Dois cemitérios japoneses
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Pelos fins de Dezembro, em vésperas de Natal e de Ano-Bom, encontrei-me um belo
dia, sem bem saber porquê, vagabundeando no cemitério dos europeus em Kobe, o
velho. O velho, porque há um cemitério novo que se estreou há pouco tempo, e
onde até agora se reuniu coisa de meia dúzia de inquilinos; está este situado
longe da cidade, num declive de colina, amplo, com belos horizontes em redor. O
velho, de acanhadas dimensões, enchera-se de moradores em uns trinta anos de
exercício, e foi por tal razão posto de parte.
O velho cemitério fica em plena cidade, para as bandas
de oeste e cerca dos edifícios da alfândega, quando começa um bairro sujo, de
fábricas, de armazéns, que povoa uma mísera ralé de carregadores e de mendigos.
Encerrado entre as altas paredes de tijolo vermelho de enormes depósitos de
mercadorias, sem outro horizonte, com pouco ar, com pouca luz, úmido e ermo, é
bem triste este canto; até, se não me iludo, os vetustos pinheiros que o
arborizam, testemunham pelo verde-escuro e estorcimentos convulsos das ramadas,
alguma coisa da desolação que aqui impera sobre tudo.
***
Hoje, que é um domingo, acolá, a curtos passos, sobre
a relva do parque público, a chusma dos caixeiros — ingleses, americanos,
alemães, — a chusma cosmopolita, em mangas de camisa, sem chapéu, berra, corre,
esbraceja, esperneia, joga o tennis,
o fout-ball. Mais além, pelas ruas de
tráfego indígena, presumo magna enchente, bazares em festa, povo em barda,
entre japoneses e estrangeiros. Destes últimos, são especialmente as damas que
mais se alvoroçam com a proximidade do christmas
day, e que afanosamente percorrem a cidade, em carruagens, em jinrikshas, a pé — a pés... e que
pés!... — enfiando pelas lojas, mercadejando bonecas, quinquilharias,
guloseimas, as mil e mil frivolidades que vão constituir os frutos dessas
estupendas árvores de Natal, prestes a surgirem nos salões. Pobre Natal! Nestes
países exóticos, de ganho e de aventura, as festas particulares da família
europeia perdem em regra a sua feição de severidade tocante e amorosa, para se
transformarem num simples sport,
irritante, maçador, — falo por mim, — mero pretexto para ostentações,
dissipações e mexericos, a caterva de todos os sintomas da morbidez do exílio.
Para o povo japonês, o impulso é bem outro: o dia de ano novo é a festa
principal de cada ano, a única para muitos; religiosa, emocionando a alma
indígena, levando a turba aos templos a dar graças aos deuses pelas
prosperidades realizadas, e a implorar novas fortunas: íntima, de família,
preceituando o doce dever das saudações aos parentes e aos amigos; ninguém
trabalha, veste-se fato novo, enfeitam-se os altares e a casa toda; por isto,
com louvável antecipação se compram nos bazares os pequeninos nadas que vão
ornar o lar, e os bolos de arroz, e o corte de fazenda, e a flor para o cabelo,
coisas de que não prescinde a mais modesta família de lavrador ou de operário,
naquele dia abençoado.
***
No sítio onde me encontro a quietação é plena, em
contraste com o que palpita lá por fora. É positivo que os mortos não festejam
o Natal... nem eu tão pouco, poderia acrescentar, desde mui largos anos de boêmia
, sem lar e sem família. Pesa aqui, no cemitério, mais duramente por certo do
que em outro lugar, a aspereza de um triste dia de Inverno, sem sol, sombrio e úmido;
paira no ar uma poeira levíssima de neve, que mal se vê, mas fere o rosto como
picadas de alfinetes; de quando em quando, uma rajada fresca sacode a rama dos
pinheiros, corta o silêncio então um vago murmúrio de folhagem, — da folhagem
sem dúvida, mas que acaso poderia parecer o palrear dolente dos mortos uns com
os outros, de cova para cova...
