Fim de um sonho
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Foi mesmo um sonho, mergulhado no
qual vivi cerca de três meses, meu caro. Durante eles, sonhei dia e noite. De
dia, então eu nada percebia com nitidez. A luz do sol, dura e crua, me era
estranha, feria-me, fazia-me mal. Discernia com dificuldade as fisionomias e as
coisas. Eu me havia transformado em um animal noturno muito especial que só
pode viver em luz elétrica. Só, sob incidência dessa luz artificial, é que o
mundo das coisas e dos entes saía, para os meus olhos, da bruma, da caligem, da
hesitação de formas; fora daí, houvesse o mais radiante sol que houvesse, tudo
era pastoso, turvo e mal tomavam corpo e figura as vidas e os objetos.
Erguia-me sempre tarde, porque me
deitava alta madrugada. Vinha para casa em automóvel que o clube punha à minha
disposição. Metia-me no quarto da pensão chique, que era hermeticamente fechado
como convém a essas pensões, e arejado astuciosamente pelo rodapé e pelo teto.
Dormia até às três horas, tomava banho e almoçava quando os outros iam jantar.
Saía à boca da noite, fazia horas pelos botequins até ir jantar num restaurante
do centro e, depois, encaminhava-me para o clube, o lindo “Incroy able-Club”,
decorado luxuosamente, com um luxo e gosto nem sempre de grande aprumo, mas que
a profusão de luz elétrica, derramada aos jorros, fazia suntuoso e maravilhoso
que nem um palácio de Mil e uma Noites.
Nunca vira aquilo tudo; e embora,
por conhecer alguma coisa de arte, detestasse as duvidosas pinturas das
paredes, gostava, entretanto, das mulheres que não me pareciam ser tão
artificiais assim. Em começo, fazia o meu serviço, bebendo cerveja; por fim,
champanha; e, afinal, travei conhecimentos com cavalheiros amáveis. Eram todos
estrangeiros e chamavam-se: Wassíli Alexandróvich Sóbonoff, engenheiro russo,
de grande capacidade em coisas elétricas, emigrado de sua pátria, por causa do
“Soviet”, e contratado para dirigir uma poderosa usina de produção elétrica em
Mambocaba, a fim de extrair mecanicamente turfa, que abundava naquela
localidade, e beneficiá-la também.
O outro era dinamarquês ou tcheco
e só o conheci pelo nome de Peteo. Pretendia servir-se de um pouco da força da
usina de Wassíli, para obter matérias corantes dos resíduos da turfa deste; e o
terceiro era o barão de Hermeny , magiar com muitos quarteirões de nobreza,
descendente de santo Estêvão e não sei quem mais. Corria mundo enquanto não se
restabelecia o trono do seu augusto e santo avô, para então retomar os seus
cargos e as suas fartas rendas.
Nunca conheci cavalheiros tão
amáveis e educados. Sempre corretamente vestidos, injuriados discretamente,
conversavam comigo sobre todos os assuntos com conhecimento profundo de causa.
Sabiam todo o movimento político do mundo e as suas previsões eram sempre
seguras. Desde que os conheci, nunca mais paguei champanha nem ceias. Para
estas, eles traziam variadas damas que lhes falavam numa gerigonça arrevesada
que mesmo não sei que língua era. Eu ficava babado diante daquelas carnaduras
rijas, daqueles colos azuis que nos são pouco familiares e daqueles rostos
polpudos, daquelas sobrancelhas negras a poder de ingredientes, daquelas
orelhas cheias de bichas e daquelas ancas... Por momentos, vendo aquelas
mulheres, aquelas luminárias, aqueles tapetes, aqueles jarrões com pequenas
palmeiras, esquecendo as figuras das paredes, eu me julgava um sultão ou pelo
menos, um aprendiz desse ofício, mas que já podia tirar o lenço...
Um dia saí com o barão húngaro e
convidei-o para tomar o “meu” automóvel. Quando ele ia entrar, chegou-se um
sujeito, apresentou-lhe uma carteira e disse-lhe:
— O senhor está convidado a ir à
Polícia Central. O barão não relutou e respondeu galantemente:
— Deve ser algum engano. Vamos.
— O doutor me desculpe... As
autoridades brasileiras ainda não estão bem informadas de quem sou...
— Quer ir no “meu” automóvel?
— Não; seria incomodá-lo. Vou
mesmo num táxi aqui com o senhor — disse, voltando-se para o agente.
No dia seguinte, soube que o tal
barão era um terrível ladrão de bancos que a polícia do Chile perseguia, por
ter roubado, com grande audácia, a um de Santiago, em cerca de cento e
cinquenta contos. Não era húngaro, como se intitulava: era rumaico ou coisa que
o valha.
Continuei, porém, no meu sonho de
nada pensar de sério na vida. Quase não lia jornais; livros e revistas
esperavam que lhes apontasse as páginas, em cima da mesa; não respondia às
cartas ou mal as respondia, às pressas. Que mais queria? Tinha encontrado, ao
mesmo tempo, os “Campos Elísios”, o “Éden”, o “Paraíso” cristão e o de Maomé. O
clube de jogo juntava-me tudo isto no meu sentir e para o meu gozo. Vivia num
arrebatamento deste mundo, fora dele e das suas coisas triviais, num
encantamento divino... Que delícia!
— Como acabou, meu caro? —
perguntou-lhe o amigo que o ouvira calado até aí.
— Uma noite destas, fui para o
serviço do Club, como de costume, e o porteiro, logo à entrada, me avisou: “A
‘casa’ fechou doutor; a emenda do senador Sá foi avante: não há mais jogo”.
Não quis subir, pus-me na rua e
acendi o último dos “havanas” que o tal engenheiro russo me havia dado, na
véspera. Fumei-o com volúpia e vagar, sacudindo as cinzas com pena — as cinzas
do meu sonho! Certamente, esse seria o último que fumaria na minha vida... Foi
um sonho!
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