Duas Juízas
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Uma era a Devoção de Nossa Senhora das Dores, outra
era a Devoção de Nossa Senhora da Conceição, duas irmandades de damas
estabelecidas na mesma igreja. Qual igreja? Este é justamente o ponto falho do
meu conto; não posso lembrar-me em qual das nossas igrejas era. Mas, pensando
bem, que necessidade há de saber-lhe o nome? Uma vez que eu diga os outros e
todas as circunstâncias do acontecimento, do caso, o resto pouco importa.
No altar da esquerda, à entrada, ficava a imagem das
Dores, e no da direita a da Conceição. Esta posição das duas imagens definia
até certo ponto a das Devoções, que eram rivais. Rivalidade nestas obras de
culto e religião não pode ou não deve dar de si se não maior zelo e esplendor.
Era o que acontecia aqui. As duas Devoções brilhavam de ano para ano; e que era
tanto mais admirável quanto que o ardor fora quase repentino e recente. Durante
longos anos, as duas associações vegetaram na obscuridade; e, longe de serem
contrárias, eram amigas, trocavam obséquios, emprestavam alfaias, as irmãs de
uma iam, com as melhores toilettes,
às festas da outra.
Um dia, a Devoção das Dores elegeu para juíza uma
senhora D. Matilde, pessoa abastada, viúva e fresca, ao mesmo tempo que a da
Conceição punha à sua frente a esposa do Comendador Nóbrega, D. Romualda. O fim
de ambas as Devoções era o mesmo: era dar mais alguma vida ao culto,
desenvolvê-lo, comunicar-lhe certo esplendor que não tinha. Ambas as juízas
eram pessoas para isso, mas não corresponderam às esperanças. O que fizeram no
seguinte ano foi pouco; e, ainda assim, nenhuma das Devoções pôde dispensar os
obséquios da congênere. Enfim, Roma não se fez num dia, repetiram as devotas de
ambas, e esperaram.
Na verdade, as duas juízas tinham distrações noutras
partes; não podiam subitamente cortar por hábitos antigos. Note-se que eram
amigas, andavam muita vez juntas, encontravam-se em bailes, e teatros. Eram
também bonitas e vistosas; circunstância que não determinara a eleição, mas
agradou às eleitoras, tão certo é que a beleza não é só um ornato profano, e,
posto que a religião exija principalmente a perfeição moral, os pintores não se
esquecem de pôr o arrependimento de Madalena dentro de belas formas.
Vai senão quando, D. Matilde, presidindo a uma sessão
de mesa administrativa da Devoção das Dores, disse que era preciso cuidar
seriamente de levantar a associação. Todas as companheiras foram do mesmo
parecer, com grande contentamento, porque realmente não desejavam outra coisa.
Eram pessoas religiosas; e, salvo a secretária e tesoureira, viviam na
obscuridade e no silêncio.
— As nossas festas, continuou D. Matilde, têm sido muito
descuidadas. Não vem quase ninguém a elas; e da gente que vem pouca é a de
certa ordem. Vamos trabalhar. A deste ano deve ser esplêndida. Há de pontificar
monsenhor Lopes; estive ontem com ele. A orquestra deve ser de primeira
qualidade; podemos ter uma cantora italiana.
E foi por diante a juíza, dando os primeiros
lineamentos do programa. Em seguida, adotaram certas resoluções: — alistar
novas devotas — e D. Matilde indicava as suas amigas da alta sociedade —, fazer
entrar as anuidades atrasadas, comprar alfaias porque, ponderou a juíza, “não é
bonito estarmos a viver de esmolas".
Coisa interessante! Quinze dias depois, ou três
semanas, quando muito, a outra Devoção celebrava uma sessão da mesa
administrativa em que D. Romualda exprimia iguais sentimentos, propunha uma
reforma análoga, espertava o espírito religioso das companheiras para o fim de
celebrar uma festa digna delas. D. Romualda também prometeu fazer entrar um
certo número de devotas abastadas e briosas.
Dito e feito. Nem uma nem outra das duas juízas deixou
de cumprir o prometido. Era uma ressurreição, uma vida nova; e justamente o
fato da vizinhança das duas Devoções serviu-lhes de estímulo. Ambas souberam
dos planos, ambas tratavam de levar a cabo os seus com mais particular fulgor.
D. Matilde, que a princípio não cuidava daquilo
principalmente, daí a pouco não pensava em mais nada. Não rompeu com outros
hábitos; mas não lhes deu mais do que se dá a um costume. O mesmo acontecia a
D. Romualda. As duas associações estavam contentíssimas, porque, em verdade, a
maior parte das devotas não o eram só de nome. Uma delas, pertencente à Devoção
das Dores, que supunha continuar a antiga troca de serviços, lembrou que se
pedisse não sei o que à outra devoção. D. Matilde repeliu com desdém:
— Não; antes vendamos a última joia.
A devota não compreendeu bem a resposta; era digna e
espartana, mas pareceu-lhe que, em matéria de religião, a confraternidade e a
caridade eram as primeiras leis. Entretanto, achou bom que todas se obrigassem
ao sacrifício, e não tornou ao assunto. Ao mesmo tempo, dava-se na Devoção da
Conceição análogo incidente. Dizendo uma das irmãs que D. Matilde trabalhava
muito, acudiu D. Romualda com o lábio trêmulo:
— Eu saberei trabalhar muito mais.
Era claro que a rivalidade e o despeito ardiam nelas.
Por desgraça, tanto o dito de uma como o da outra correram mundo, e chegaram ao
conhecimento de ambas; foi como lançar palha ao fogo. D. Romualda bradou em
casa de uma amiga:
— Vender a última joia? Talvez ela já tenha as suas
empenhadas!
