Entre Santos
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Quando eu era capelão de São Francisco de Paula (contava um padre velho) aconteceu-me uma aventura extraordinária.
Morava ao pé da igreja, e recolhi-me tarde,
uma noite. Nunca me recolhi tarde que não fosse ver primeiro se as portas do
templo estavam bem fechadas. Achei-as bem fechadas, mas lobriguei luz por baixo
delas. Corri assustado à procura da ronda; não a achei, tornei atrás e fiquei
no adro, sem saber que fizesse. A luz, sem ser muito intensa, era-o demais para
ladrões; além disso notei que era fixa e igual, não andava de um lado para
outro, como seria a das velas ou lanternas de pessoas que estivessem roubando.
O mistério arrastou-me; fui a casa buscar as chaves da sacristia (o sacristão
tinha ido passar a noite em Niterói), benzi-me primeiro, abri a porta e entrei.
O corredor estava escuro. Levava comigo uma
lanterna e caminhava devagarinho, calando o mais que podia o rumor dos sapatos.
A primeira e a segunda porta que comunicam com a igreja estavam fechadas; mas
via-se a mesma luz e, porventura, mais intensa que do lado da rua. Fui andando,
até que dei com a terceira porta aberta. Pus a um canto a lanterna, com o meu
lenço por cima, para que me não vissem de dentro, e aproximei-me a espiar o que
era.
Detive-me logo. Com efeito, só então adverti
que viera inteiramente desarmado e que ia correr grande risco aparecendo na
igreja sem mais defesa que as duas mãos. Correram ainda alguns minutos. Na igreja
a luz era a mesma, igual e geral, e de uma cor de leite que não tinha a luz das
velas. Ouvi também vozes, que ainda mais me atrapalharam, não cochichadas nem
confusas, mas regulares, claras e tranquilas, à maneira de conversação. Não
pude entender logo o que diziam. No meio disto, assaltou-me uma ideia que me
fez recuar. Como naquele tempo os cadáveres eram sepultados nas igrejas,
imaginei que a conversação podia ser de defuntos. Recuei espavorido, e só
passado algum tempo, é que pude reagir e chegar outra vez à porta, dizendo a
mim mesmo que semelhante ideia era um disparate. A realidade ia dar-me coisa
mais assombrosa que um diálogo de mortos. Encomendei-me a Deus, benzi-me outra
vez e fui andando, sorrateiramente, encostadinho à parede, até entrar. Vi então
uma coisa extraordinária.
Dois dos três santos do outro lado, São José
e São Miguel (à direita de quem entra na igreja pela porta da frente), tinham
descido dos nichos e estavam sentados nos seus altares. As dimensões não eram
as das próprias imagens, mas de homens. Falavam para o lado de cá, onde estão
os altares de São João Batista e São Francisco de Sales. Não posso descrever o
que senti. Durante algum tempo, que não chego a calcular, fiquei sem ir para
diante nem para trás, arrepiado e trêmulo. Com certeza, andei beirando o abismo
da loucura, e não caí nele por misericórdia divina. Que perdi a consciência de
mim mesmo e de toda outra realidade que não fosse aquela, tão nova e tão única,
posso afirmá-lo; só assim se explica a temeridade com que, dali a algum tempo,
entrei mais pela igreja, a fim de olhar também para o lado oposto. Vi aí a
mesma coisa: São Francisco de Sales e São João, descidos dos nichos, sentados
nos altares e falando com os outros santos.
Tinha sido tal a minha estupefação que eles
continuaram a falar, creio eu, sem que eu sequer ouvisse o rumor das vozes.
Pouco a pouco, adquiri a percepção delas e pude compreender que não tinham
interrompido a conversação; distingui-as, ouvi claramente as palavras, mas não
pude colher desde logo o sentido. Um dos santos, falando para o lado do
altar-mor, fez-me voltar a cabeça, e vi então que São Francisco de Paula, o
orago da igreja, fizera a mesma coisa que os outros e falava para eles, como
eles falavam entre si. As vozes não subiam do tom médio e, contudo, ouviam-se
bem, como se as ondas sonoras tivessem recebido um poder maior de transmissão.
Mas, se tudo isso era espantoso, não menos o era a luz, que não vinha de parte
nenhuma, porque os lustres e castiçais estavam todos apagados; era como um
luar, que ali penetrasse, sem que os olhos pudessem ver a lua; comparação tanto
mais exata quanto que, se fosse realmente luar, teria deixado alguns lugares
escuros, como ali acontecia, e foi num desses recantos que me refugiei.