Vou vagueando, com passos e em espírito. Estou só, ou
quase só; há pouco dei fé, por entre as sepulturas, de uma velha japonesa,
guarda do cemitério, que ia apanhando do chão alguns cavacos. Vou lendo os
epitáfios, estudando a botânica tumular nos arbustos plantados e nos musgos
espontâneos, lançando um olhar condoído às coroas murchas, que aqui e ali se
encostam ao mármore das lápidas, pobres coroas queimadas pelo sol, rasgadas
pelo vento, roídas pelos vermes, poluídas pelo pó, e em pó se desfazendo...
Neste grêmio de mortos abundam os padres e os missionários de todas as seitas e
de todos os países; vários pilotos dos mares do Japão, capitães, tripulantes de
barcos; gente de negócio; e a mais uns pobres nomes obscuros de mulheres e de
crianças, sem títulos nem história. Aqui deparo agora com um nome de português,
Felisberto da Cunha, da Figueira, que morreu com quarenta anos, e a esposa (uma
japonesa) lhe mandou erigir o mausoléu.
***
De trilha em trilha e de túmulo em túmulo, eis-me em
frente do monumento tumular dos marinheiros franceses assassinados em Sakai.
Lúgubre história; e aqui, neste Japão da grande hospitalidade e da notória
cortesia, impressiona por estranha e quase inverossímil. Pois foi bem
verdadeira. Há mais de trinta anos, por um dia de Março, uma lancha a vapor da
corveta Dupleix aguardava na praia de
Sakai a volta de alguns oficiais, que haviam descido à terra e seguido para
Osaka; passa casualmente um troço de tropas do Mikado, samurais da província de Tosa; e sem provocação, sem um leve
pretexto, fazem fogo sobre os marinheiros, matam onze. São os onze túmulos
destes mártires, destes míseros camaradas (porque eu sou como eles marinheiro),
que agora contemplo.
Sobre três degraus de pedra alça-se uma alta cruz; e
aos lados, cinco por banda, e o aspirante à frente, como se estivessem na tolda
da corveta em formatura, estão os onze corpos, estão as onze lajes, aqueles
desfeitos em pó seguramente, estas enegrecidas pelo tempo e pela lepra dos
líquenes ressequidos... pois não se esqueça que há mais de trinta invernos vai
durando a triste formatura. Sobre a cruz leio o seguinte: — “À la memoire des onze marins de Dupleix,
massacrés à Sakai le 8 mars 1868. Requiescant in pace.” — Massacrés! massacrados! Como isto é
destoante neste solo, no Dai-Nippon das paisagens amorosas e do sorriso perene
nos rostos dos que passam!...
Vou lendo seguidamente as inscrições dos túmulos: — “Ci git Guilon, Charles Pierre, aspirant de 1ère
classe, agê de 22 ans. Priez pour lui. — Ci git Boulard, Vincent, matelot de 3ème
classe, agê de 21 ans. Priez pour lui. — Ci git Nonail, Jean Mathurin, matelot
de 3ème classe, agê de 25 ans. Priez pour lui. — Ci git Condette,
François Désire, matelot de 3ème classe, agê de 24 ans. Priez pour lui.
— Ci git Lemeur, Gabriel Jacques Marie, quart.r m.tre de
manoeuv.re de 1ère classe, agê de 29 ans. Priez pour lui.
— Ci git Savie, Jacques, matelot de 3ème classe, agê 23 ans. Priez
pour lui. — Ci git Humet, Arséne Florimont, matelot de 3ème classe,
agê de 24 ans. Priez pour lui. — Ci git Langenais, Auguste Louis, matelot de 3ème
classe, agê de 22 ans. Priez pour lui. — Ci git Bobes, Lazare Marie, matelot de
3ème classe, agê de 22 ans. Priez pour lui. — Ci git Modest, Pierre
Marie, matelot de 2e classe, agê de 26 ans. Priez pour lui. — Ci git
Grunenberger, Victor, ouvrier chaufeur de 3ème classe, agê de 24
ans. Priez pour lui.” — A ladainha é longa, como vêem; e bem comovedora,
quando se atenta nas idades. Onze rapazes; quadra de ilusões, de amores, de esperanças.
