Fernando e Fernanda
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Tinham os mesmos nomes. Cresceram juntos, à
sombra do mesmo amor materno. Ele era órfão, e a mãe dela, que o amava como se
ele fora seu filho, tomou-o para si, e reuniu os dois debaixo do mesmo olhar e
dentro do mesmo coração. Eram quase irmãos, e sê-lo-iam sempre completamente,
se a diferença dos sexos não viesse, um dia, dizer-lhes que um laço mais íntimo
podia uni-los.
Um dia, tinham ambos quinze anos, descobriram
os dois que se amavam, e mais do que se amam irmãos. Esta descoberta foi feita
durante uma troca de olhares e um contato de mãos.
— Fernanda! disse ele.
— Fernando! respondeu ela.
O resto foi dito nessa linguagem muda e
eloquente, em que o maior ignorante faz prodígios de retórica, retórica do
coração, retórica universal.
Mas o
amor, sobretudo o amor calouro, como era o dos meus heróis, tem o inconveniente
de supor que todo o resto da humanidade está com os olhos tapados e os ouvidos
surdos, e que ele pode existir só para si, invisível e impalpável.
Ora, não sendo assim, apesar da boa fé de
Fernando e Fernanda, aconteceu que a velha mãe deu pelas coisas logo dois dias
depois da primeira revelação.
Esperavam os três a hora do chá, reunidos em
torno de uma pequena mesa, onde Madalena (a mãe de ambos) punha em ordem uns
papéis. Os papéis diziam respeito a várias reclamações que Madalena devia
fazer, por parte de seu finado marido, à fazenda pública.
Isto se passava em uma província do norte, e
Madalena preparava-se, no caso de ser preciso, a vir pessoalmente ao Rio de
Janeiro, apresentar as suas reclamações.
Nesse serviço era a boa velha ajudada pelos
dois filhos, a legítima e o adotivo; mas estes, sem quebra do respeito que
votavam à mãe comum, esqueciam-se muitas vezes do que faziam, para confundirem
por longo tempo os olhos, que, na frase chistosa de H. Murger, são os
plenipotenciários do coração.
Em uma dessas ocasiões, Madalena, com os olhos
baixos, reunindo os papéis que lhe eram mais necessários, disse a Fernando que
lhe fosse buscar um maço de documentos esquecidos no gabinete.
Fernando não atendeu à ordem.
Madalena repetiu as palavras, segunda vez,
sem levantar os olhos.
Igual silêncio.
Madalena levantou a cabeça e ia pela terceira
vez dizer a mesma coisa, quando reparou no êxtase em que estavam Fernando e
Fernanda.
Então, erguendo a voz, repetiu a ordem a
Fernando.
Este estremeceu, levantou-se e foi buscar o
maço de documentos.
Daí a pouco serviu-se o chá; porém Madalena,
que era, sempre, tanto ou mais gárrula que os dois namorados, mostrou-se
durante o chá de uma completa taciturnidade.
Isto causou estranheza à filha e ao filho,
mas não lhes inspirou suspeita alguma, pela simples razão de que nem ele nem
ela conheciam ainda bem o alcance e a natureza do sentimento que os dominava.
Explicarei a razão desta ignorância em
corações de quinze anos. Nem Fernando nem Fernanda tinham prática do mundo; não
viam ninguém; nada sabiam além do amor fraterno e filial em que foram criados.
Um velho padre, parente afastado de Madalena,
ensinara-lhes a ler e a escrever várias línguas e a história sagrada; mas o
modo por que era feito o ensino, a tenra idade em que eles começaram a
aprender, a cor legendária que eles viam nos textos sagrados, tudo isso
contribuía para que a ideia do amor dos sexos nunca se lhes apresentasse no
espírito de um modo claro e positivo.
Deste modo o episódio de Rute, verdadeira
página da poesia rústica, era lido pelos dois sem comentário do coração, ou do
espírito.
Nem por curiosidade aconteceu perguntarem
nunca o fim dos meios empregados pela irmã de Noemi em relação ao rico homem
Booz.
Eva, o fruto, a serpente, eram para Fernando
e Fernanda a mesma serpente, o mesmo fruto, a mesma Eva, ocultos nos princípios
da humanidade pelas névoas da legenda religiosa.
Quanto ao Cântico
dos Cânticos, o padre-mestre julgou dever suprimi-lo na Bíblia em que
aprendiam os dois jovens parentes. Esse padre-mestre, apesar de insistir no
caráter alegórico do livro de Salomão, segundo a versão católica, julgou não
dever dá-lo em leitura ao espírito de Fernando e Fernanda.
