Evolução
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Chamo-me Inácio; ele, Benedito. Não digo o resto dos nossos nomes por um sentimento de compostura, que toda a gente discreta apreciará. Inácio basta. Contentem-se com Benedito. Não é muito, mas é alguma coisa, e está com a filosofia de Julieta: “Que valem nomes? perguntava ela ao namorado. A rosa, como quer que se lhe chame, terá sempre o mesmo cheiro.” Vamos ao cheiro do Benedito.
E desde logo assentemos que ele era o menos
Romeu deste mundo. Tinha quarenta e cinco anos, quando o conheci; não declaro
em que tempo, porque tudo neste conto há de ser misterioso e truncado. Quarenta
e cinco anos, e muitos cabelos pretos; para os que o não eram usava um processo
químico, tão eficaz que não se lhe distinguiam os pretos dos outros — salvo ao
levantar da cama; mas ao levantar da cama não aparecia a ninguém. Tudo mais era
natural, pernas, braços, cabeça, olhos, roupa, sapatos, corrente do relógio e
bengala. O próprio alfinete de diamante, que trazia na gravata, um dos mais
lindos que tenho visto, era natural e legítimo, custou-lhe bom dinheiro; eu
mesmo o vi comprar na casa do... lá me ia escapando o nome do joalheiro; —
fiquemos na Rua do Ouvidor.
Moralmente, era ele mesmo. Ninguém muda de
caráter, e o do Benedito era bom, — ou para melhor dizer, pacato. Mas,
intelectualmente, é que ele era menos original. Podemos compará-lo a uma
hospedaria bem afreguesada, aonde iam ter ideias de toda parte e de toda sorte,
que se sentavam à mesa com a família da casa. Às vezes, acontecia acharem-se
ali duas pessoas inimigas, ou simplesmente antipáticas; ninguém brigava, o dono
da casa impunha aos hóspedes a indulgência recíproca. Era assim que ele
conseguia ajustar uma espécie de ateísmo vago com duas irmandades que fundou,
não sei se na Gávea, na Tijuca ou no Engenho Velho. Usava assim,
promiscuamente, a devoção, a irreligião e as meias de seda. Nunca lhe vi as
meias, note-se; mas ele não tinha segredos para os amigos.
Conhecemo-nos em viagem para Vassouras.
Tínhamos deixado o trem e entrado na diligência que nos ia levar da estação à
cidade. Trocamos algumas palavras, e não tardou conversarmos francamente, ao
sabor das circunstâncias que nos impunham a convivência, antes mesmo de saber
quem éramos.
Naturalmente, o primeiro objeto foi o
progresso que nos traziam as estradas de ferro. Benedito lembrava-se do tempo
em que toda a jornada era feita às costas de burro. Contamos então algumas
anedotas, falamos de alguns nomes, e ficamos de acordo em que as estradas de
ferro eram uma condição de progresso do país. Quem nunca viajou não sabe o
valor que tem uma dessas banalidades graves e sólidas para dissipar os tédios
do caminho. O espírito areja-se, os próprios músculos recebem uma comunicação
agradável, o sangue não salta, fica-se em paz com Deus e os homens.
— Não serão os nossos filhos que verão todo
este país cortado de estradas, disse ele.
— Não, decerto. O senhor tem filhos?
— Nenhum.
— Nem eu. Não será ainda em cinquenta anos;
e, entretanto, é a nossa primeira necessidade. Eu comparo o Brasil a uma
criança que está engatinhando; só começará a andar quando tiver muitas estradas
de ferro.
— Bonita ideia! exclamou Benedito
faiscando-lhe os olhos.
— Importa-me pouco que seja bonita, contanto
que seja justa.
— Bonita e justa, redarguiu ele com
amabilidade. Sim, senhor, tem razão: — o Brasil está engatinhando; só começará
a andar quando tiver muitas estradas de ferro.
Chegamos a Vassouras; eu fui para a casa do
juiz municipal, camarada antigo; ele demorou-se um dia e seguiu para o
interior. Oito dias depois voltei ao Rio de Janeiro, mas sozinho. Uma semana
mais tarde, voltou ele; encontramo-nos no teatro, conversamos muito e trocamos
notícias; Benedito acabou convidando-me a ir almoçar com ele no dia seguinte.
