Elogio da Vaidade
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
CAPÍTULO 1
Logo que a Modéstia acabou de falar, com os
olhos no chão, a Vaidade empertigou-se e disse:
Damas e cavalheiros, acabais de ouvir a mais
chocha de todas as virtudes, a mais peca, a mais estéril de quantas podem reger
o coração dos homens; e ides ouvir a mais sublime delas, a mais fecunda, a mais
sensível, a que pode dar maior cópia de venturas sem contraste.
Que eu sou a Vaidade, classificada entre os
vícios por alguns retóricos de profissão; mas na realidade, a primeira das
virtudes. Não olheis para este gorro de guizos, nem para estes punhos
carregados de braceletes, nem para estas cores variegadas com que me adorno.
Não olheis, digo eu, se tendes o preconceito da Modéstia; mas se o não tendes,
reparai bem que estes guizos e tudo mais, longe de ser uma casca ilusória e vã,
são a mesma polpa do fruto da sabedoria; e reparai mais que vos chamo a todos,
sem os biocos e meneios daquela senhora, minha mana e minha rival.
Digo a todos, porque a todos cobiço, ou
sejais formosos como Páris, ou feios como Tersites, gordos como Pança, magros
como Quixote, varões e mulheres, grandes e pequenos, verdes e maduros, todos os
que compondes este mundo, e haveis de compor o outro; a todos falo, como a
galinha fala aos seus pintinhos, quando os convoca à refeição, a saber, com
interesse, com graça, com amor. Porque nenhum, ou raro, poderá afirmar que eu o
não tenha alçado ou consolado.
CAPÍTULO
2
Onde é que eu não entro? Onde é que eu não
mando alguma coisa? Vou do salão do rico ao albergue do pobre, do palácio ao
cortiço, da seda fina e roçagante ao algodão escasso e grosseiro. Faço
exceções, é certo (infelizmente!); mas, em geral, tu que possuis, busca-me no
encosto da tua otomana, entre as porcelanas da tua baixela, na portinhola da
tua carruagem; que digo? busca-me em ti mesmo, nas tuas botas, na tua casaca,
no teu bigode; busca-me no teu próprio coração. Tu, que não possuis nada,
perscruta bem as dobras da tua estamenha, os recessos da tua velha arca; lá me
acharás entre dois vermes famintos; ou ali, ou no fundo dos teus sapatos sem
graxa, ou entre os fios da tua grenha sem óleo.
Valeria a pena ter, se eu não realçasse os
teres? Foi para escondê-lo ou mostrá-lo, que mandaste vir de tão longe esse
vaso opulento? Foi para escondê-lo ou mostrá-lo, que encomendaste à melhor
fábrica o tecido que te veste, a safira que te arreia, a carruagem que te leva?
Foi para escondê-lo ou mostrá-lo, que ordenaste esse festim babilônico, e
pediste ao pomar os melhores vinhos? E tu, que nada tens, por que aplicas o salário
de uma semana ao jantar de uma hora, senão porque eu te possuo e te digo que
alguma coisa deves parecer melhor do que és na realidade? Por que levas ao teu
casamento um coche, tão rico e tão caro, como o do teu opulento vizinho, quando
podias ir à igreja com teus pés? Por que compras essa joia e esse chapéu? Por
que talhas o teu vestido pelo padrão mais rebuscado, e por que te remiras ao
espelho com amor, senão porque eu te consolo da tua miséria e do teu nada,
dando-te a troco de um sacrifício grande benefício ainda maior?
CAPÍTULO
3
Quem é esse que aí vem, com os olhos no
eterno azul? É um poeta; vem compondo alguma coisa; segue o voo caprichoso da
estrofe. — Deus te salve, Píndaro! Estremeceu; moveu a fronte, desabrochou em
riso. Que é da inspiração? Fugiu-lhe; a estrofe perdeu-se entre as moitas; a
rima esvaiu-se-lhe por entre os dedos da memória. Não importa; fiquei eu com
ele, — eu, a musa décima, e, portanto, o conjunto de todas as musas, pela regra
dos doutores de Sganarello. Que ar beatífico! Que satisfação sem mescla! Quem
dirá a esse homem que uma guerra ameaça levar um milhão de outros homens? Quem
dirá que a seca devora uma porção do país? Nesta ocasião ele nada sabe, nada
ouve. Ouve-me, ouve-se; eis tudo.
Um homem caluniou-o há tempos; mas agora, ao
voltar à esquina, dizem-lhe que o caluniador o elogiou.
— Não me fales nesse maroto.
— Elogiou-te; disse que és um poeta enorme.
— Outros o têm dito, mas são homens de bem, e
sinceros. Será ele sincero?
