Flor do mar
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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A velha barca Bom Destino,
já na altura dos Abrolhos, vinha agora numa bolina cochada, na bordada de
terra, a forcejar contra o nordeste duro. Saíra do Desterro com excelente
viagem — tempo seco e claro, uma brisa favorável de sueste, o pano todo em
cima, voando alígera junto à costa, entre alvos bandos de alcíones, parecendo
ela própria uma alcíone, mas uma alcíone gigantesca e fantástica.
Eram começos de março.
Cessado o sueste ocasional, voltara a nordestia de fins de verão
que, como sempre no sul do Brasil, aumentava agora de intensidade e violência
aos primeiros prenúncios do outono a chegar, qual sucede invariavelmente aos
ventos gerais ao expirar de cada uma das suas fases periódicas.
Assim, na altura de Santos, ao calmar aquela brisa benéfica do
segundo quadrante, o nordeste rijíssimo envolvera a barca que, apesar de
bolineira de lei, não avançava quase para o norte. Dir-se-ia que, já abatida e
sem forças, obliterada a atividade singradora de outrora, se negava a
prosseguir na derrota: sentia-se velha, decerto, e desejosa de eterno descanso
em qualquer recanto remansoso de praia onde pudesse, sem mais lutas com as
tormentas e as ondas, desfazer-se e findar pouco a pouco, servindo apenas, como
todos os cascos abandonados ou náufragos, de pouso e miradouro passageiro às
brancas aves do Mar.
O Manoel Fontes, proprietário e capitão da barca, um hércules de
sessenta anos, parecendo entretanto ter apenas quarenta pelos músculos íntegros
e moços, a saúde ainda plena e poupada nessa idade, como em regra nos marujos,
principalmente mercantes, devido ao recolhimento, à sobriedade, às longas e
forçadas abstinências de tudo, ao isolamento constante e de claustro que a vida
de bordo impõe invariavelmente aos que nela andam, porque o navio não é senão
um claustro flutuante, — o Manoel Fontes já se sentia também fatigado do seu
constante e ininterrupto viajar, consumido nos últimos tempos, e mais naquela
viagem, pelo anseio de um definitivo repouso nalguma curva mansa de praia, para
ali acabar serenamente os seus dias. Mas a vida é um torvelinho que nos envolve
até a velhice, até mesmo a extrema velhice, até a morte, por fim. Além disso
havia as exigências sociais, havia que garantir a felicidade do lar, o próprio
pão e o dos filhos. E ele tinha uma filha, uma filha única e loucamente amada,
na qual via o coroamento incomparável da sua ancianidade, o paraíso da sua
triste vida de exilado de terra, passada no infinito deserto do mar... Por isso
ali ia ainda, jurando a si mesmo — o que decerto cumpriria com palavra de
marujo, que não volta atrás, como a de rei — jurando-a si mesmo que seria
aquela a última das suas viagens, feita ainda somente para “arredondar” a sua pequena
fortuna — o dote da filha — tão econômica e longamente acumulada sob contínuos
sacrifícios, perigos, aflições, nostalgias, saudades... Na venda do
carregamento de farinha que levava para Pernambuco, agora que a seca e a fome —
os tremendos flagelos dos sertões do norte do Brasil — elevava fabulosamente o
preço dessa mercadoria, na venda desse carregamento esperava tirar a soma
necessária para completar o pecúlio que lhe abrigaria a velhice de qualquer
infortúnio vindouro e faria a felicidade da filha, garantindo-lhe o futuro...
Encostado à balaustrada de ré e de quarto nesse instante, o Manoel
Fontes, como a barca ia bem na singradura a que andava, embora o dia começasse
a escurecer e a toldar-se ameaçando mau tempo, o que aliás vinha já do romper
d'alva, o Manoel Fontes conversava animadamente com os passageiros e a filha —
que o acompanhava sempre pelos mares — sobre os atrasos inesperados da viagem,
pois, devido à nordestia berrante, tinham levado quinze dias a vencer caminho
de Santos aos Abrolhos, quando haviam gasto unicamente dois do Desterro às
alturas daquele grande porto paulista, embora aquela primeira distância fosse
duas vezes maior que esta última, não havendo contudo entre ambas, na marcha
realizada pelo navio, a relatividade comum das coisas.
— Viagem melhor que a de um vapor, essa do Desterro ao paralelo de
Santos! dizia ele, a rir, com os belos dentes brancos a entreabrirem de leve os
lábios, rasgados num rosto inteiramente rapado, obeso e cor de lacre, como o de
um Abade anglo-saxônio. Mas o nordeste veio de “esfregar” o demônio! E aqui
estamos a consumir o tempo que devíamos levar de Santos ao Recife... Felizmente
o sudoeste não deve tardar para nos impelir, numa só amura, si porventura
aguentar, até a Ipojuca... Está mesmo a pintar, o raio! Mas que caia às
direitas, fazendo voar esta velha “carcassa”, que já não tem mais que dar...
