Esta minha letra...
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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A minha letra é um bilhete de
loteria. Às vezes ela me dá muito, outras vezes tira-me os últimos tostões da
minha inteligência. Eu devia esta explicação aos meus leitores, porque, sob a
minha responsabilidade, tem saído cada coisa de se tirar o chapéu. Não há
folhetim em que não venham coisas extraordinárias. Se, às vezes, não me põe mal
com a gramática, põe-me em hostilidade com o bom-senso e arrasta-me a dizer
coisas descabidas. Ainda no último folhetim, além de um ou dois períodos
completamente truncados e outras coisas, ela levou à compreensão dos meus raros
leitores — grandeza — quando se tratava de pândega; num artigo que publiquei há
dias na Estação Teatral, este então
totalmente empastelado, havia coisas do arco-da-velha.
Aqui já saiu um folhetim meu,
aquele que eu mais estimo, “Os galeões do México”, tão truncado, tão doido, que
mais parecia delírio que coisa de homem são de espírito. Tive medo de ser
recolhido ao hospício...
Que ela me levasse a incorrer na
crítica gramatical da terra, vá; mas que me leve a dizer coisas contra a clara
inteligência das coisas, contra o bom-senso e o pensar honesto e com plena
consciência do que estou fazendo! E não sei a razão por que a minha letra me
trai de maneira tão insólita e inesperada. Não digo que sejam os tipógrafos ou
os revisores; eu não digo que sejam eles que me fazem escrever “a exposição de
palavras sinistras” quando se tratava de “exposição de projetos sinistros”.
Não, não são eles, absolutamente não são eles. Nem eu. É a minha letra.
Estou nesta posição absolutamente
inqualificável, original e pouco classificável: um homem que pensa uma coisa,
quer ser escritor, mas a letra escreve outra coisa e asnática. Que hei de
fazer?
Eu quero ser escritor, porque
quero e estou disposto a tomar na vida o lugar que colimei. Queimei os meus
navios; deixei tudo, tudo, por essas coisas de letras.
Não quero aqui fazer a minha
biografia; basta, penso eu, que lhes diga que abandonei todos os caminhos, por
esse das letras; e o fiz conscientemente, superiormente, sem nada de mais forte
que me desviasse de qualquer outra ambição; e agora vem essa coisa de letra,
esse último obstáculo, esse premente pesadelo, e não sei que hei de fazer!
Abandonar o propósito; deixar a
estrada desembaraçada a todos os gênios explosivos e econômicos de que esses
Brasis e os políticos nos abarrotam?
É duro fazê-lo, depois de quase
dez anos de trabalho, de esforço contínuo e — por que não dizer? — de estudo,
sofrimento e humilhações. Mude de letra, disse-me alguém.
É curioso. Como se eu pudesse
ficar bonito, só pelo fato de querer.
Ora, esse meu conselheiro é um
dos homens mais simples que eu conheço. Mudar de letra! Onde é que ele viu
isso? Com certeza ele não disse isso ao Sr. Alcindo Guanabara, cuja letra é
famosa nos jornais. Que o fizesse, com certeza, ele não diria ao Sr. Machado de
Assis também. O motivo é simples: o Sr. Alcindo é o chefe, é príncipe do
jornalismo, é deputado; e Machado de Assis era grande chanceler das letras,
homem aclamado e considerado; ambos, portanto, não podiam mudar de letra; mas
eu, pobre autor de um livreco, eu que não sou nem doutor em qualquer história —
eu, decerto, tenho o dever e posso mudar de letra.
Outro conselheiro (são sempre
pessoas a quem faço reclamações sobre os erros) disse-me: escreva em máquina.
Ponho de parte o custo de um desses desgraciosos aparelhos, e lembro aqui os
senhores que aquilo é fatigante, cansa muito e obrigava-me ao trabalho
nauseante de fazer um artigo duas vezes: escrever a pena e passar a limpo em
máquina.
O mais interessante é que a minha
letra, além de me ter emprestado uma razoável estupidez, fez-me arranjar
inimigos. Não tenho a indiferença que toda a gente tem pelos inimigos; se não
tenho medo, não sou neutro diante deles; mas isso de ter inimigos só por causa
da letra, é de espantar, é de mortificar.
Já não posso entrar na revisão e
nas oficinas aqui da casa. Logo na entrada percebo a hostilidade muda contra
mim e me apavoro. Se fosse no cenáculo do Garnier ou em outro qualquer, seria
bom; se fosse mesmo no salão literário do Coelho Neto, eu ficaria contente;
entre aqueles homens simples, porém, com os quais eu não compito em nada, é
para a gente julgar-se um monstro, um peste, um flagelo. E tudo isso por quê?