— Confessa que não conhece poeta maior.
— Peralta! Naturalmente arrependeu-se da
injustiça que me fez. Poeta enorme, disse ele?
— O maior de todos.
— Não creio. O maior?
— O maior.
— Não contestarei nunca os seus méritos; não
sou como ele que me caluniou; isto é, não sei, disseram-mo. Diz-se tanta
mentira! Tem gosto o maroto; é um pouco estouvado às vezes, mas tem gosto. Não
contestarei nunca os seus méritos. Haverá pior coisa do que mesclar o ódio às
opiniões? Que eu não lhe tenho ódio. Oh! nenhum ódio. É estouvado, mas
imparcial.
Uma semana depois, vê-lo-eis de braço com o
outro, à mesa do café, à mesa do jogo, alegres, íntimos, perdoados. E quem
embotou esse ódio velho, senão eu? Quem verteu o bálsamo do esquecimento nesses
dois corações irreconciliáveis? Eu, a caluniada amiga do gênero humano.
Dizem que o meu abraço dói. Calúnia, amados
ouvintes! Não escureço a verdade; às vezes há no mel uma pontazinha de fel; mas
como eu dissolvo tudo! Chamai aquele mesmo poeta, não Píndaro, mas Trissotin.
Vê-lo-eis derrubar o carão, estremecer, rugir, morder-se, como os zoilos de
Bocage. Desgosto, convenho, mas desgosto curto. Ele irá dali remirar-se nos
próprios livros. A justiça que um atrevido lhe negou, não lha negarão as
páginas dele. Oh! a mãe que gerou o filho, que o amamenta e acalenta, que põe
nessa frágil criaturinha o mais puro de todos os amores, essa mãe é Medéia, se
a compararmos àquele engenho, que se consola da injúria, relendo-se; porque se
o amor de mãe é a mais elevada forma do altruísmo, o dele é a mais profunda
forma de egoísmo, e só há uma coisa mais forte que o amor materno, é o amor de
si próprio.
CAPÍTULO
4
Vede estoutro que palestra com um homem
público. Palestra, disse eu? Não; é o outro que fala; ele nem fala, nem ouve.
Os olhos entornam-se-lhe em roda, aos que passam, a espreitar se o veem, se o
admiram, se o invejam. Não corteja as palavras do outro; não lhes abre sequer
as portas da atenção respeitosa. Ao contrário, parece ouvi-las com
familiaridade, com indiferença, quase com enfado. Tu, que passas, dizes contigo:
— São íntimos; o homem público é familiar
deste cidadão; talvez parente. Quem lhe faz obter esse teu juízo, senão eu?
Como eu vivo da opinião e para a opinião, dou àquele meu aluno as vantagens que
resultam de uma boa opinião, isto é, dou-lhe tudo.
Agora, contemplai aquele que tão
apressadamente oferece o braço a uma senhora. Ela aceita-lho; quer seguir até a
carruagem, e há muita gente na rua. Se a Modéstia animara o braço do
cavalheiro, ele cumprira o seu dever de cortesania, com uma parcimônia de palavras,
uma moderação de maneiras, assaz miseráveis. Mas quem lho anima sou eu, e é por
isso que ele cuida menos de guiar à dama, do que de ser visto dos outros olhos.
Por que não? Ela é bonita, graciosa, elegante; a firmeza com que assenta o pé é
verdadeiramente senhoril. Vede como ele se inclina e bamboleia! Riu-se? Não vos
iludais com aquele riso familiar, amplo, doméstico; ela disse apenas que o
calor é grande. Mas é tão bom rir para os outros! é tão bom fazer supor uma
intimidade elegante!
Não deveríeis crer que me é vedada a
sacristia? Decerto; e contudo, acho meio de lá penetrar, uma ou outra vez, às
escondidas, até às meias roxas daquela grave dignidade, a ponto de lhe fazer
esquecer as glórias do céu, pelas vanglórias da terra. Verto-lhe o meu óleo no
coração, e ela sente-se melhor, mais excelsa, mais sublime do que esse outro
ministro subalterno do altar, que ali vai queimar o puro incenso da fé. Por que
não há de ser assim, se agora mesmo penetrou no santuário esta garrida matrona,
ataviada das melhores fitas, para vir falar ao seu Criador? Que farfalhar! que
voltear de cabeças! A antífona continua, a música não cessa; mas a matrona
suplantou Jesus, na atenção dos ouvintes. Ei-la que dobra as curvas, abre o
livro, compõe as rendas, murmura a oração, acomoda o leque. Traz no coração
duas flores, a fé e eu; a celeste, colheu-a no catecismo, que lhe deram aos dez
anos; a terrestre colheu-a no espelho, que lhe deram aos oito; são os seus dois
Testamentos; e eu sou o mais antigo.