Os passageiros riram também, ao gracejo final do capitão aludindo
à sua velha barca. Eram esses passageiros, nessa ocasião, uma meia dúzia
apenas, todos negociantes no Desterro ou no Recife, à exceção de um jovem de
vinte anos, filho de um velho militar catarinense, muito amigo do Fontes — o
marechal Guilherme Xavier de Souza. Esse jovem, que se chamava Artur, ia fazer
o seu último ano de direito na capital pernambucana e, desde que o navio
levantara ferros, dir-se-ia tomado de uma impressão passional pela filha do
capitão, a morena e linda Ruth, tão morena e tão linda, talvez, como a sua
remotíssima homônima bíblica, mas que, desde o seu nascimento, fazia quinze
anos, a bordo daquela barca, tão mimosa e galante era, que os extremosos pais,
bem assim a companha que andava então na barca, a haviam apelidado, num
encanto, com imenso acerto e meiguice, de Flor do Mar. E como tal todos a
ficaram conhecendo desde então, no Desterro e onde quer que a levava o pai, nas
suas constantes viagens.
Flor do Mar era filha única do capitão Manoel Fontes e a sua joia
querida, o enlevo maior dos seus afetos e da sua vida, principalmente depois
que tivera a desventura de perder a esposa, de um parto fora de tempo,
horroroso, ocorrido a bordo do lugre Sol, havia oito anos, numa sinistra noite
de ciclone, no mar das Antilhas, em viagem para Nova York. O Mar levara-lhe,
nesse dia maldito, metade do coração com aquela santa companheira de quarenta
anos, bem como o fruto dos seus amores, que nascera morto e que, não fora isso,
seria um tesouro a mais no seu lar, na sua alma, na sua longa existência de
marujo, tão cortada de trabalhos e perigos, e cuja suprema compensação e ventura
e glória consistiam e se concretizavam tão somente na delícia da família.
Mulher e filhinho, coitados! tinham ficado para sempre perdidos no seio
daquelas águas revoltas, amortalhados numa velha vela de bordo, que ele e Flor
do Mar — ainda tão pequenina e já órfã dos carinhos maternos, com sete anos
apenas! haviam tão longamente abraçado, beijado e coberto de lágrimas sem
fim... Desde então toda a sua mais alta esperança e ventura eram aquela filha,
aquela doce Flor do Mar, flor, sim, mas humana e preciosa, que o Oceano
dir-se-ia lhe jogara um dia, num momento de alegria indizível, como uma palma
de glória, a ele, lutador intemerato e amantíssimo das ondas, das ondas em cujo
arfante e espumoso colo de esmeraldas e pérolas se inebriara outrora de emoções
e de sonhos, dessas ondas a que se votara inteira e apaixonadamente de
menino...
Mas a barca, na sua bordada de terra, estava já quase em cima dos
Abrolhos, amarada apenas cinco milhas. O barômetro, que começara a baixar desde
manhã, baixava mais ainda. O tempo parava-se agora de carrascão, com o sudoeste
iminente. Nesse quadrante entrara já a fuzilar. A borrasca estava, pois, a
cair. Era preciso virar quanto antes na bordada de fora, na bordada do mar.
O Manoel Fontes então, de pé ao cata-vento, soltou a voz, que o
contramestre acusava de pronto, em cada uma de suas ordens:
— Preparar para virar! Olha a gente aos braços de gáveas, às
escotas, aos estais! Gajeiros e moços à riba! Arria, carrega, ferra sobres e
joanetes! Gáveas e gata em terceiros! Tudo a uma! Presto, presto, gente, que o
tempo está de carranca e vem aí de arrasar!...
Já o norte berrante calmara, desaparecera como por encanto. Mar e
céu estavam negros de tinta. Parecia noite, mas uma noite convulsa, dantesca.
Troavam já os trovões. Os fuzis multiplicavam-se por todo o horizonte, fazendo
no Espaço instantâneos e deslumbrantes ziguezagues de rubi.
Imediatamente os passageiros deixaram o tombadilho, recolhendo-se
à câmara. Entretanto Flor do Mar, como frequentemente sucedia, deixou-se ficar
sentada, como estava, à gaiuta, familiarizada, desde ao nascer, com aqueles
momentos de faina impetuosa, de lufa-lufa a bordo, familiarizada qual
verdadeiro marujo com os furores das vagas, com os contínuos perigos, com as
desfeitas tormentas. O pai, perdido de enlevos por ela, consentira desta vez,
como de muitas outras, permanecesse no tombadilho, mas sob condição de baixar
ao camarote, ao primeiro golpe de mar, ao primeiro pegão de vento que por acaso
envolvessem o navio...
Nisto, as últimas ordens do capitão ao timoneiro e à companha de
quarto estalaram a grandes brados, e a barca entrou na virada, na dificílima
virada por d’avante, com grande lentidão e formidáveis balanços. Mas o sudoeste
desabava, nesse mesmo instante, terrível e de arrancar tudo, num fragor de
cataclismo, com bátegas d’água diluviais, redobrando então de intensidade e
pavor os trovões e fuzis. E a manobra, apesar de bem mandada, foi apanhada em
mais de meia por esse tempo desfeito que, num turbilhão infernal de vagalhões
desencontrados e em rajadas irresistíveis, levou velas e vergas para as
profundas do “charco”.
