El-Kazenadji
(Contos argelinos)
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O reinado de Abu-al-Dhudut foi
curto, mas cheio de episódios interessantes que o cronista argelino
Sidi-Mohammed-ben-Allah conta do modo mais ingênuo e, ao mesmo tempo, florido,
capaz de fazer o delicioso encanto dos mais habituados à literatura árabe.
A tradução que vamos dando, além
de resumida, fana muito o viço da luxuriante floração do original; mas, se
tempo houver e editor, havemos de dar uma completa, respeitando o mais possível
as palavras do autor argelino, assim como o seu rendilhado pensamento.
Contemos.
Escolheu Abu-al-Dhudut, nos
últimos dias de seu reinado, para ser o seu Kazenadji (ministro dos negócios
internos do reino), um levantino de nome Sidi-Ercu-ben-Lanod, muito estimado
pelas suas letras e sabido nelas como o mais douto ulemá.
Sidi-Ercu-ben-Lanod tinha vivido
muito tempo em Marselha, como cônsul de Abu-al-Dhudut; e, fosse pela sua origem
infiel, fosse pelo tempo que levou naquela cidade de França, o certo é que
contraiu todos os vícios dos cristãos, especialmente dos francos. Feito
Kazenadji, ganhando muitos presentes e dispondo do Tesouro do sultão, era de
esperar que Sidi-Ercu-ben-Lanod aumentasse as mulheres do seu harém e vivesse
sabiamente entre elas, como mandam o Profeta e os livros sagrados. Não tinha em
grande conta os preceitos do Alcorão e, apesar dos conselhos de um dos seus
sogros, Sidi-Glei-ben-Serio, continuou nos seus sacrílegos hábitos de passar as
noites fora de sua casa, em visitas amaldiçoadas a certos lugares da feitoria
francesa que ficava perto da capital de Al-Patak.
Não contente com ir ele a tão
daninhos lugares, seduziu muitos bons muçulmanos a fazer o mesmo. Um destes era
o kaïa, Pessh-ben-Hôa, que vem a ser
entre nós o chefe da polícia militar. Não deixava este funcionário de, todas as
noites, acompanhar Sidi-Ercu-ben-Lanod nas suas profanações às regras e
preceitos do Profeta.
Ambos, chegados que eram à
feitoria, logo se encaminhavam para uma grande casa de uma velha francesa, de
nome Suzah-Hana, a que chamavam — Cidade das Flores; e entregavam-se a todos os
pecados que a religião proíbe.
Deixavam-se arrastar pelo vício
de beber licores espirituosos, coisa que mais depressa faz com que entreguemos
as nossas almas aos espíritos malfazejos; e cercavam-se de mulheres infiéis,
mediante alguns cequins de ouro, com as quais tinham propósitos mais próprios
de se os ter com as verdadeiras esposas.
A religião do Profeta dá a tal
respeito tão grande liberdade que não se podia acreditar que aqueles fiéis
tivessem prazer em fazer semelhante coisa, fora da comunhão dos crentes.
Mas Sidi-Ercu-ben-Lanod tinha
tomado tal gosto por aquele vinho dos francos que borbulha e ferve como os
gases danados das entranhas da terra, que não havia meio de deixar de ir uma
noite à casa da velha Suzah-Hana.
O kaïa (o chefe de polícia militar) também se havia habituado e não
deixava de acompanhar o Kazenadji.
Certa noite, em que eles tinham
bebido bem doze odres do tal vinho, estando, como de costume, na “Cidade das
Flores”, Sidi-Ercu-ben-Lanod deu em altercar com o seu companheiro:
— Tua tropa não presta p’ra nada!
Os franceses sim é que têm tropa. O kaïa, que era um chefe orgulhoso e
patriota, ficou indignado com o despropósito do ministro e
respondeu:
— Se tu queres ver, Sidi-Ercu-ben-Lanod,
vou agora mesmo formá-la e cercar o palácio de Abu-al-Dhudut.
— Quero ver — disse o outro.
O kaïa, meio trôpego e balançando-se que nem uma fragata franca no
porto de Argel, levantou-se, veio até à porta, chamou um spahi (soldado de cavalaria) e deu as suas ordens.
Os dois ficaram dormindo e a
força do kaïa cercou o kashah (palácio do sultão), como lhe
tinha sido ordenado.
Foi um espanto geral e as tropas
do agha (ministro da Guerra)
acudiram; houve combate, morrendo de parte a parte cerca de dois mil homens.
Sidi-Ercu-ben-Lanod e o kaïa,
Sirdar-Pessh-ben-Hôa, despertaram na tarde seguinte e nunca a cidade pôde saber
por que motivo as tropas do último tinham cercado o kashah e guarnecido as estradas que iam ter a ele.
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