CAPÍTULO
5
Mas eu perderia o tempo, se me detivesse a
mostrar um por um todos os meus súditos; perderia o tempo e o latim. Omnia vanitas. Para que citá-los,
arrolá-los, se quase toda a terra me pertence? E digo quase, porque não há
negar que há tristezas na terra e onde há tristezas aí governa a minha irmã
bastarda, aquela que ali vedes com os olhos no chão. Mas a alegria sobrepuja o
enfado e a alegria sou eu. Deus dá um anjo guardador a cada homem; a natureza
dá-lhe outro, e esse outro é nem mais nem menos esta vossa criada, que recebe o
homem no berço, para deixá-lo somente na cova. Que digo? Na eternidade; porque
o arranco final da modéstia, que aí lês nesse testamento, essa recomendação de
ser levado ao chão por quatro mendigos, essa cláusula sou eu que a inspiro e
dito; última e genuína vitória do meu poder, que é imitar os meneios da outra.
Oh! a outra! Que tem ela feito no mundo que
valha a pena de ser citado? Foram as suas mãos que carregaram as pedras das
Pirâmides? Foi a sua arte que entreteceu os louros de Temístocles? Que vale a
charrua do seu Cincinato, ao pé do capelo do meu cardeal de Retz? Virtudes de
cenóbios, são virtudes? Engenhos de gabinete, são engenhos? Traga-me ela uma
lista de seus feitos, de seus heróis, de suas obras duradouras; traga-ma, e eu
a suplantarei, mostrando-lhe que a vida, que a história, que os séculos nada
são sem mim.
Não vos deixeis cair na tentação da Modéstia:
é a virtude dos pecos. Achareis decerto, algum filósofo, que vos louve, e pode
ser que algum poeta, que vos cante. Mas, louvaminhas e cantarolas têm a
existência e o efeito da flor que a Modéstia elegeu para emblema; cheiram bem,
mas morrem depressa. Escasso é o prazer que dão, e ao cabo definhareis na
soledade. Comigo é outra coisa: achareis, é verdade, algum filósofo que vos talhe
na pele; algum frade que vos dirá que eu sou inimiga da boa consciência. Petas!
Não sou inimiga da consciência, boa ou má; limito-me a substituí-la, quando a
vejo em frangalhos; se é ainda nova, ponho-lhe diante de um espelho de cristal,
vidro de aumento. Se vos parece preferível o narcótico da Modéstia, dizei-o;
mas ficai certos de que excluireis do mundo o fervor, a alegria, a
fraternidade.
Ora, pois, cuido haver mostrado o que sou e o
que ela é; e nisso mesmo revelei a minha sinceridade, porque disse tudo, sem
vexame, nem reserva; fiz o meu próprio elogio, que é vitupério, segundo um
antigo rifão; mas eu não faço caso de rifões. Vistes que sou a mãe da vida e do
contentamento, o vínculo da sociabilidade, o conforto, o vigor, a ventura dos
homens; alço a uns, realço a outros, e a todos amo; e quem é isto é tudo, e não
se deixa vencer de quem não é nada.
E reparai que nenhum grande vício se encobriu
ainda comigo; ao contrário, quando Tartufo entra em casa de Orgon, dá um lenço
a Dorina para que cubra os seios. A modéstia serve de conduta a seus intentos.
E por que não seria assim, se ela ali está de olhos baixos, rosto caído, boca
taciturna? Poderíeis afirmar que é Virgínia e não Locusta? Pode ser uma ou
outra, porque ninguém lhe vê o coração. Mas comigo? Quem se pode enganar com
este riso franco, irradiação do meu próprio ser; com esta face jovial, este
rosto satisfeito, que um quase nada obumbra, que outro quase nada ilumina;
estes olhos, que não se escondem, que se não esgueiram por entre as pálpebras, mas
fitam serenamente o sol e as estrelas?
CAPÍTULO
6
O quê? Credes que não é assim? Querem ver que
perdi toda a minha retórica, e que ao cabo da pregação, deixo um auditório de
relapsos? Céus! Dar-se-á caso que a minha rival vos arrebatasse outra vez?
Todos o dirão ao ver a cara com que me escuta este cavalheiro; ao ver o desdém
do leque daquela matrona. Uma levanta os ombros; outro ri de escárnio. Vejo ali
um rapaz a fazer-me figas: outro abana tristemente a cabeça; e todas, todas as
pálpebras parecem baixar, movidas por um sentimento único. Percebo, percebo!
Tendes a volúpia suprema da vaidade, que é a vaidade da modéstia.
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