O mais velho do grupo teria hoje os seus sessenta e dois anos, se fosse vivo;
de sorte que todos estes pobres moços poderiam muito bem gozar ainda agora da
doce alegria de viver, se o destino lhes fosse menos duro: o aspirante vestiria
provavelmente a sua farda de capitão-de-mar-e-guerra, chapada de veneras; e os
marujos estariam talvez com a sua baixa, na aldeia pátria, em descanso, a verem
o mar por um óculo, rodeados de filhos e de netos... Ah! bárbara cáfila de
soldados japoneses!...
A gente pode recompor em pensamento a cena da praia de
Sakai. Uns belos louros, rosados como pêssegos, robustos como jovens Hércules.
Riem, brincam, cantam, pisando a fofa areia. É um bando de irmãos, todos da
mesma idade, tratando-se por tu, passando de mão em mão a bolsa de tabaco, e
até de boca para boca o cachimbo de gesso fumegante. — “Olha, Jacques! Repara,
Gabriel!” — E batem palmadas nas costas uns dos outros, e brilham-lhes as
pupilas gaiatas e sagazes, apontando, em grandes gestos rudes, para os recortes
estranhos da paisagem, para os contorcidos pinheiros que rendilham o horizonte,
para as ameixieiras em pasmosas florescências, para as casinhas de madeira e de
papel, para as musumés em sedas,
sedutoras... exóticos, cativantes aspetos de um país maravilhoso, que abre
agora as suas portas à curiosidade do mundo ocidental, deslumbrando a
imaginação juvenil destes pobres franceses, habituados à monotonia do azul das
longas viagens fadigosas. Consta que os garotitos de Sakai iam afluindo à
praia, e quedavam-se em volta dos marujos, boca aberta, espantados dos seus
modos, do uniforme, das suas feições de raça branca; e que estes com as
crianças partilharam algum pão das suas provisões. De repente, surde de algures
um bando petulante, irrequieto, multicor pelas bandeiras desfraldadas e pelas
sedas das cabaias, e reluzente pelas armas que empunha; são samurais do império; o quadro é deveras
interessante; os marujitos, surpresos e atentos, são todos olhos... olhos que
em breve se cerram, quando os corpos caem inertes sobre a areia, após uma
descarga de metralha... Ah! bárbara cáfila de soldados japoneses!...
***
No meu espírito vagabundo, depois da ferocíssima cena
de matança, é agora a sorte destes samurais
que relembro, e me comove. Comovem-me assassinos? Sim; os anos foram correndo
sobre os fatos e esfriaram os rancores. Pode hoje memorar-se, sem asco, com
simpatia, mesmo nos seus transes sanguinários, a breve luta de resistência que
o velho Nippon feudal, embevecido na sua lenda prestigiosa, manteve contra
aqueles que vinham despertá-lo do seu sonho; e para o bando de Sakai, soldados
todos, pertencendo à nobre casta dos guerreiros, seria realmente exceção
estranha se não fulgurassem no seu ânimo, remindo-os do opróbrio, as virtudes
da casta — a extrema dedicação aos chefes, o sacrifício de si próprios pela
pátria, e o amor por essa pátria guindado à intensidade de paixão, mais alto
ainda, aos paroxismos do delírio. —
A história plenamente nos explica o ódio que a massa
dos guerreiros ia nutrindo então pelos estranhos. O shogun, generalíssimo do
imperador, com residência em Yedo, assinara por conta própria tratados de
amizade e de comércio com a América e com a Europa, e os estrangeiros, em
Yokohama, pisavam já afoitamente o solo japonês. O shogun violava por este modo
o dogma sagrado do império, que era o isolamento absoluto, a exclusão do homem
do Ocidente, o desdenhoso desinteresse pelo mundo, o gozo eterno e sem
partilha, deliciosamente egoísta, do país maravilhoso que os deuses haviam
legado ao povo eleito. Quando a notícia do insólito desacato chegou até Kioto,