Resultou de todo este cuidado que o coração
juvenil dos dois namorados nunca teve ideia clara do sentimento que os unia tão
intimamente. Era a natureza quem fazia as despesas daquele amor sem
consequências.
No dia seguinte ao da cena que narrei
rapidamente, Madalena chamou os dois namorados em particular e interrogou-os.
Os cuidados de Madalena eram mui legítimos.
Apesar do recato com que tinham sido educados os dois filhos, ela não podia
saber até que ponto a inocência deles era real. Sondar-lhes o espírito e o
coração parecia-lhe um dever imperioso. Fê-lo com toda a habilidade; Fernando e
Fernanda, confessando uma afeição mais terna que antiga, nada sabiam, todavia,
do caráter e do mistério dessa afeição.
Madalena, para quem o amor de Fernando por
Fernanda não era mais do que o sonho de sua vida realizado, beijou-os,
abraçou-os e prometeu-lhes que seriam felizes.
— Mas, acrescentou ela, explicando como podia
as coisas, é preciso que o meu Fernando se faça homem; tome um bordão de vida,
para cuidar da sua... irmã; ouviu?
E tratou de consultar a vocação de Fernando,
consultando também o padre-mestre, não sem comunicar-lhe as descobertas que
fizera.
O padre-mestre contrariou-se um bocado com a
tal descoberta. Em seus projetos secretos a respeito de Fernando, que era a um
tempo discípulo e afilhado, entrara o de fazê-lo entrar para um seminário e
depois para um convento. Queria, disse ele a Madalena, fazer de Fernando uma
coluna da Igreja. Era um menino inteligente, mostrava entusiasmo pelas letras
sagradas, podia, com os desenvolvimentos que se lhe desse ao espírito,
tornar-se o São Paulo do novo mundo.
Madalena declarou-lhe que era necessário
tirar daí o pensamento. O padre-mestre resignou-se.
Depois de muito discutirem, em presença de
Fernando, resolveu-se que o rapaz estudasse medicina.
Em consequência foi determinado que fizesse
os preparatórios e seguisse para a corte para continuar os estudos superiores.
Esta resolução entristeceu Fernando. Foi
comunicá-la a Fernanda, e ambos se desfizeram em lágrimas e protestos de uma
afeição eterna.
Mas quis a felicidade que Madalena precisasse
ir ao Rio de janeiro para cuidar dos papéis de suas reclamações. Assim toda a
família se pôs a caminho, e daí a alguns meses estavam todos, menos o
padre-mestre, definitivamente instalados na capital.
Fernando seguiu os estudos necessários à
carreira escolhida.
A idade, a maior convivência na sociedade,
tudo revelou aos dois namorados a razão de ser da afeição mais terna que
sentiam um pelo outro.
O casamento apareceu-lhes no horizonte como
uma estrela luminosa. Daqui vieram os projetos, os planos, as esperanças, os
edifícios de felicidades construídos, e destruídos para dar lugar a outros de
maiores proporções e mais imponente estrutura.
Eram felizes. Não conhecendo nenhuma das
misérias da vida, viam o futuro pelo prisma da própria imaginação e do próprio
desejo. Parecia-lhes que o destino ou as circunstâncias não tinham o direito de
impedir a realização de cada um de seus sonhos.
Entretanto, tendo Fernando concluído os seus
estudos, foi decidido que iria à Europa estudar e praticar ainda por dois anos.
Era uma separação de dois anos! E que
separação! A separação do mar, a mais tremenda de todas as barreiras, e que aos
olhos de Fernanda era como que o perigo certo e inevitável. A pobre menina
dizia muitas vezes a Fernando:
— Quando fores meu marido, proíbo-te que
ponhas pé no mar!
— Não ponho, não, respondia Fernando
sorrindo, o navio é que há de pôr a quilha.
Anunciava-se agora uma viagem. Cedo começavam
os sustos e as desgraças de Fernanda.
A pobre menina chorou muitas lágrimas de
pesar e até de raiva por não poder impedir que Fernando partisse.
Mas era preciso.
Fernando partiu.
Madalena procurou o mais que podia animar o
rapaz e consolar a filha. Ela própria sentia rasgarem-se-lhe as entranhas ao
ver partir aquele que por dois motivos era seu filho; mas tinha coragem, e coragem
filha de dois sentimentos elevados: — o primeiro era que se devia completar a
educação de Fernando, que ela tomara a seu cuidado; o segundo era que para
marido da sua Fernanda devia dar um homem completo e apto a alcançar os mais
honrosos cargos.
Fernando compreendia isto, e soube ser
corajoso.