Já então procedia automaticamente. A vida que
vivi durante esse tempo todo, não se pareceu com a outra vida anterior e
posterior. Basta considerar que, diante de tão estranho espetáculo, fiquei
absolutamente sem medo; perdi a reflexão, apenas sabia ouvir e contemplar.
Compreendi, no fim de alguns instantes, que
eles inventariavam e comentavam as orações e implorações daquele dia. Cada um
notava alguma coisa. Todos eles, terríveis psicólogos, tinham penetrado a alma
e a vida dos fiéis, e desfibravam os sentimentos de cada um, como os
anatomistas escalpelam um cadáver. São João Batista e São Francisco de Paula,
duros ascetas, mostravam-se às vezes enfadados e absolutos. Não era assim São
Francisco de Sales; esse ouvia ou contava as coisas com a mesma indulgência que
presidira ao seu famoso livro da Introdução à Vida Devota.
Era assim, segundo o temperamento de cada um,
que eles iam narrando e comentando. Tinham já contado casos de fé sincera e
castiça, outros de indiferença, dissimulação e versatilidade; os dois ascetas
estavam a mais e mais anojados, mas São Francisco de Sales recordava-lhes o
texto da Escritura: muitos são os chamados e poucos os escolhidos, significando
assim que nem todos os que ali iam à igreja levavam o coração puro. São João
abanava a cabeça.
— Francisco de Sales, digo-te que vou criando
um sentimento singular em santo: começo a descrer dos homens.
— Exageras tudo, João Batista, atalhou o
santo bispo, não exageremos nada. Olha — ainda hoje aconteceu aqui uma coisa
que me fez sorrir, e pode ser, entretanto, que te indignasse. Os homens não são
piores do que eram em outros séculos; descontemos o que há neles ruim, e ficará
muita coisa boa. Crê isto e hás de sorrir ouvindo o meu caso.
— Eu?
— Tu, João Batista, e tu também, Francisco de
Paula, e todos vós haveis de sorrir comigo: e, pela minha parte, posso fazê-lo,
pois já intercedi e alcancei do Senhor aquilo mesmo que me veio pedir esta
pessoa.
— Que pessoa?
— Uma pessoa mais interessante que o teu
escrivão, José, e que o teu lojista, Miguel...
— Pode ser, atalhou São José, mas não há de
ser mais interessante que a adúltera que aqui veio hoje prostrar-se a meus pés.
Vinha pedir-me que lhe limpasse o coração da lepra da luxúria. Brigara ontem
mesmo com o namorado, que a injuriou torpemente, e passou a noite em lágrimas.
De manhã, determinou abandoná-lo e veio buscar aqui a força precisa para sair
das garras do demônio. Começou rezando bem, cordialmente; mas pouco a pouco vi
que o pensamento a ia deixando para remontar aos primeiros deleites. As
palavras paralelamente, iam ficando sem vida. Já a oração era morna, depois
fria, depois inconsciente; os lábios, afeitos à reza, iam rezando; mas a alma,
que eu espiava cá de cima, essa já não estava aqui, estava com o outro. Afinal
persignou-se, levantou-se e saiu sem pedir nada.
— Melhor é o meu caso.
— Melhor que isto? perguntou São José
curioso.
— Muito melhor, respondeu São Francisco de
Sales, e não é triste como o dessa pobre alma ferida do mal da terra, que a
graça do Senhor ainda pode salvar. E por que não salvará também a esta outra?
Lá vai o que é.
Calaram-se todos, inclinaram-se os bustos,
atentos, esperando. Aqui fiquei com medo; lembrou-me que eles, que veem tudo o
que se passa no interior da gente, como se fôssemos de vidro, pensamentos
recônditos, intenções torcidas, ódios secretos, bem podiam ter-me lido já algum
pecado ou gérmen de pecado. Mas não tive tempo de refletir muito; São Francisco
de Sales começou a falar.
— Tem cinquenta anos o meu homem, disse ele,
a mulher está de cama, doente de uma erisipela na perna esquerda. Há cinco dias
vive aflito porque o mal agrava-se e a ciência não responde pela cura. Vede,
porém, até onde pode ir um preconceito público. Ninguém acredita na dor do
Sales (ele tem o meu nome), ninguém acredita que ele ame outra coisa que não
seja dinheiro, e logo que houve notícia da sua aflição desabou em todo o bairro
um aguaceiro de motes e dichotes; nem faltou quem acreditasse que ele gemia
antecipadamente pelos gastos da sepultura.
— Bem podia ser que sim, ponderou São João.
