Eterno!
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
— Não me expliques nada, disse eu entrando no quarto; é o negócio da Baronesa.
Norberto enxugou os olhos e sentou-se na
cama, com as pernas pendentes. Eu, cavalgando uma cadeira, pousei a barba no
dorso, e proferi este breve discurso:
— Mas, meu pateta, quantas vezes queres que
te diga que acabes com essa paixão ridícula e humilhante? Sim, senhor,
humilhante e ridícula, porque ela não faz caso de ti; e demais, é arriscado.
Não? Verás se o é, quando o Barão desconfiar que lhe arrastas a asa à mulher.
Olha que ele tem cara de maus bofes.
Norberto meteu as unhas na cabeça,
desesperado. Tinha-me escrito cedo, pedindo que fosse confortá-lo e dar-lhe
algum conselho; esperara-me na rua, até perto de uma hora da noite, defronte da
casa de pensão em que eu morava; contava-me na carta que não dormira, que
recebera um golpe terrível, falava em atirar-se ao mar. Eu, apesar de outro
golpe que também recebera, acudi ao meu pobre Norberto. Éramos da mesma idade,
estudávamos medicina, com a diferença que eu repetia o terceiro ano, que
perdera, por vadio. Norberto vivia com os pais; não me cabendo igual fortuna,
por havê-los perdido, vivia de uma mesada que me dava um tio da Bahia e das
dívidas que o bom velho pagava semestralmente. Pagava-as, e escrevia-me logo
uma porção de coisas amargas, concluindo sempre que, pelo menos, fosse
estudando até ser doutor. Doutor, para quê? dizia comigo. Pois se nem o sol, nem
a lua, nem as moças, nem os bons charutos Vilegas eram doutores, que
necessidade tinha eu de o ser? E tocava a rir, a folgar, a deixar correr
semanas e credores.
Falei de um golpe recebido. Era uma carta do
tio, vinda com a do Norberto, naquela mesma manhã. Abri-a antes da outra, e
li-a com pasmo. Já me não tuteava; dizia cerimoniosamente: "Sr. Simeão
Antônio de Barros, estou farto de gastar à toa o meu dinheiro com o senhor. Se
quiser concluir os estudos, venha matricular-se aqui, e morar comigo. Se não, procure
por si mesmo recursos; não lhe dou mais nada." Amarrotei o papel, finquei
os olhos numa litografia muito ruim do Visconde de Sepetiba, que já achei
pendente de um prego, no meu quarto de pensão, e disse-lhe os nomes mais feios,
de maluco para baixo. Bradei que podia guardar o seu dinheiro, que eu tinha
vinte anos, — o primeiro dos direitos do homem, anterior aos tios e outras
convenções sociais.
A imaginação, madre amiga, apontou-me logo
uma infinidade de recursos, que bastavam a dispensar os magros cobres de um
velho avarento; mas, passada essa primeira impressão, e relida a carta, entrei
a ver que a solução era mais árdua do que parecia. Os recursos podiam ser bons
e até certos; mas eu estava tão afeito a ir à Rua da Quitanda receber a pensão
mensal e a gastá-la em dobro, que mal podia adotar outro sistema.
Foi neste ponto que abri a carta do amigo
Norberto e corri à casa dele. Já sabem o que lhe disse; viram que ele meteu as
unhas na cabeça, desesperado. Saibam agora que, depois do gesto, disse com
olhar sombrio que esperava de mim outros conselhos.
— Quais?
Não me respondeu.
— Que compres uma pistola ou uma gazua? algum
narcótico?
— Para que estás caçoando comigo?
— Para fazer-te homem.
Norberto deu de ombros, com um laivozinho de
escárnio ao canto da boca. Que homem? Que era ser homem senão amar a mais
divina criatura do mundo e morrer por ela?