Não entra no meu propósito contar, cena por
cena, dia por dia, os acontecimentos que preencheram o intervalo da ausência do
jovem médico pela ciência e doente pelo amor.
Corramos folha e entremos logo no dia em que
o navio em que saíra Fernando se achou de novo no porto da capital.
Madalena recebeu Fernando como se recebe a
luz depois de uma longa prisão em cárcere escuro. Indagou de muitas coisas,
curiosíssima pelo menor incidente, e risonha de felicidade a todas as narrações
do filho.
— Mas Fernanda? perguntou ele depois de algum
tempo.
A mãe não respondeu.
Fernando insistiu.
— Fernanda morreu, disse Madalena.
— Morreu! exclamou Fernando levando as mãos à
cabeça.
— Morreu para ti: está casada.
A previdente Madalena começara do menor para
o maior. Com efeito, para Fernando melhor fora que Fernanda tivesse morrido do
que se tivesse casado.
Fernando desesperou ao ouvir as palavras de
sua mãe. Esta veio com imediatos conselhos de prudência e resignação. Fernando
a nada atendia. Formara durante tanto tempo um castelo de felicidade, e eis que
uma simples palavra derrubara tudo. Mil ideias lhe atravessaram o cérebro; o
suicídio, a vingança, voltavam a ocupar-lhe o espírito, cada qual por sua vez;
o que ele via no fundo de tudo era a perfídia negra, a fraqueza do coração
feminino, a zombaria, a má fé, ainda nos corações mais virgens.
Enfim, Madalena pôde tomar a palavra e
explicar ao desditoso mancebo a história do casamento de Fernanda.
Ora, a história, a despeito de sua
vulgaridade, deve ser contada aqui para conhecimento dos fatos.
Fernanda sentira, e sinceramente, a ausência
de Fernando.
Chorou longos dias sem consolação. Para
trazer-lhe algumas distrações ao espírito, Madalena resolveu levá-la às reuniões
e introduzi-la entre as moças da mesma idade, cuja convivência não podia deixar
de ser-lhe útil, visto que lhe tranquilizaria o espírito, sem varrer-lhe da
memória e do coração a ideia e o amor do viajante.
Fernanda, que até ali vivera uma vida modesta
e retirada, achou-se de repente ante um mundo novo. Sucediam-se os bailes, as
visitas, as simples reuniões. Pouco a pouco a tristeza foi desaparecendo e
dando lugar a uma satisfação completa e de bom agouro para Madalena.
— Bem, pensava a velha mãe, deste modo
Fernanda poderá esperar Fernando, sem murchar-lhe a beleza da mocidade. Estas
relações novas, esta nova convivência, tirando-lhe a tristeza que a
acabrunhava, dar-lhe-á mais força ao amor, em virtude do espetáculo do amor
alheio.
Madalena raciocinava bem até certo ponto. Mas
a prática demonstrou que a sua teoria era errada e não concluía como o seu
coração.
O exemplo alheio, longe de fortificar
Fernanda na fidelidade ao amor jurado, trouxe-lhe um prurido de imitação; ao
princípio, simples curiosidade; depois, desejo menos indiferente; mais tarde,
vontade decidida. Fernanda desejou imitar as novas amigas, e teve um namorado.
A algumas ouvira que não ter um namorado, pelo menos, era dar prova de péssimo
gosto, e de nenhum espírito; e Fernanda não queria de modo algum ficar neste
ponto atrás das suas companheiras.
Entre os rapazes que a requestavam havia um
certo Augusto Soares, filho de um rico capitalista, que era o seu primeiro
mérito, sendo o segundo a mais bem merecida fama de néscio que ainda coroou uma
criatura humana.
Mas os néscios não trazem na testa o dístico
de sua necedade; e, se é certo que Soares não podia encadear duas frases sem
ferir o senso comum, também é certo que muitas mulheres perdoam tudo, até a
tolice, em ouvindo tecer um gabo às suas graças naturais.
Ora, Soares começava por aí, o que foi meio
caminho andado. Fernanda, vendo que o rapaz era da mesma opinião que o seu
espelho, não indagou de outras qualidades; deu-lhe o sufrágio... não do
coração, mas do espírito. O coração veio mais tarde.
Ter um preferido, como objeto de guerra para
os mais, e ver assim mais requestada a sua preferência, era trilhar o caminho
das outras e ficar na altura do bom tom. Fernanda, desde o primeiro dia,
mostrou-se tão hábil como as outras.
Mas quem pode lutar com um néscio em ele
tomando ao sério o seu papel? Soares era ousado.
Não tendo consciência da nulidade do seu
espírito, obrava como se fosse um espírito eminente, de modo que conseguia
aquilo que nenhum homem avisado fora capaz de conseguir.
