que falara frei Simão,
era um alvoroço para ouvir as prédicas do missionário.
A velha igreja do lugar estava atopetada de
povo.
À hora anunciada, frei Simão subiu ao púlpito
e começou o discurso religioso. Metade do povo saiu aborrecido no meio do
sermão. A razão era simples. Avezado à pintura viva dos caldeirões de Pedro
Botelho e outros pedacinhos de ouro da maioria dos pregadores, o povo não podia
ouvir com prazer a linguagem simples, branda, persuasiva, a que serviam de
modelo as conferências do fundador da nossa religião.
O pregador estava a terminar, quando entrou
apressadamente na igreja um par, marido e mulher: ele, honrado lavrador, meio
remediado com o sítio que possuía e a boa vontade de trabalhar; ela, senhora
estimada por suas virtudes, mas de uma melancolia invencível.
Depois de tomarem água benta, colocam-se
ambos em lugar donde pudessem ver facilmente o pregador.
Ouviu-se então um grito, e todos correram
para a recém-chegada, que acabava de desmaiar. Frei Simão teve de parar o seu
discurso, enquanto se punha termo ao incidente. Mas, por uma aberta que a turba
deixava, pôde ele ver o rosto da desmaiada.
Era Helena.
No manuscrito do frade há uma série de
reticências dispostas em oito linhas. Ele próprio não sabe o que se passou. Mas
o que se passou foi que, mal conhecera Helena, continuou o frade o discurso.
Era então outra coisa: era um discurso sem nexo, sem assunto, um verdadeiro
delírio. A consternação foi geral.
CAPÍTULO
5
O delírio de frei Simão durou alguns dias.
Graças aos cuidados, pôde melhorar, e pareceu a todos que estava bom, menos ao
médico, que queria continuar a cura. Mas o frade disse positivamente que se
retirava ao convento, e não houve forças humanas que o detivessem.
O leitor compreende naturalmente que o
casamento de Helena fora obrigado pelos tios.
A pobre senhora não resistiu à comoção. Dois
meses depois morreu, deixando inconsolável o marido, que a amava com veras.
Frei Simão, recolhido ao convento, tornou-se
mais solitário e taciturno. Restava-lhe ainda um pouco da alienação.
Já conhecemos o acontecimento de sua morte e
a impressão que ela causara ao Abade.
A cela de frei Simão de Santa Águeda esteve
muito tempo religiosamente fechada. Só se abriu, algum tempo depois, para dar
entrada a um velho secular, que por esmola alcançou do Abade acabar os seus
dias na convivência dos médicos da alma. Era o pai de Simão. A mãe tinha
morrido.
Foi crença, nos últimos anos de vida deste
velho, que ele não estava menos doido que frei Simão de Santa Águeda.
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