Fui; deu-me um almoço de príncipe, bons charutos e palestra animada. Notei que
a conversa dele fazia mais efeito no meio da viagem — arejando o espírito e
deixando a gente em paz com Deus e os homens; mas devo dizer que o almoço pode
ter prejudicado o resto. Realmente era magnífico; e seria impertinência
histórica pôr a mesa de Luculo na casa de Platão. Entre o café e o cognac, disse-me ele, apoiando o
cotovelo na borda da mesa, e olhando para o charuto que ardia:
— Na minha viagem agora, achei ocasião de ver
como o senhor tem razão com aquela ideia do Brasil engatinhando.
— Ah!
— Sim, senhor; é justamente o que o senhor
dizia na diligência de Vassouras. Só começaremos a andar quando tivermos muitas
estradas de ferro. Não imagina como isso é verdade.
E referiu muita coisa, observações relativas
aos costumes do interior, dificuldades da vida, atraso, concordando, porém, nos
bons sentimentos da população e nas aspirações de progresso. Infelizmente, o
governo não correspondia às necessidades da pátria; parecia até interessado em
mantê-la atrás das outras nações americanas. Mas era indispensável que nos
persuadíssemos de que os princípios são tudo e os homens nada. Não se fazem os
povos para os governos, mas os governos para os povos; e abyssus abyssum invocat.
Depois foi mostrar-me outras salas. Eram todas alfaiadas com apuro. Mostrou-me
as coleções de quadros, de moedas, de livros antigos, de selos, de armas; tinha
espadas e floretes, mas confessou que não sabia esgrimir. Entre os quadros vi
um lindo retrato de mulher; perguntei-lhe quem era. Benedito sorriu.
— Não irei adiante, disse eu sorrindo também.
— Não, não há que negar, acudiu ele; foi uma
moça de quem gostei muito. Bonita, não? Não imagina a beleza que era. Os lábios
eram mesmo de carmim e as faces de rosa; tinha os olhos negros, cor da noite. E
que dentes! Verdadeiras pérolas. Um mimo da natureza.
Em seguida, passamos ao gabinete. Era vasto,
elegante, um pouco trivial, mas não lhe faltava nada. Tinha duas estantes,
cheias de livros muito bem encadernados, um mapa-múndi, dois mapas do Brasil. A
secretária era de ébano, obra fina; sobre ela, casualmente aberto, um almanaque
de Laemmert. O tinteiro era de cristal, — “cristal de rocha”, disse-me ele,
explicando o tinteiro, como explicava as outras coisas. Na sala contígua havia
um órgão. Tocava órgão, e gostava muito de música, falou dela com entusiasmo,
citando as óperas, os trechos melhores, e noticiou-me que, em pequeno, começara
a aprender flauta; abandonou-a logo, — o que foi pena, concluiu, porque é, na
verdade, um instrumento muito saudoso. Mostrou-me ainda outras salas, fomos ao
jardim, que era esplêndido, tanto ajudava a arte à natureza, e tanto a natureza
coroava a arte. Em rosas, por exemplo, (não há negar, disse-me ele, que é a
rainha das flores) em rosas, tinha-as de toda casta e de todas as regiões.
Saí encantado. Encontramo-nos algumas vezes,
na rua, no teatro, em casa de amigos comuns, tive ocasião de apreciá-lo. Quatro
meses depois fui à Europa, negócio que me obrigava a ausência de um ano; ele
ficou cuidando da eleição; queria ser deputado. Fui eu mesmo que o induzi a
isso, sem a menor intenção política, mas com o único fim de lhe ser agradável;
mal comparando, era como se lhe elogiasse o corte do colete. Ele pegou da ideia,
e apresentou-se. Um dia, atravessando uma rua de Paris, dei subitamente com o
Benedito.
— Que é isto? exclamei.
— Perdi a eleição, disse ele, e vim passear à
Europa.
Não me deixou mais; viajamos juntos o resto
do tempo. Confessou-me que a perda da eleição não lhe tirara a ideia de entrar
no parlamento. Ao contrário, incitara-o mais. Falou-me de um grande plano.
— Quero vê-lo ministro, disse-lhe.
Benedito não contava com esta palavra, o
rosto iluminou-se-lhe; mas disfarçou depressa.
— Não digo isso, respondeu. Quando, porém,
seja ministro, creia que serei tão-somente ministro industrial. Estamos fartos
de partidos: precisamos desenvolver as forças vivas do país, os seus grandes
recursos. Lembra-se do que nós dizíamos na diligência de Vassouras? O Brasil
está engatinhando; só andará com estradas de ferro...