A Baronesa de Magalhães, causa daquela
demência, viera pouco antes da Bahia, com o marido, que antes do baronato,
adquirido para satisfazer a noiva, era Antônio José Soares de Magalhães. Vinham
casados de fresco; a Baronesa tinha menos trinta anos que o Barão; ia em vinte
e quatro. Realmente era bela. Chamavam-lhe, em família, Iaiá Lindinha. Como o
Barão era velho amigo do pai de Norberto, as duas famílias uniram-se desde
logo.
— Morrer por ela? disse eu.
Jurou-me que sim; era capaz de matar-se.
Mulher misteriosa! A voz dela entrava-lhe pelos ossos... E, dizendo isto,
rolava na cama, batia com a cabeça, mordia os travesseiros. Às vezes, parava,
arquejando; logo depois tornava às mesmas convulsões, abafando os soluços e os
gritos, para que os não ouvissem do primeiro andar.
Já acostumado às lágrimas do meu amigo, desde
a vinda da Baronesa, esperei que elas acabassem, mas não acabavam. Descavalguei
a cadeira, fui a ele, bradei-lhe que era uma criançada, e despedi-me; Norberto
pegou-me na mão, para que ficasse, não me tinha dito ainda o principal.
— É verdade; que é?
— Vão-se embora. Estivemos lá ontem, e ouvi
que embarcam sábado.
— Para a Bahia?
— Sim.
— Então, vão comigo.
Contei-lhe o caso da carta, e as ordens de
meu tio para ir matricular-me na Bahia, e estudar ao pé dele. Norberto
escutou-me alvoroçado. Na Bahia? Iríamos juntos; éramos íntimos, os pais não
recusariam este favor à nossa jovem amizade. Confesso que o plano pareceu-me
excelente, e demo-nos a ele com afinco. A mãe, apesar de muita lágrima que
teria de verter ao despegar-se do filho, cedeu mais prontamente do que
supúnhamos. O pai é que não cedeu nada. Não houve rogos nem empenhos; o próprio
Barão, que eu tive a arte de trazer ao nosso propósito, não alcançou do velho
amigo que deixasse ir o filho, nem ainda com a promessa de o aposentar em casa
e velar por ele. O pai foi inflexível.
Podem imaginar o desespero do meu amigo. Na
noite de sexta-feira esteve em casa dela, com a família, até onze horas; mas,
com o pretexto de passar comigo a última noite da minha estada aqui, veio
realmente chorar tantas e tais lágrimas, como nunca as vi chorar jamais, nem
antes nem depois. Não podia descrer da paixão, nem presumir consolá-la; era a
primeira. Até então, ambos nós só conhecíamos os trocos miúdos do amor; e, por
desgraça dele a primeira moeda grande que achara, não era ouro nem prata, senão
ferro, duro ferro, como a do velho Licurgo, forjada como mesmo amargo vinagre.
Não dormimos. Norberto chorava,
arrepelava-se, pedia a morte, construía planos absurdos ou terríveis. Eu,
arranjando as malas, ia-lhe dizendo alguma coisa que o consolasse; era pior,
era como se falasse de dança a uma perna dolorida. Consegui que fumasse um
cigarro, depois outro, e afinal fumou-os às dúzias, sem acabar nenhum. Às três
horas tratava do modo de fugir ao Rio de Janeiro, — não logo, mas daí a dias,
no primeiro vapor. Tirei-lhe essa ideia da cabeça unicamente no interesse dele
próprio.
— Ainda se fosse útil, vá, disse-lhe eu; mas
ir sem certeza de nada, ir dar com o nariz na porta, porque a mulher, se não
gosta de ti, e te vê lá, é capaz de perceber logo o motivo da tua viagem, e não
te recebe.
— Que sabes tu?
— Pode receber-te, mas não há certeza, acho
eu. Crês que ela goste de ti?
— Não digo que sim, nem que não.
Contou-me episódios, gestos, ditos, coisas
ambíguas ou insignificantes; depois vinha uma reticência de lágrimas, murros no
peito, clamor de angústia, a dor ia-se-me comunicando; padecia com ele, a razão
cedia à compaixão, as nossas naturezas fundiam-se em uma só lástima. Daí esta
promessa que lhe fiz.