Deste modo, ao passo que a ausência de
Fernando se prolongava, iam calando no espírito as declarações reiteradas de
Soares, e o coração de Fernanda foi pouco a pouco cedendo o amor antigo ao
recente amor.
Veio a comparação (a comparação, que é a
perdição das mulheres). Fernando amava com toda a sinceridade e singeleza do
seu coração; Soares amava de modo diverso; sabia entremear uma declaração com
três perífrases e dois tropos, destes que já cheiram mal, por andarem em tantas
bocas, mas que Fernanda ouvia com encanto porque era uma linguagem nova para
ela.
Finalmente, um dia declarou-se a vitória de
Soares no coração de Fernanda, não sem alguma luta, à última hora, e que não
era mais do que um ato voluntário de Fernanda para tranquilizar a consciência e
deitar a sua traição para as costas do destino.
O destino é o grande culpado de todas as más
ações da humanidade inocente...
Um dia Soares, tendo previamente indagado das
posses de Fernanda, foi autorizado por esta a pedi-la em casamento.
Madalena não deu logo o seu consentimento;
quis antes consultar Fernanda e ver até que ponto era séria a nova resolução de
sua filha.
Fernanda declarou amar deveras o rapaz, e fez
depender a sua vida e felicidade de tal casamento.
Madalena julgou dever guiar aquele coração
que lhe parecia transviado. Foi luta vã: Fernanda estava inabalável. Depois de
três dias de trabalho, Madalena declarou a Fernanda que consentia no casamento
e mandou chamar Soares para dizer-lhe a mesma coisa.
— Mas sabes tu, perguntou a boa mãe à sua
filha, sabes a que vais expor o coração de Fernando?
— Ora! há de sentir um pouco; mas depois
esquecer-se-á...
— Julgas isso possível?
— Por que não? E quem sabe o que ele estará
fazendo? Os países aonde foi talvez lhe deem alguns novos amores... É uma por
outra.
— Fernanda!
— Esta é a verdade.
— Está bem, Deus te faça feliz.
E, tendo chegado o namorado pintalegrete,
Madalena deu-lhe verbal e oficialmente a filha em casamento.
O casamento efetuou-se pouco depois.
Ouvindo esta narração, Fernando estava
aturdido. Desfazia-se em névoa a esperança suprema das suas ambições de moço. A
donzela casta e sincera que supunha vir encontrar desaparecia para dar lugar a
uma mulher de coração pérfido e vulgar espírito.
Não pôde reter algumas lágrimas; mas poucas
foram; às primeiras palavras de sua mãe adotiva pedindo-lhe coragem, Fernando
ergueu-se, enxugou os olhos e prometeu não abater-se. Procurou mesmo ficar
alegre. A pobre Madalena receou alguma coisa e consultou Fernando sobre os seus
projetos.
— Oh! descanse, minha mãe, respondeu este;
supõe talvez que eu me mate ou mate alguém? Juro-lhe que não farei nem uma nem
outra coisa. Olhe, juro por isto.
E Fernando beijou respeitosamente a cabeça
encanecida e veneranda de Madalena.
Passaram-se alguns dias depois da chegada de
Fernando. Madalena, vendo que pouco a pouco se tranquilizava o espírito de
Fernando, tranquilizou-se também.
Um dia Madalena, ao entrar Fernando para
jantar, disse-lhe:
— Fernando, sabes que Fernanda vem hoje
visitar-me?
— Ah!
Fernando não pensara nunca que Fernanda podia
visitar sua mãe e encontrar-se com ele em casa. Todavia, depois da primeira
exclamação, pareceu refletir alguns segundos e disse:
— Isso que tem? Ela pode vir; eu cá estou:
somos dois estranhos...
Madalena ficou desta vez plenamente
convencida de que Fernando não sentia mais nada por sua filha, nem amor, nem
ódio.
À noite, com efeito, na ocasião em que
Fernando se preparava para ler à sua mãe uns apontamentos de viagem que estava
escrevendo, parou à porta um carro conduzindo Soares e Fernanda.
Fernando sentiu palpitar-lhe violentamente o
coração. Duas lágrimas, as últimas, saltaram-lhe dos olhos e correram pelas
faces abaixo. Fernando enxugou-as ocultamente. Quando Madalena olhou para ele,
estava completamente calmo.
Entraram os dois.
O encontro de Fernando e Fernanda não foi sem
alguma comoção em ambos; mais apaziguada em seus amores por Soares, Fernanda
entrava já na reflexão, e a vista de Fernando (que aliás ela sabia já ter
voltado) era para ela uma exprobração viva do seu procedimento.