— Tem razão, concordei um pouco espantado. E
por que é que eu mesmo vim à Europa? Vim cuidar de uma estrada de ferro. Deixo
as coisas arranjadas em Londres.
— Sim?
— Perfeitamente.
Mostrei-lhe os papéis, ele viu-os
deslumbrado. Como eu tivesse então recolhido alguns apontamentos, dados
estatísticos, folhetos, relatórios, cópias de contratos, tudo referente a
matérias industriais, e lhos mostrasse, Benedito declarou-me que ia também
coligir algumas coisas daquelas. E, na verdade, vi-o andar por ministérios,
bancos, associações, pedindo muitas notas e opúsculos, que amontoava nas malas;
mas o ardor com que o fez, se foi intenso, foi curto; era de empréstimo.
Benedito recolheu com muito mais gosto os anexins políticos e fórmulas
parlamentares. Tinha na cabeça um vasto arsenal deles. Nas conversas comigo
repetia-os muita vez, à laia de experiência; achava neles grande prestígio e
valor inestimável. Muitos eram de tradição inglesa, e ele os preferia aos
outros, como trazendo em si um pouco da Câmara dos Comuns. Saboreava-os tanto que
eu não sei se ele aceitaria jamais a liberdade real sem aquele aparelho verbal;
creio que não. Creio até que, se tivesse de optar, optaria por essas formas
curtas, tão cômodas, algumas lindas, outras sonoras, todas axiomáticas, que não
forçam a reflexão, preenchem os vazios, e deixam a gente em paz com Deus e os
homens.
Regressamos juntos; mas eu fiquei em
Pernambuco, e tornei mais tarde a Londres, donde vim ao Rio de Janeiro, um ano
depois. Já então Benedito era deputado. Fui visitá-lo; achei-o preparando o
discurso de estreia. Mostrou-me alguns apontamentos, trechos de relatórios,
livros de economia política, alguns com páginas marcadas, por meio de tiras de
papel rubricadas assim: — Câmbio, Taxa das terras, Questão dos cereais em Inglaterra, Opinião de Stuart Mill, Erro
de Thiers sobre caminhos de ferro,
etc. Era sincero, minucioso e cálido. Falava-me daquelas coisas, como se
acabasse de as descobrir, expondo-me tudo, ab
ovo; tinha a peito mostrar aos homens práticos da Câmara que também ele era
prático. Em seguida, perguntou-me pela empresa; disse-lhe o que havia.
— Dentro de dois anos conto inaugurar o
primeiro trecho da estrada.
— E os capitalistas ingleses?
— Que tem?
— Estão contentes, esperançados?
— Muito; não imagina.
Contei-lhe algumas particularidades técnicas,
que ele ouviu distraidamente, — ou porque a minha narração fosse em extremo
complicada, ou por outro motivo. Quando acabei, disse-me que estimava ver-me
entregue ao movimento industrial; era dele que precisávamos, e a este propósito
fez-me o favor de ler o exórdio do discurso que devia proferir dali a dias.
— Está ainda em borrão, explicou-me; mas as ideias
capitais ficam. E começou:
No meio da agitação crescente dos espíritos,
do alarido partidário que encobre as vozes dos legítimos interesses, permiti
que alguém faça ouvir uma súplica da nação. Senhores, é tempo de cuidar
exclusivamente, — notai que digo exclusivamente, — dos melhoramentos materiais
do país. Não desconheço o que se me pode replicar; dir-me-eis que uma nação não
se compõe só de estômago para digerir, mas de cabeça para pensar e de coração
para sentir. Respondo-vos que tudo isso não valerá nada ou pouco, se ela não
tiver pernas para caminhar; e aqui repetirei o que, há alguns anos, dizia eu a
um amigo, em viagem pelo interior: o Brasil é uma criança que engatinha; só
começará a andar quando estiver cortado de estradas de ferro...
Não pude ouvir mais nada e fiquei pensativo.
Mais que pensativo, fiquei assombrado, desvairado diante do abismo que a
psicologia rasgava aos meus pés. Este homem é sincero, pensei comigo, está
persuadido do que escreveu. E fui por aí abaixo até ver se achava a explicação
dos trâmites por que passou aquela recordação da diligência de Vassouras. Achei
(perdoem-me se há nisto enfatuação), achei ali mais um efeito da lei da
evolução, tal como a definiu Spencer, — Spencer ou Benedito, um deles.
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