— Tenho uma ideia. Vou com eles, já nos
conhecemos, é provável que frequente a casa; eu então farei uma coisa: sondo-a
a teu respeito. Se vir que nem pensa em ti, escrevo-te francamente que penses
em outra coisa; mas se achar alguma inclinação, pouca que seja, aviso-te, e, ou
por bem ou por mal, embarca.
Norberto aceitou alvoroçado a proposta; era
uma esperança. Fez-me jurar que cumpriria tudo, que a observaria bem, sem
temor, e, pela sua parte, jurou-me que não hesitaria um instante. E teimava
comigo que não perdesse nada; que, às vezes, um indício pequeno valia muito,
uma palavrinha era um livro; que, se pudesse, aludisse ao desespero em que o
deixava. Para peitar a minha sagacidade, afirmou que o desengano matá-lo-ia,
porque esse amor, eterno como era, iria fartar-se na morte e na eternidade. Não
achei boca para replicar-lhe que isto era o mesmo que obrigar-me a só mandar
boas notícias. Naquela ocasião, apenas sabia chorar com ele.
A aurora registrou o nosso pacto imoral. Não
consenti que ele fosse a bordo despedir-se. Parti. Não falemos da viagem... Ó
mares de Homero, flagelados por Euros, Bóreas e o violento Zéfiro, mares
épicos, podeis sacudir Ulisses, mas não lhe dais as aflições do enjoo. Isso é
bom para os mares de agora, e particularmente para aqueles que me levaram daqui
à Bahia. Só depois de chegar ante a cidade, ousei aparecer à nossa dona magnífica,
tão senhora de si, como se acabasse de dar um passeio apenas longo.
— Não tem saudades do Rio de Janeiro?
disse-lhe eu logo, de introito.
— Certamente.
O Barão veio indicar-me os lugares que a
gente via do paquete, — ou a direção de outros. Ofereceu-me a casa dele, no
Bonfim. Meu tio veio a bordo, e, por mais que quisesse fazer-se tétrico,
senti-lhe o coração amigo. Via-me, único filho da irmã finada, — e via-me
obediente. Não podia haver para mim melhores impressões de entrada. Divina
juventude! as coisas novas pagavam-me em dobro as coisas velhas.
Dei os primeiros dias ao conhecimento da
cidade; mas não tardou que uma carta o meu amigo Norberto me chamasse a atenção
para ele. Fui ao Bonfim. A Baronesa — ou Iaiá Lindinha, que era ainda o nome
dado por toda a gente, — recebeu-me com tanta graça, e o marido era tão
hospedeiro e bom, que me envergonhei da particular comissão que trazia. Mas
durou pouco a vergonha, vi o desespero do meu amigo, e a necessidade de
consolá-lo ou desenganá-lo era superior a qualquer outra consideração. Confesso
até uma singularidade; agora que estavam separados entrou-me na alma a
esperança de que ela não desgostasse dele, — justamente o que eu negava antes.
Talvez fosse o desejo de o ver feliz; podia ser uma instigação da vaidade que
me acenasse com a vitória em favor do desgraçado.
Naturalmente, conversamos do Rio de Janeiro.
Eu dizia-lhe as minhas saudades, falava das coisas que estava acostumado a ver,
das ruas que faziam parte da minha pessoa, das caras de todos os dias das
casas, das afeições... Oh! As afeições eram os laços mais apertados. Tinha
amigos: os pais de Norberto...
— Dois santos, interrompeu a moça; meu
marido, que conhece o velho desde muitos anos, conta dele coisas curiosas. Sabe
que casou por uma paixão fortíssima?
— Adivinha-se. O filho é o fruto expressivo
do amor dos dois. Conheceu bem o meu pobre Norberto?
— Conheci; ia lá à casa muitas vezes.
— Não conheceu.
Iaiá Lindinha franziu levemente a testa.