Era mais: a presença do primeiro amante
lembrava-lhe os primeiros dias, a candura do primeiro afeto, os sonhos de amor,
sonhados por ambos, na doce intimidade do lar doméstico.
Quanto a Fernando, sentia também que lhe
voltavam estas lembranças ao espírito; mas, ao mesmo tempo, unia-se à saudade
do passado um desgosto pelo aspecto presente da mulher que amara. Fernanda
estava uma casquilha. Ar, maneiras, olhares, tudo era característico de uma
revolução completa em seus hábitos e em seu espírito. Até a palidez natural e
poética do rosto desaparecia debaixo de umas posturas de carmim, sem tom nem
graça, aplicadas unicamente para afetar um gênero de beleza que não tinha.
Esta mudança era resultado do contato de
Soares. Com efeito, desviando os olhos de Fernanda para cravá-los nos do homem
que lhe roubara a sua felicidade, Fernando pôde ver nele um tipo completo do
pintalegrete moderno.
Madalena apresentou Fernando a Soares, e os
dois retribuíram friamente o cumprimento do estilo. Por que friamente? Não é
que Soares já soubesse do amor que houvera entre sua mulher e Fernando. Não
quero deixar supor aos leitores uma coisa que não existe. Soares era de natural
frio, como um homem cujas preocupações não vão além de certas futilidades.
Quanto a Fernando, compreende-se bem que não era o mais próprio a cumprimentar
calorosamente o marido de sua ex-amada.
A conversa entre todos foi indiferente e
fria; Fernando procurava e requintava nessa indiferença, nos seus parabéns a
Fernanda e na narração que fazia das viagens. Fernanda estava pensativa e
respondia por monossílabos, sempre com os olhos baixos.
Tinha vergonha de fitar aquele que primeiro
lhe possuíra o coração, e que era agora o remorso vivo do seu amor passado.
Madalena procurava conciliar tudo,
aproveitando a indiferença de Fernando para estabelecer uma intimidade sem
perigo entre as duas almas que um terceiro divorciara.
Quanto a Soares, esse, tão frio como os
outros, dividia a sua atenção entre os interlocutores e a própria pessoa. A um
espírito atilado bastavam dez minutos para conhecer a fundo o caráter de
Soares. Fernando no fim de dez minutos sabia com que homem lidava.
A visita durou pouco menos do que costumava.
Madalena tinha por costume conduzir sua filha à casa todas as vezes que esta a
visitava. Desta vez, quando Soares a convidou a tomar lugar no carro, Madalena
pretextou um ligeiro incômodo e pediu desculpa. Fernando compreendeu que
Madalena não queria expô-lo a ir também levar Fernanda até à casa; interrompeu
a desculpa de Madalena e disse:
— Por que não vai, minha mãe? É perto a casa,
creio eu...
E dizendo isto interrogou Soares com o olhar.
— É perto, é, disse este.
— Pois então! continuou Fernando; vamos
todos, e depois voltamos nós. Não quer?
Madalena olhou para Fernando, estendeu-lhe a
mão e com um olhar de agradecimento respondeu:
— Pois sim!
— Devo acrescentar que eu não posso ir já.
Tenho de ir buscar uma resposta daqui a meia hora; mas apenas estiver livre lá
vou ter.
— Muito bem, disse Soares.
Fernando informou-se da situação da casa, e
despediu-se dos três, que entraram para o carro e apartaram-se.
A mão de Fernanda tremia quando esta a
estendeu ao moço. A dele não; parece que a maior indiferença reinava naquele
coração. Fernanda ao sair não pôde deixar de soltar um suspiro.
Fernando não tinha resposta alguma a ir
buscar. Não queria utilizar-se de objeto algum que pertencesse a Soares e
Fernanda; desejava trazer sua mãe, mas em carro que não fosse daquele casal.
Com efeito, depois de deixar correr o tempo,
para verossimilhança do pretexto, vestiu-se e saiu. Chamou o primeiro carro que
encontrou e tomou a direção da casa de Soares.
Aí o esperavam para tomar chá.
Fernando mordeu os beiços quando lhe
declararam isto; mas, cobrando o sangue-frio, disse que não podia aceitar,
visto ter já tomado chá com a pessoa de quem fora buscar a resposta.
Não escapou a Madalena o motivo das duas
recusas, a do carro e a do chá.
Às dez horas e meia Madalena e Fernando
estavam de volta para casa.
Passaram-se vinte dias depois destas cenas, e
sempre que elas se repetiam Fernando era o mesmo, respeitoso, frio e
indiferente.