Por causa da minha letra. Desespero decididamente.
De manhã, quando recebo a Gazeta ou outra publicação em que haja
coisas minhas, eu me encho de medo, e é com medo que começo a ler o artigo que
firmo com a responsabilidade do meu humilde nome. A continuação da leitura é
então um suplício. Tenho vontade de chorar, de matar, de suicidar-me; todos os
desejos me passam pela alma e todas as tragédias vejo diante dos olhos. Salto
da cadeira, atiro o jornal ao chão, rasgo-o; é um inferno.
Eu não sei se todos nos jornais
têm boa caligrafia. Certamente, hão de ter e os seus originais devem chegar à
tipografia quase impressos. Nas letras, porém, não é assim.
Eu não cito autores, porque citar
autores só se pode fazer aos ilustres, e seria demasia eu me pôr em paralelo
com eles, mesmo sendo em negócio de caligrafia. Deixo-os de parte e só quero
lembrar os que escreveram grandes obras, belas, corretas, até ao ponto em que
as coisas humanas podem ser perfeitas. Como conseguiram isso?
Não sei; mas há de haver quem o
saiba e espero encontrar esse alguém para explicar-me.
De tal modo essa questão de letra
está implicando com o meu futuro que eu já penso em casar-me. Hão de
surpreender-se em ver estas duas coisas misturadas: boa letra e casamento. O
motivo é muito simples e vou explicar a gênese da associação com toda a clareza
de detalhes.
Foi um dia destes. Eu vinha de
trem muito aborrecido porque saíra o meu folhetim todo errado. O aspecto
desordenado dos nossos subúrbios ia se desenrolando aos meus olhos; o trem se
enchia da mais fina flor da aristocracia dos subúrbios. Os senhores com certeza
não sabiam que os subúrbios têm uma aristocracia.
Pois têm. É uma aristocracia
curiosa, em cuja composição entrou uma grande parte dos elementos médios da
cidade inteira: funcionários de pequena categoria, chefes de oficinas, pequenos
militares, médicos de fracos rendimentos, advogados sem causa etc.
Iam entrando com a “morgue” que
caracteriza uma aristocracia de tal antiguidade e tão fortes rendimentos,
quando uma moça, carregada de lápis, penas, réguas, cadernos, livros, entrou
também e veio sentar-se a meu lado.
Não era feia, mas não era bela.
Tinha umas feições miúdas, um triste olhar pardo de fraco brilho, uns cabelos
pouco abundantes, um colo deprimido e pouco cheio. Tudo nela era pequenino,
modesto; mas era, afinal, bonitinha, como lá dizem os namorados.
Olhei-a com o temor com que
sempre olho as damas e continuei a mastigar as minhas mágoas.
Num dado momento, ela puxou um
dos muitos cadernos que trazia, abriu-o, dobrou-o e pôs-se a ler. Que não me
levem a mal o Binóculo e a Nota Chic e não deitem por isso excomunhão sobre
mim! Sei bem que não é de boa educação ler o que os outros estão lendo ao nosso
lado; mas não me contive e deitei uma olhadela, tanto mais (notem bem os
senhores do Binóculo e da Nota Chic) que, me pareceu, a moça o fazia para
ralar-me de inveja ou encher-me de admiração por ela.
Tratava-se de álgebra, e as
mulheres têm pela matemática uma fascinação de ídolo inacessível. Foi,
portanto, para mostrar-me que ela o ia atingindo que desdobrou o caderno; ou
então para dizer-me sem palavras: Veja, você, seu homem! Você anda de calças,
mas não sabe isso... Ela se enganava um pouco.
Mas... como dizia: olhei o
caderno e o que vi, meu Deus! Uma letra, um cursivo irrepreensível, com todos
os tracinhos, com todas as filigranas. Os “tt” muito bem traçados — uma
maravilha!
Ah! pensei eu. Se essa moça se
quisesse casar comigo, como eu não seria feliz? Como diminuiriam os meus
inimigos e as tolices que são escritas por minha conta? Copiava-me os artigos
e...
Quis namorá-la, mas não sei
namorar, não só porque não sei, como também porque tenho consciência da minha
fealdade. Fui, pois, tão canhestro, tão tolo, tão inábil, que ela nem percebeu.
Um namoro de... caboclo.
Seria, casar-me com ela, uma
solução para esse meu problema da letra, mas nem este mesmo eu posso encontrar
e tenho que aguentar esse meu inimigo, essa traição que está nas minhas mãos,
esse abutre que me devora diariamente a fraca reputação e apoucada
inteligência.
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