Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O relógio da igreja próxima havia
acabado de anunciar as dez horas da manhã quando a encantadora mundana Suzete
Latour penetrou, nervosa e célere, na risonha "garçonniére" do jovem
advogado Silvestre Lobato, que envergava, ainda, àquela hora, o seu felpudo
roupão de banho.
— Isto é certo? — indagou a
rapariga, estendendo-lhe um jornal com a mão esquerda, enquanto atirava para
uma cadeira, com a direita, o seu lindo chapéu de palha da Itália, florido como
uma campina pela primavera.
A notícia do jornal era, nada
mais, nada menos, do que o noivado do ilustre bacharel com uma senhorita de família
distintíssima, chegada recentemente de São Paulo. Sem tocar na folha que a
amante lhe estendia, o rapaz respondeu, simplesmente, acendendo um cigarro:
— É.
Essa resposta fria, seca, brutal,
desnorteara Suzete. Aquela afirmativa, embora esperada, fora, para ela, um
golpe no coração. Fulminada por esse monossílabo, a rapariga segurou-se ao
espelho da cama, para não cair. De súbito, porém, subiu-lhe ao rosto uma onda
de sangue, e foi vermelha, rubra de cólera, com os olhos brilhantes e os dentes
cerrados, que ela, amassando na mão o jornal, rugiu, num desespero de leoa
ferida:
— São assim, os homens! Nascem,
dizem eles, para o amor, para sorverem, altivos e alegres, todos os gozos da
vida. Encontram no seu caminho uma mulher cheia do mesmo sentimento, disposta a
conceder-lhes tudo, tudo, tudo, para que eles experimentem, até o êxtase, a
glória de viver. Com a alma ardente, ela entrega-se a eles; dando-lhes venturas
que eles nunca sonharam, oferecendo-lhes a taça do prazer, da alegria, da
felicidade livre, para que a esvaziem, até o último gole. E, no entanto, eles
têm vergonha, têm nojo, têm asco dessa mulher, preferindo, a ela, que não
esconde os ardores do seu sangue nem os ímpetos do seu coração, a
mulher-mentira, a mulher-falsidade, a mulher-simulação, que lhes não entrega
nem a alma, nem o corpo, em obediência, unicamente, a preconceitos, a
exigências sociais! À mulher que afronta a sociedade, fiel ao seu temperamento
preferem eles, covardes diante do mundo, aquelas que não têm coragem para vencer,
para atirar longe, em nome do seu amor, a grilheta das conveniências!...
Cabisbaixo, olhos pregados no
tapete semeado de flores de seda, o rapaz ouvia, sem um protesto, a explosão
daquele cofre de joias malditas, daquela criatura venenosa, mas admirável, que
o guiava, há três anos, pelo complexo labirinto da vida boêmia. E a rapariga
continuava a andar, agitada, de um lado para outro do compartimento, passando,
nervosa, as mãos finas, alvas, esguias, pelos finos cabelos dourados:
— É bom, mesmo, que eu seja
punida. A virtude, para os homens, é a falsidade, é a simulação, é a mentira.
Eles não sabem que o amor é incompatível com o pudor, com o receio, com o
respeito às convenções, e que ele está, só ele, acima da vida e acima da morte!
E, numa onda de soluços mal
sufocados, crispando os dedos:
— Infelizes! Buscam o amor, e
onde o encontram, puro e selvagem, fogem dele! Procuram a sinceridade, a
lealdade feminina, a mulher que não mente, nem com a sua boca, nem com o seu
coração, nem com a sua carne, e, quando querem amparar diante da lei uma
criatura, vão buscar aquela que menos conhecem, sem imaginar que a timidez é,
nas mulheres, um cálculo, e sem se lembrarem que as mulheres que amam não
calculam nem pensam!...
Arrebatada pelas próprias palavras,
Suzete limpou os olhos no lencinho de seda, já ensopado de lágrimas, e, na
mesma agitação, tomou o chapéu, disposta a partir.
— É a última vez, sabes? nunca
mais me verás no teu caminho. Adeus!
E ia já no rumo da porta, quando
ouviu uma voz, que era um gemido:
— Suzete!...
A rapariga voltou-se, imperativa.
Sentado na cama, com o rosto molhado de pranto, o rapaz a fitava, olhos
implorantes, braços estendidos. Ela fixou-o, severa, e ouviu, então, esta
súplica, ou, melhor, este soluço, que era uma capitulação para a vida e para a
morte:
— Suzete... Fica!...
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