— Perdoe-me se a desminto, continuei com
vivacidade. Não conheceu a melhor alma, a mais pura e a mais ardente que Deus
criou. Talvez que ache parcial por ser amigo. A verdade é que ninguém me prende
mais ao Rio de Janeiro. Coitado do meu Norberto! Não imagina que homem talhado
para dois ofícios ao mesmo tempo, arcanjo e herói, — para dizer à terra as
delícias do céu, e para escalar o céu, se for preciso ir lá levar as
lamentações humanas...
Só no fim desta fala compreendi que era
ridícula. Iaiá Lindinha, ou não a entendeu assim, ou disfarçou a opinião;
disse-me somente que a minha amizade era entusiasta, mas que o meu amigo
parecia boa pessoa. Não era alegre, ou tinha crises melancólicas. Disseram-lhe
que ele estudava muito...
— Muito.
Não insisti para não atropelar os
acontecimentos... Que o leitor me não condene sem remissão nem agravo. Sei que
o papel que eu fazia não era bonito; mas já lá vão vinte e sete anos. Confio do
Tempo, que é um insigne alquimista. Dá-se-lhe um punhado de lodo, ele o
restitui em diamantes; quando menos, em cascalho. Assim é que, se um homem de
Estado escrever e publicar as suas memórias, tão sem escrúpulo, que lhes não
falte nada, nem confidências pessoais, nem segredos do governo, nem até amores,
amores particularíssimos e inconfessáveis, verá que escândalo levanta o livro.
Dirão, e dirão bem, que o autor é um cínico, indigno dos homens que confiaram
nele e das mulheres que o amaram. Clamor sincero e legítimo, porque o caráter
público impõe muitos resguardos; os bons costumes e o próprio respeito às
mulheres amadas constrangem ao silêncio...
... Mas deixai pingar os anos na cuba de um
século. Cheio o século, passa o livro a documento histórico, psicológico,
anedótico. Hão de lê-lo a frio; estudar-se-á nele a vida íntima do nosso tempo,
a maneira de amar, a de compor os ministérios e deitá-los abaixo, se as
mulheres eram mais animosas que dissimuladas, como é que se faziam eleições e
galanteios, se eram usados xales ou capas, que veículos tínhamos, se os
relógios eram trazidos à direita ou à esquerda, e multidão de coisas interessantes
para a nossa história pública e íntima. Daí a esperança que me fica, de não ser
condenado absolutamente pela consciência dos que me leem. Já lá vão vinte e
sete anos!
Gastei mais de meio em bater à porta daquele
coração, a ver se lá achava o Norberto; mas ninguém me respondia de dentro, nem
o próprio marido. Não obstante, as cartas que mandava ao meu pobre amigo, se
não levavam esperanças, também não levavam desenganos. Houve-as até mais
esperançosas que desenganadas. A afeição que lhe tinha e o meu amor-próprio
conjugavam as forças todas para espertar nela a curiosidade e a sedução de um
mistério remoto e possível.
Já então as nossas relações eram familiares.
Visitava-os a miúdo. Quando lá não ia três noites seguidas, vivia aflito e
inquieto; corria a vê-los na quarta noite, e era ela que me esperava ao portão
da chácara, para dizer-me nomes feios, ingrato, preguiçoso, esquecido. Os nomes
foram cessando, mas a pessoa não deixava de estar ali à espera, com a mão
prestes a apertar a minha, — às vezes, trêmula, — ou seria a minha que tremia;
não sei.
— Amanhã não posso vir, dizia-lhe algumas
noites, à despedida, baixo, no vão de uma janela.
— Por quê?
Explicava-lhe a causa, estudo ou alguma
obrigação de meu tio. Nunca tentou dissuadir-me de promessa, mas ficava
desconsolada. Comecei a escrever menos ao Norberto e a falar pouco de Iaiá
Lindinha, como quem não ia à casa dela. Tinha fórmulas diferentes: "Ontem
encontrei o Barão no largo do Palácio; disse-me que a mulher está boa". Ou
então: "Sabes quem vi há três dias no teatro? A Baronesa". Não relia
as cartas, para não encarar a minha hipocrisia. Ele, pela sua parte, também ia
escrevendo menos, e bilhetes curtos. Entre mim e a moça não aparecia mais o
nome de Norberto; convencionamos, sem palavras, que era um defunto, e um triste
defunto sem galas mortuárias.