E D. Matilde:
— Creio, creio... Creio que trabalhe mais do que eu,
mas há de ser de com a língua.
A festa das Dores foi realmente bonita; muita gente,
boa música, excelente sermão. A igreja estava tomada com um luxo desconhecido
dos paroquianos. Alguns entendidos da matéria calcularam as despesas e subiram
a um algarismo muito alto. A impressão não se restringiu ao bairro, foi a
outros; os jornais deram notícia minuciosa da festa, e o Apóstolo trouxe o nome de D. Matilde, dizendo que a esta senhora
era devido aquele esplendor. “Folgamos de ver, concluía aquele órgão religioso,
folgamos de ver que uma senhora de tão superiores qualidades emprega uma parte
da sua atividade no serviço da Virgem Santíssima.” D. Matilde mandou
transcrever a notícia nos outros jornais.
Não é preciso dizer que D. Romualda não foi à festa
das Dores; mas soube de tudo, porque uma das zeladoras foi espiar e contou-lhe
o que houve. Ficou passada e jurou que havia de meter D. Matilde num chinelo.
Quando, porém, leu nos jornais a notícia transcrita do Apóstolo, a irritação não teve mais limites. Não todos os nomes
feios, mas aqueles que uma senhora educada pode dizer de outra, esses disse-os
D. Romualda falando da juíza das Dores — pretensiosa, velhusca, tola,
intrometida, ridícula, namoradeira, e poucos mais. O marido procurava
aquietá-la:
— Mas, Romualda, para que há de você irritar-se tanto
assim?
E batia o pé, amarrotava a folha que tinha na mão.
Chegou ao extremo de dar ordem para não receber mais o Apóstolo; mas a ideia de que podia merecer da folha alguma justiça,
quando chegasse a festa da Conceição, fê-la retirar a ordem.
Dali em diante, não se ocupou de outra coisa, senão de
preparar uma festa que vencesse a das Dores, uma festa única, admirável.
Convocou as irmãs, e disse-lhes francamente que não poderia ficar abaixo da
outra Devoção; era preciso vencê-la, não igualá-la; igualá-la era pouco.
E toca a trabalhar na coleta de donativos, na cobrança
de anuidades. Nas últimas semanas, o Comendador Nóbrega quase não pôde
ocupar-se de outra coisa, senão de ajudar a mulher nos preparos da grande
festa. A igreja foi armada com uma perfeição que excedia a da festa das Dores.
D. Romualda, a secretária, e duas zeladoras não saíam de lá; viam tudo, falavam
de tudo, corriam tudo. A orquestra foi a melhor da cidade. Estava de passagem
um bispo da Índia; alcançaram dele que pontificasse. O sermão foi incumbido a
um beneditino de fama. Durante a última semana trabalhou a imprensa, anunciando
a grande festa.
D. Matilde caiu em mandar para as folhas algumas
mofinas anônimas, em que arguia a juíza da Conceição de ser dada à charlatanice
e à inveja. Respondeu D. Romualda, também anonimamente algumas coisas duras; a
outra voltou à carga, e recebeu nova réplica; e isto serviu ao esplendor da
festividade. O efeito não podia ser maior, todas as folhas deram uma notícia,
embora curta; o Apóstolo um longo
artigo, dizendo que a festa da Conceição fora das melhores que se tinham dado
no Rio de Janeiro, desde muitos anos. Citou também o nome de D. Romualda como o
de uma senhora distinta pelas qualidades de espírito, como digna de apreço e
louvor pelo zelo e piedade. “Ao seu esforço, concluía a folha, devemos o prazer
que tivemos no dia 8. Oxalá muitas outras patrícias possam imitá-la!”
Foi uma punhalada em D. Matilde. Trocaram-se os
papéis; ela agora é que deitava à outra os nomes mais cruéis de um vocabulário
elegante. E jurava que a Devoção das Dores não ficaria vencida. Imaginou então
umas ladainhas aos sábados e contratou uma missa especial aos domingos, fazendo
anunciar que era a missa aristocrática da paróquia. D. Romualda respondeu com
outra missa, e uma prática, depois da missa; além disso, instituiu um mês de
Maria, e convidou a melhor gente.
Esta luta durou uns dois anos. No fim deles, D.
Romualda, tendo dado à luz uma filha, morreu de parto, e a rival ficou só em
campo. Vantagem do estímulo! Tão depressa morreu a juíza da Conceição como a
das Dores sentiu afrouxar o zelo, e já a primeira festa esteve muito aquém das
anteriores. A segunda foi feita com outra juíza, porque D. Matilde, alegando
cansaço, pediu dispensa do posto.
Um paroquiano curioso tratou de indagar, se além das
causas de estímulo religioso, alguma outra houve; e veio a saber que as duas
damas, amigas íntimas, tinham tido uma pequena questão, por causa de um
vestido. Não se sabe qual delas ajustara primeiro um corte de vestido; sabe-se
que o ajuste foi vago, tanto que o dono da loja imaginou ter as mãos livres
para vendê-lo a outra pessoa.
— A sua amiga, disse ele à outra, já aqui esteve e
gostou muito dele.
— Sim?
— Muito. E quis até levá-lo.
Quando a primeira mandou buscar o vestido, soube que a
amiga o comprara. A culpa, se a havia, era do vendedor; mas o vestido era para
um baile, e no corpo de outra fez maravilhas; todos os jornais o descreveram,
todos louvaram o bom gosto de uma senhora distinta, etc... Daí um
ressentimento, algumas palavras, frieza, separação. O paroquiano, que, além de
boticário, era filósofo, tomou nota do caso para contá-lo aos amigos. Outros dizem
que era tudo mentira dele.
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