Madalena, tranquila até certo ponto, sentia
profundamente que Fernando não voltasse à franca alegria dos tempos passados. E
para fazer-lhe entrar alguma nova luz no espírito, a boa mãe instava com ele
para que entremeasse os estudos e os trabalhos de sua profissão com alguns
divertimentos próprios da mocidade.
— Por que não passeias? Por que não vais aos
bailes? Por que não frequentas as reuniões a que és convidado? Por que foges do
teatro, de tudo o que a mocidade procura e precisa?
— Não tenho gênio para essa vida agitada. A
solidão é tão boa!...
Enfim, um dia Madalena conseguiu que Fernando
fosse ao teatro lírico com ela. Cantava-se a Favorita. Fernando ouviu pensativo
e absorto aquela música que em tantos lugares fala à alma e ao coração. O ato
final sobretudo deixou-o comovido. Estas distrações repetiram-se algumas vezes.
De concessão em concessão, Fernando achou-se
repentinamente frequentando com assiduidade os bailes, os teatros e as
reuniões. O tempo e as distrações iam apagando no espírito de Fernando os
últimos vestígios de um destes ressentimentos que, em certo grau, é amor
disfarçado.
Já se aproximava de Fernanda sem comoção nem
acanhamento: sua indiferença era mais espontânea e natural.
Afinal de contas, pensava ele, aquele
coração, tão volúvel e estouvado, não devia ser meu; a traição mais tarde seria
mais funesta.
Esta reflexão filosófica era sincera e
denotava bem como a razão dominava já, no espírito de Fernando, as memórias
saudosas do passado.
Mas Fernanda? Oh! o estado dessa era outro.
Aturdida a princípio com a vista de Fernando; um pouco arrependida depois,
quando lhe pareceu que Fernando morria de dor e pesar; mais tarde, despeitada,
vendo e conhecendo a indiferença que respiravam as maneiras e as palavras dele;
finalmente combatida por mil sentimentos diversos, o despeito, o remorso, a
vingança; desejando fugir-lhe e sentindo-se arrastada para o homem que
desprezara; vítima de um conflito entre o arrependimento e a vaidade, a esposa
de Soares sentiu que se operava uma revolução no seu espírito e na sua vida.
Em mais de uma ocasião Fernanda fizera
sentir, em palavras, em olhares, em suspiros, em reticências, o estado do seu
coração. Mas Fernando, a quem já não causava comoção a presença de Fernanda,
não dava fé das revelações, às vezes demasiado eloquentes, da esposa do
pintalegrete.
Mas quem dava fé era o pintalegrete. Sem
dispor de grande atilamento, o jovem Soares chegara a perceber que o espírito
de sua mulher sofria alguma alteração. Começou a suspeita pela indiferença com
que Fernanda o acompanhara na discussão dos méritos de duas novas qualidades de
posturas do rosto, assunto grave, em que Soares desenvolvia riquezas de
dialética e grande soma de elevação. Prestou mais atenção e convenceu-se de que
Fernanda tinha alguma coisa no espírito que não era a pessoa dele, e como
marido previdente, tratou de indagar o motivo e o objeto da preocupação.
Seus esforços foram vãos ao princípio.
Despeitado interrogou Fernanda, mas esta não só não o iluminou na dúvida, senão
que o desconcertou com uma apóstrofe de simulada indignação.
Soares julgou dever-se recolher aos quartéis
da expectativa.
Estavam as coisas neste pé quando o parente
de Madalena que levara Fernando à Europa deu um sarau por motivo do aniversário
de sua mulher.
Não só Fernando, como Soares e Fernanda,
foram convidados para aquele sarau.
Fernando, como disse, já ia a essas reuniões
por vontade própria e natural desejo de aviventar o espírito.
Neste alguma coisa mais o esperava, além da
simples e geral distração.
Quando Fernando chegou ao sarau, seriam onze
horas da noite, cantava ao piano uma moça de 22 anos, alta, pálida, de olhos e
cabelos pretos, a quem chamavam todos Teresa.
Fernando chegou a tempo de ouvir toda a
canção que a moça cantou, inspirada e febril.
Quando ela acabou, um murmúrio de aprovação
soou em toda a assembleia, e no meio da confusão em que o entusiasmo deixara
todos, Fernando, mais instintiva que voluntariamente, atravessou a sala e foi
dar o braço a Teresa para conduzi-la à sua cadeira.
Nesse momento o anjo dos destinos escrevera
no livro dos amores mais um amor, o de Teresa e Fernando.