Beirávamos o abismo, ambos teimando que era
um reflexo da cúpula celeste, — incongruência para os que não andam namorados.
A morte resolveu o problema, levando consigo o Barão, por meio de um ataque de
apoplexia, no dia vinte e três de março de 1861, às seis horas da tarde. Era um
excelente homem, a quem a viúva pagou em preces o que lhe não dera em amor.
Quando eu lhe pedi, três meses depois, que,
acabado o luto, casasse comigo, Iaiá Lindinha não estranhou nem me despediu. Ao
contrário, respondeu que sim, mas não tão cedo; punha uma condição: que
concluísse primeiro os estudos, que me formasse. E disse isto com os mesmos
lábios, que pareciam ser o único livro do mundo, o livro universal, a melhor
das academias, a escola das escolas. Apelei dela para ela; escutou-me
inflexível. A razão que me deu foi que meu tio podia recear que, uma vez
casado, interromperia a carreira.
— E com razão, concluiu. Ouça-me: só me caso
com um doutor.
Cumprimos ambos a promessa. Durante algum
tempo andou ela pela Europa, com uma cunhada e o marido desta; e as saudades
foram então as minhas disciplinas mais duras. Estudei pacientemente;
despeguei-me de todas as vadiações antigas. Recebi o capelo na véspera da
bênção matrimonial; e posso dizer, sem hipocrisia, que achei o latim do padre
muito superior ao discurso acadêmico.
Semanas depois, pediu-me Iaiá Lindinha que
viéssemos ao Rio de Janeiro. Cedi ao pedido, confesso que um pouco atordoado.
Cá viria achar o meu amigo Norberto, se é que ele ainda residia aqui. Ia em
mais de três anos que nos não escrevíamos; já antes disso as nossas cartas eram
breves e sem interesse. Saberia do nosso casamento? Dos precedentes? Viemos;
não contei nada a minha mulher.
Para quê? Era dar-lhe notícia de uma
aleivosia oculta, dizia comigo. Ao chegar, pus esta questão a mim mesmo, se
esperaria a visita dele, se iria visitá-lo antes; escolhi o segundo alvitre,
para avisá-lo das coisas. Engenhei umas circunstâncias especiais, curiosas,
acarretadas pela Providência, cujos fios ficam sempre ocultos aos homens. Não
me ria, note-se bem; minha imaginação compunha tudo isso com seriedade.
No fim de quatro dias, soube que Norberto
morava para os lados do Rio Comprido; estava casado. Tanto melhor. Corri a casa
dele. Vi no jardim uma preta amamentando uma criança, outra criança de ano e
meio, que recolhia umas pedrinhas do chão, acocorada.
— Nhô Bertinho, vai dizer a mamãe que está
aqui um moço procurando papai.
O menino obedeceu; mas, antes que voltasse,
chegava de fora o meu velho amigo Norberto. Conheci-o logo, apesar das grandes
suíças que usava; lançamo-nos nos braços um do outro.
— Tu aqui? Quando chegaste?
— Ontem.
— Estás mais gordo, meu velho! Gordo e
bonito. Entremos. Que é? continuou ele inclinando-se para Nhô Bertinho, que lhe
abraçava uma das pernas.
Pegou dele, alçou-o, deu-lhe trinta mil
beijos ou pouco menos; depois, tendo-o num braço, apontou para mim.
— Conheces este moço?
Nhô Bertinho olhava espantado, com o dedo na
boca. O pai contou-lhe então que eu era um amigo de papai, muito amigo, desde o
tempo em que vovô e vovó eram vivos...
— Teus pais morreram?