— Mas não era. Que ele é usurário e avaro não
o nego; usurário, como a vida, e avaro, como a morte. Ninguém extraiu nunca tão
implacavelmente da algibeira dos outros o ouro, a prata, o papel e o cobre;
ninguém os amuou com mais zelo e prontidão. Moeda que lhe cai na mão
dificilmente torna a sair; e tudo o que lhe sobra das casas mora dentro de um
armário de ferro, fechado a sete chaves. Abre-o às vezes, por horas mortas,
contempla o dinheiro alguns minutos, e fecha-o outra vez depressa; mas nessas
noites não dorme, ou dorme mal. Não tem filhos. A vida que leva é sórdida; come
para não morrer, pouco e ruim. A família compõe-se da mulher e de uma preta
escrava, comprada com outra, há muitos anos, e às escondidas, por serem de
contrabando. Dizem até que nem as pagou, porque o vendedor faleceu logo sem
deixar nada escrito. A outra preta morreu há pouco tempo; e aqui vereis se este
homem tem ou não o gênio da economia; Sales libertou o cadáver...
E o santo bispo calou-se para saborear o
espanto dos outros.
— O cadáver?
— Sim, o cadáver. Fez enterrar a escrava como
pessoa livre e miserável, para não acudir às despesas da sepultura. Pouco
embora, era alguma coisa. E para ele não há pouco; com pingos d'água é que se
alagam as ruas. Nenhum desejo de representação, nenhum gosto nobiliário; tudo
isso custa dinheiro, e ele diz que o dinheiro não lhe cai do céu. Pouca
sociedade, nenhuma recreação de família. Ouve e conta anedotas da vida alheia,
que é regalo gratuito.
— Compreende-se a incredulidade pública,
ponderou São Miguel.
— Não digo que não, porque o mundo não vai
além da superfície das coisas. O mundo não vê que, além de caseira eminente
educada por ele, e sua confidente de mais de vinte anos, a mulher deste Sales é
amada deveras pelo marido. Não te espantes, Miguel; naquele muro aspérrimo
brotou uma flor descorada e sem cheiro mas flor. A botânica sentimental tem
dessas anomalias. Sales ama a esposa; está abatido e desvairado com a ideia de
a perder. Hoje de manhã, muito cedo, não tendo dormido mais de duas horas
entrou a cogitar no desastre próximo. Desesperando da terra, voltou-se para
Deus; pensou em nós, e especialmente em mim que sou o santo do seu nome. Só um
milagre podia salvá-la; determinou vir aqui. Mora perto, e veio correndo.
Quando entrou trazia o olhar brilhante e esperançado; podia ser a luz da fé,
mas era outra coisa muito particular, que vou dizer. Aqui peço-vos que
redobreis de atenção.
Vi os bustos inclinarem-se ainda mais; eu
próprio não pude esquivar-me ao movimento e dei um passo para diante. A
narração do santo foi tão longa e miúda, a análise tão complicada, que não as
ponho aqui integralmente, mas em substância.
— Quando pensou em vir pedir-me que
intercedesse pela vida da esposa, Sales teve uma ideia específica de usurário,
a de prometer-me uma perna de cera. Não foi o crente, que simboliza desta
maneira a lembrança do benefício; foi o usurário que pensou em forçar a graça
divina pela expectação do lucro. E não foi só a usura que falou, mas também a
avareza; porque em verdade, dispondo-se à promessa, mostrava ele querer deveras
a vida da mulher — intuição de avaro; — despender é documentar: só se quer de
coração aquilo que se paga a dinheiro, disse-lho a consciência pela mesma boca
escura. Sabeis que pensamentos tais não se formulam como outros, nascem das
entranhas do caráter e ficam na penumbra da consciência. Mas eu li tudo nele
logo que aqui entrou alvoroçado, com o olhar fúlgido de esperança; li tudo e
esperei que acabasse de benzer-se e rezar.
— Ao menos, tem alguma religião, ponderou São
José.
— Alguma tem, mas vaga e econômica. Não
entrou nunca em irmandades e ordens terceiras, porque nelas se rouba o que
pertence ao Senhor; é o que ele diz para conciliar a devoção com a algibeira.
Mas não se pode ter tudo; é certo que ele teme a Deus e crê na doutrina.
— Bem, ajoelhou-se e rezou.