O súbito efeito produzido no coração de
Fernando pelo canto de Teresa não foi só resultado da magia e do sentimento com
que esta cantara. Durante as primeiras notas, isto é, quando a alma de Teresa
ainda se não tinha derramado toda na voz argentina e apaixonada, Fernando pôde
conversar com alguns rapazes a respeito da cantora. Disseram-lhe que era uma
donzela desprezada no amor que votara a um homem; profetizaram a paixão com que
ela cantaria, e por fim indicaram-lhe, a um lado da sala, a figura indiferente
ou antes zombeteira do traidor daquele coração. A identidade das situações e
dos sentimentos foi o primeiro elo da simpatia de Fernando para com Teresa. O
canto confirmou e desenvolveu a primeira impressão. Quando Teresa acabou,
Fernando não se pôde ter e foi prestar-lhe o apoio do seu braço para voltar à
cadeira que ficava junto de sua mãe.
Durante a noite Fernando sentiu-se mais e
mais impressionado pela bela desdenhada. No fim do sarau estava decidido. Devia
amar aquela mulher e fazer-se amar por ela.
Mas como? Ainda no coração de Teresa existia
alguma coisa da flama antiga. Era aquele o estado em que o seu coração ficou
logo desde que soube da perfídia de Fernanda. O moço contava com o
apaziguamento da primeira paixão, de modo que um dia os dois corações
desprezados se ligassem em um mesmo amor e envergonhassem por uma união sincera
aqueles que os não tinham compreendido.
Esta nova mudança no espírito de Fernando
escapou, a princípio, à mulher de Soares. Devo dizê-lo, se ainda algum leitor
não o compreendeu, que Fernanda estava de novo apaixonada por Fernando; mas
agora era um amor egoísta, calculado, talvez misturado de remorso, um amor com
que ela pretendia, resgatando a culpa, quebrar de uma vez a justa indignação do
seu primeiro amante.
Não reparando o moço nas reticências, nos
suspiros, nos olhares, em todos esses anúncios do amor, ficando insensível às
mudas revelações da esposa de Soares, resolveu esta ser mais explícita um dia
em que conversava a sós com Fernando.
Era um mau passo que dava, e em sua
consciência de mulher casada, Fernanda conhecia o erro e temia as
consequências. Mas o amor próprio leva longe quando se apossa do coração
humano. Fernanda, depois de hesitar um pouco, determinou-se a tentar o seu
projeto. Fernando foi de bronze. Quando a conversação tomou um caminho mais
positivo, Fernando fez-se sério e declarou à mulher de Soares que não podia
amá-la, que o seu coração estava morto, e que, mesmo que revivesse, seria pela
ação de um hálito mais puro, à luz de um olhar mais sincero.
Dito isto, retirou-se. Fernanda não
desesperou. Pensou que a constância seria uma arma poderosa, e acreditou que só
no romance ou na comédia podiam existir tais firmezas de caráter.
Esperou.
Esperou em vão.
O amor de Fernando por Teresa crescia mais e
mais; Teresa atravessava, uma por uma, as fases por que passara o coração de
Fernando. Era outra; o tempo trouxe o desprezo e o esquecimento. Uma vez
esquecido o primeiro amor, que restava mais? Cicatrizar as feridas adquiridas
no combate; e que melhor meio de cicatrizá-las que aceitando o concurso de uma
mão amiga e simpática? Tais foram os preliminares do amor de Fernando e Teresa.
O conforto comum trouxe a afeição recíproca. Um dia descobriu Teresa que amava
aquele homem. Quando dois corações se querem entender, ainda que falem
hebraico, descobrem-se logo um ao outro. No fim de algum tempo foi jurada entre
ambos uma sincera e eterna fidelidade.
Fernanda não foi das últimas a saber da nova
paixão de Fernando. Desesperou. Se o coração entrava por pouco no amor que
confessara ao médico, se era mais o amor-próprio a razão de ser dessa paixão
culpada, foi ainda o amor-próprio, e mais indomável, que se apoderou do
espírito de Fernanda e induziu-a a queimar o último cartucho.
Desgraçadamente, nem o primeiro nem o último
cartucho eram de incendiar, com um fogo criminoso, o coração de Fernando. O
caráter de Fernando era mais elevado que o dos homens que rodeavam a esposa de
Soares, de maneira que, supondo dominar, Fernanda achou-se dominada e
humilhada.
Neste ponto devo transcrever uma carta de
Fernando ao parente em cuja casa vira Teresa pela primeira vez.
Meu bom amigo, dizia ele, está na sua mão
concorrer para a minha felicidade, ou antes completá-la, porque foi em sua casa
que eu comecei a adquiri-la.
Sabe que amo a D. Teresa, aquela interessante
moça abandonada no amor que votava ao F... Conhece ainda a história do meu
primeiro amor. Somos dois corações igualados pelo infortúnio; o amor pode
completar a nossa fraternidade.