Norberto fez-me sinal que sim, e acudiu ao
filho, que com as mãozinhas espalmadas pegava da cara do pai, pedindo-lhe mais
beijos. Depois, foi à criança que mamava, não a tirou do regaço da ama, mas
disse-lhe muitas coisas ternas, chamou-me para vê-la; era uma menina. Revia-se
nela, encantado. Tinha cinco meses por ora; mas se eu voltasse ali quinze anos
depois, veria que mocetona. Que bracinhos! que dedos gordos! Não podendo
ter-se, inclinou-se e beijou-a.
— Entra, anda ver minha mulher. Jantas
conosco.
— Não posso.
— Mamãe, está espiando, disse Nhô Bertinho.
Olhei, vi uma moça à porta da sala, que dava
para o jardim; a porta estava aberta, ela esperava-nos. Subimos os cinco
degraus; entramos na sala. Norberto pegou-lhe nas mãos, e deu-lhes dois beijos.
A moça quis recuar, não pôde, ficou muito corada.
— Não te vexes, Carmela, disse ele. Sabes
quem é este sujeito? É aquele Barros de quem te falei muitas vezes, um Simeão,
estudante de medicina... A propósito, por que é que não me respondeste à
participação do casamento?
— Não recebi nada, respondi.
— Pois afirmo que foi pelo correio.
Carmela ouvia o marido com admiração; ele
tanto fez, que foi sentar-se ao pé dela, para lhe reter a mão, às escondidas.
Eu fingia não ver nada; falava dos tempos acadêmicos, de alguns amigos, da
política, da guerra, tudo para evitar que ele me perguntasse se estava ou não
casado. Já me arrependia de ter ido ali; que lhe diria, se ele tocasse ao ponto
e indagasse da pessoa? Não me falou em nada; talvez soubesse tudo.
A conversação prolongou-se; mas eu teimei em
sair, e levantei-me; Carmela despediu-se de mim com muita afabilidade. Era
bela; os olhos pareciam dar-lhe um resplendor de santa. Certo é que o marido
tinha-lhe adoração.
— Viste-a bem? perguntou-me ele à porta do
jardim. Não te digo o sentimento que nos prende, estas coisas sentem-se, não se
exprimem. De que sorris? Achas-me naturalmente criança. Creio que sim; criança
eterna, como é eterno o meu amor.
Entrei no tílburi, prometendo ir lá jantar um
daqueles dias.
— Eterno! disse comigo. Tal qual o amor que
ele tinha a minha mulher.
E, voltando-me para o cocheiro,
perguntei-lhe:
— O que é eterno?
— Com perdão de vossa senhoria, acudiu ele,
mas eu acho que eterno é o fiscal da minha rua, um maroto que, se não lhe
quebro a cara um destes dias, a minha alma se não salve. Pois o maroto parece
eterno no lugar; tem aí não sei que compadres... Outros dizem que... Não me
meto nisso... Lá quebrar-lhe a cara...
Não ouvi o resto: fui mergulhando em mim
mesmo, ao zunzum do cocheiro. Quando dei por mim, estava na Rua da Glória. O
demônio continuava a falar; paguei, e desci até à Praia da Glória, meti-me pela
do Russell e fui sair à do Flamengo. O mar batia com força. Moderei o passo, e
pus-me a olhar para as ondas que vinham ali bater e morrer. Cá dentro,
ressoava, como um trecho musical, a pergunta que fizera ao cocheiro: O que é
eterno? As ondas, mais discretas que ele, não me contaram os seus particulares,
vinham vindo, morriam, vinham vindo, morriam.
Cheguei ao Hotel de Estrangeiros ao declinar
da tarde. Minha mulher esperava-me para jantar. Eu, ao entrar no quarto,
peguei-lhe das mãos, e perguntei-lhe:
— O que é eterno, Iaiá Lindinha?
Ela, suspirando:
— Ingrato! é o amor que te tenho.
Jantei sem remorsos; ao contrário, tranquilo
e jovial. Coisas do Tempo! Dá-se-lhe um punhado de lodo, ele o restitui em
diamantes...
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...