Os brados e pragas, como sempre a bordo em tais momentos,
casavam-se medonhamente ao ribombar desolado e feroz da tormenta. Havia, em
toda a barca, uma confusão indescritível, tumultuosa, suprema. Ninguém se
entendia, em meio à fúria, à desordem, ao bramar dos elementos...
Súbito, então, a voz do timoneiro se ergueu dominando tudo,
enérgica e poderosa, mas repassada de aflição e plangência:
— Misericórdia! Nossa Senhora nos acuda, capitão! A retranca
carregou a menina, que lá vai borda fora, levada nos vagalhões!...
O Manoel Fontes, que ao cair do tufão correra a ajudar os braços
da gávea grande e volvia já prestamente à ré, ficou estarrecido por instantes
contra a enxárcia da gata. Mas fora um lapso apenas e, lançando pela alheta um
olhar rápido e desvairado aos vagalhões revoltos, altos como montanhas e
raivando espuma às lufadas doidas do vento, pôde ver, num relance supremo, o
lugar em que a filha caíra e se debatia ansiosamente. E, sem mais perda de
tempo, gritou, rijo, à companha:
— Volta, volta a tudo, gente! Leme todo a bombordo! Braceia
gáveas! Arreia amantilhos! Arreia! Lestos, malditos! Lestos, com mil
demônios!... Que desgraça, meu Deus. Valha-me a Senhora dos Navegantes! Uma
arroba de cera, si Flor do Mar for salva! Uma arroba de cera, minha Senhora dos
Navegantes!...
A barca obedecera pasmosamente a esta nova manobra, virando em
roda, como uma gaivota, como uma flecha, alagada de proa à popa pelos vagalhões
e, adriçada toda a estibordo, voava na coroa das ondas, parecendo também
ansiosa por chegar ao lugar do sinistro, como o angustiado e extremoso coração
do Manoel Fontes e dos seus bravos marinheiros.
Mas fora em vão, desgraçada e tristemente em vão, porque Flor do
Mar desaparecera já, para sempre, no seio torvo das vagas.
Ainda assim a barca atravessou como pôde e como lhe permitiram os
terríveis vagalhões, e arriou-se, a todo risco, um escaler com seis homens. E
até a noite, na iminência excruciante, esmagadora, de afundar-se o bote e o
próprio navio com todos que estavam a seu bordo, se procurou incessante e
angustiosamente a desventurada criança, para se arrancar, ao menos, os seus
despojos queridos às fauces tredas e hiantes do monstruoso Oceano. Em vão,
porém, tudo em vão!...
À notícia de tão triste ocorrência, os passageiros subiram à
tolda, vivamente penalizados e, mais que nenhum, pudera! o Artur Xavier, o
jovem estudante de direito, que já adorava a Flor do Mar e que tinha os olhos
inundados de pranto. Ela, a marujinha, coitada, quem sabe? talvez já o amasse
também... Então ficaram todos a olhar, por instantes, o ponto das águas em que
desaparecera a graciosa menina, que era sem dúvida o maior encanto de bordo...
Afinal, o pobre capitão Manoel Fontes, numa ânsia inominada, o
coração em tormenta como todo aquele mar, louco e perdido de dor, chorando qual
uma criança, retomou o seu rumo, em demanda do Recife...
***
Foi essa a viagem mais triste, mais infeliz e mais fúnebre que
fizera a Bom Destino, a qual, depois
de trinta e seis anos de mar, desmentia pela primeira vez a expressiva
significação do seu nome. E por isso o capitão Manoel Fontes, apenas chegou ao
Recife e desembarcou o carregamento, a fez vender em leilão.
Um mês
depois, esse heroico “lobo do oceano”, que apurara nessa velha barca e na carga
cerca de vinte e oito contos de réis, arredondando assim — mas agora sem mais
alegria e ventura! — uma fortuna regular, regressava ao Desterro, a bordo do
brigue escuna Saudade, abandonando para sempre o tombadilho dos navios e o seu
velho e amado Mar, e indo viver o resto da sua existência só com as três irmãs
solteironas que ainda lhe restavam, já quase tão velhas como ele, na sua
chácara de São Luís, pitorescamente situada num recanto litoral da baía do
norte, em a capital catarinense, nessa chácara onde as ondas, com os seus
marulhosos encantos, vinham ainda perenemente tentá-lo, mas em vão, a novas
aventuras e viagens, espumosamente a baterem contra a vasta linha do cais, que
defendia da salsugem e das tormentas os seus jardins e pomares...
E ainda agora, aos noventa anos, o venerando marujo, sempre
vestido de luto e a lastimar a sua sorte, cada vez que alguém lhe fala na
infeliz Flor do Mar, cai em desolado pranto, a recordar tristemente a perda
dessa menina formosa e eternamente amada.
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