E deveras nos amamos, nada se pode opor à
minha felicidade; o que eu desejo é que me ajude neste negócio, assistindo o
meu acanhamento com o seu conselho e a sua mediação.
Tenho ânsia de ser feliz; é a melhor ocasião;
entrever, por uma porta aberta, as glórias do paraíso, sem fazer um esforço
para gozar da luz eterna, fora loucura. Não quero para o futuro um remorso e
uma dor.
Conto que as minhas aspirações sejam
satisfeitas e que eu tenha mais um motivo de ser-lhe eternamente grato. —
Fernando.
Daí a dois dias, graças à intervenção do
referido parente, que aliás fora desnecessária, Teresa estava prometida a
Fernando.
O último lance desta simples narrativa
passou-se em casa de Soares.
Soares, mais e mais desconfiado, lutava com
Fernanda para conhecer as disposições do seu coração e as determinações de sua
vontade. Andava escuro o céu daquele casamento, realizado sob tão maus
auspícios. Desde muito que a tranquilidade desaparecera dali, deixando o
desgosto, o tédio, a desconfiança.
— Se eu soubera, dizia Soares, que no fim de
tão pouco tempo a senhora me faria beber fel e vinagre, não teria prosseguido
em uma paixão que foi o meu castigo.
Fernanda, muda e distraída, mirava-se de
quando em quando em um psyché,
corrigindo o penteado ou simplesmente admirando a esquivança desarrazoada de
Fernando.
Soares insistia no mesmo tom meio sentimental.
Afinal, Fernanda respondia desabridamente,
exprobrando-lhe o insulto que fazia à sinceridade dos seus protestos.
— Mas esses protestos, disse Soares, é que eu
não ouço; é exatamente o que eu peço; jure que eu estou em erro e fico
contente. Há uma hora que lho digo.
— Pois sim...
— O quê?
— Está em erro.
— Fernanda, juras-me isso?
— Juro, sim...
Entrou um escravo com uma carta para
Fernanda; Soares deitou um olhar para o sobrescrito e reconheceu a letra de
Fernando. Contudo, depois do juramento de Fernanda não quis ser o primeiro a
ler a carta, esperou que ela começasse.
Mas Fernanda, estremecendo à vista da letra e
do mimo do papel, guardou a carta, mandando embora o escravo.
— De quem é essa carta?
— É de mamãe.
Soares estremeceu.
— Por que não a lês?
— Já sei o que é.
— Oh! é demais!
E levantando-se de sua cadeira dirigiu-se
para Fernanda.
— Vamos ler essa carta.
— Depois...
— Não; há de ser já!
Fernanda resistiu, Soares insistiu. Depois de
algum tempo viu Fernanda que lhe era impossível guardar a carta. E por que a
guardaria? Fernanda cuidava ainda que, melhor avisado, Fernando voltasse a
aceitar o coração ofertado e recusado. A vaidade produzia este erro.
Aberta a carta, eis o que Soares leu:
Mana. Sábado dezessete caso-me eu com D.
Teresa G... É um casamento de amor. Peço-lhe que dê parte disto a meu cunhado,
e que ambos venham ornar a pequena festa desta união. Seu irmão. — Fernando.
A decepção de Fernanda foi grande. Mas pôde
dissimulá-la algum tempo; Soares vendo o conteúdo da carta e acreditando que
sua mulher apenas quisera entretê-lo com um engano, pagou-lhe em beijos e
carícias a felicidade que semelhante descoberta lhe deu.
É inútil dizer que Fernanda não foi assistir
ao casamento de Fernando e Teresa. Pretextou moléstia e lá não pôs os pés. Nem
por isso a festa foi menos brilhante. Madalena estava feliz e contente vendo o
contentamento e a felicidade de seu filho.
Daí para cá, vai para três anos, o casamento
de Fernando e Teresa é um paraíso, em que ambos, novo Adão e nova Eva, gozam da
paz do espírito, sem intervenção da serpente nem conhecimento do fruto do mal.
Não menos feliz é o casal Soares, ao qual
voltaram, depois de algum tempo, os dias saudosos da pieguice e da puerilidade.
Se algum leitor achar esta história muito nua
de interesse, reflita nestas palavras que Fernando repete aos amigos que
costumam visitá-lo:
— Consegui uma das coisas mais raras no
mundo: a perfeita conformidade das intenções e dos sentimentos entre duas
criaturas, tão longe educadas e tanto tempo separadas e desconhecidas uma para
outra. É que aprenderam na escola do infortúnio.
Vê-se, ao menos nisto, uma máxima em ação.
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