— Rezou. Enquanto rezava, via eu a pobre
alma, que padecia deveras, conquanto a esperança começasse a trocar-se em
certeza intuitiva. Deus tinha de salvar a doente, por força, graças à minha
intervenção, e eu ia interceder; é o que ele pensava, enquanto os lábios
repetiam as palavras da oração. Acabando a oração, ficou Sales algum tempo
olhando, com as mãos postas; afinal falou a boca do homem, falou para confessar
a dor, para jurar que nenhuma outra mão, além da do Senhor, podia atalhar o
golpe. A mulher ia morrer... ia morrer... ia morrer... E repetia a palavra, sem
sair dela. A mulher ia morrer. Não passava adiante. Prestes a formular o pedido
e a promessa não achava palavras idôneas, nem aproximativas, nem sequer dúbias,
não achava nada, tão longo era o descostume de dar alguma coisa. Afinal saiu o
pedido; a mulher ia morrer, ele rogava-me que a salvasse, que pedisse por ela
ao Senhor. A promessa, porém, é que não acabava de sair. No momento em que a boca
ia articular a primeira palavra, a garra da avareza mordia-lhe as entranhas e
não deixava sair nada. Que a salvasse... que intercedesse por ela...
No ar, diante dos olhos, recortava-se-lhe a
perna de cera, e logo a moeda que ela havia de custar. A perna desapareceu, mas
ficou a moeda, redonda, luzidia, amarela, ouro puro, completamente ouro, melhor
que o dos castiçais do meu altar, apenas dourados. Para onde quer que virasse
os olhos, via a moeda, girando, girando, girando. E os olhos a apalpavam, de longe,
e transmitiam-lhe a sensação fria do metal e até a do relevo do cunho. Era ela
mesma, velha amiga de longos anos, companheira do dia e da noite, era ela que
ali estava no ar, girando, às tontas; era ela que descia do teto, ou subia do
chão, ou rolava no altar, indo da Epístola ao Evangelho, ou tilintava nos
pingentes do lustre.
Agora a súplica dos olhos e a melancolia
deles eram mais intensas e puramente voluntárias. Vi-os alongarem-se para mim,
cheios de contrição, de humilhação, de desamparo; e a boca ia dizendo algumas
coisas soltas, — Deus, — os anjos do Senhor, — as bentas chagas, — palavras
lacrimosas e trêmulas, como para pintar por elas a sinceridade da fé e a
imensidade da dor. Só a promessa da perna é que não saía. Às vezes, a alma,
como pessoa que recolhe as forças, a fim de saltar um valo, fitava longamente a
morte da mulher e rebolcava-se no desespero que ela lhe havia de trazer; mas, à
beira do valo, quando ia a dar o salto, recuava. A moeda emergia dele e a
promessa ficava no coração do homem.
O tempo ia passando. A alucinação crescia,
porque a moeda, acelerando e multiplicando os saltos, multiplicava-se a si
mesma e parecia uma infinidade delas; e o conflito era cada vez mais trágico.
De repente, o receio de que a mulher podia estar expirando, gelou o sangue ao
pobre homem e ele quis precipitar-se. Podia estar expirando... Pedia-me que
intercedesse por ela, que a salvasse...
Aqui o demônio da avareza sugeria-lhe uma
transação nova, uma troca de espécie, dizendo-lhe que o valor da oração era
superfino e muito mais excelso que o das obras terrenas. E o Sales, curvo,
contrito, com as mãos postas, o olhar submisso, desamparado, resignado,
pedia-me que lhe salvasse a mulher. Que lhe salvasse a mulher, e prometia-me
trezentos, — não menos, — trezentos padre-nossos e trezentas ave-marias. E
repetia enfático: trezentos, trezentas, trezentos... Foi subindo, chegou a
quinhentos, a mil padre-nossos e mil ave-marias. Não via esta soma escrita por
letras do alfabeto, mas em algarismos, como se ficasse assim mais viva, mais
exata, e a obrigação maior, e maior também a sedução. Mil padre-nossos, mil
ave-marias. E voltaram as palavras lacrimosas e trêmulas, as bentas chagas, os
anjos do Senhor... 1.000 — 1.000 — 1.000. Os quatro algarismos foram crescendo
tanto, que encheram a igreja de alto a baixo, e com eles, crescia o esforço do
homem, e a confiança também; a palavra saía-lhe mais rápida, impetuosa, já
falada, mil, mil, mil, mil... Vamos lá, podeis rir à vontade, concluiu São
Francisco de Sales.
E os outros santos riram efetivamente, não
daquele grande riso descomposto dos deuses de Homero, quando viram o coxo
Vulcano servir à mesa, mas de um riso modesto, tranquilo, beato e católico.
Depois, não pude ouvir mais nada. Caí
redondamente no chão. Quando dei por mim era dia claro... Corri a abrir todas
as portas e janelas da igreja e da sacristia, para deixar entrar o sol, inimigo
dos maus sonhos.
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