a cidade santa, onde vivia a corte, em torno do Soberano, a mais acesa cólera
explodiu, e todas as energias se ligaram para humilhar o shogun e varrer para
sempre da pátria os teimosos intrusos. — “Morte aos bárbaros!” — foi o grito do
soberano, da corte, dos senhores feudais. — “Morte aos bárbaros!” — foi o credo
que incutiram às legiões à pressa reunidas, que corriam a expulsar, a
massacrar, a exterminar, os estrangeiros. O shogun, supremo em mando até então,
estava perdido, debaixo de seus pés tremia a terra, rugia o vulcão político que
em breve ia esmagá-lo; mas, pela fatalidade dos tempos, as energias e as
cobiças dos intrusos haviam de vencer, de impor os seus desígnios; e a retórica
dos diplomatas, prudentemente sublinhada pela metralha dos canhões, tinha de
ser ouvida. Os dias iam passando, e o solene decreto de extermínio não podia
ser cumprido; apenas, de quando em quando, um ou outro samurai lograva decepar alguma cabeça loira de inglês, merecendo dos
seus chefes fartos aplausos pelo feito. Cedo, bem cedo, os vultos dirigentes
compreenderam que a luta era impossível, que o mistério nipônico findara; e o
Japão foi descerrando pouco a pouco as suas portas, entrando em negociações com
os diplomatas estrangeiros, não já pela iniciativa incompetente do shogun, mas
pela própria iniciativa do soberano. O shogun, por inútil, foi deposto; como se
não conformasse com a vontade imperial, travou-se dura luta, foi batido e
retirou para Yedo. Estes acontecimentos sucediam-se em tropel; a grande maioria
da nação não podia apreciá-los, e menos presumir das vistas do soberano; a
grande maioria da nação ia odiando o shogun e repetindo o seu credo — “Morte
aos bárbaros!” — sem se aperceber que a situação mudara, que a corte já tratava
com as potências, e que a agressão aos europeus, havia pouco meritória, era
agora condenada e prejudicava fortemente a marcha da política imperial.
***
Foi assim que os soldados de Sakai, massacrando os
marinheiros franceses que encontravam, julgavam ter cumprido um dever grato ao
soberano e útil para a pátria. Iludiam-se. A resposta às enérgicas reclamações
das autoridades francesas foi a condenação à morte de todos os culpados, que
eram vinte. Como guerreiros, não bandidos, foi-lhes concedido como graça o hara-kiri, isto é, a morte honrosa,
devendo cada qual rasgar a própria carne a punhaladas.
Foi escolhido para a cerimônia Myokokuji, um templo de
Sakai, e em 16 de Março teve lugar o suplício. Passou-se então um espetáculo
tremendo, não de tristeza, antes uma festa de sangue, de morte, que excede a
compreensão dos homens europeus. Enchia o recinto do templo a multidão dos oficiais
do império, das autoridades francesas, das testemunhas, dos amigos, dos bonzos,
dos curiosos, vistosa em cores, em belos uniformes, em garbo e fidalguia; e, um
por um, por seu turno, veio aparecendo cada condenado, todo vestido de luto, de
alvas vestes, ajoelhou no solo, curvou-se em reverências, saudou a multidão,
recebeu solenemente o curto sabre de etiqueta, cravou-o até aos copos nas
entranhas, rasgou as carnes com mão firme, tingiram-se as vestes de escarlate,
jorrou o sangue sob uma urna próxima, a fronte crispou-se pela dor, a cor fugiu
da tez, o corpo pendeu inerte, para a frente...
Minamura Inokichi Minamoto no Motoaki, de vinte e
cinco anos, escreveu no seu último momento de vida uma curta poesia, que era
assim: — “Condenam-me; não discuto a minha morte; servirá ela de pretexto à
justiça do futuro, que decidirá se, para honra da pátria, devem ser expulsos os
bárbaros.” — Nishimura Saheji Minamoto no Ujiatsu, de vinte e quatro anos,
escreveu o seguinte: — “Não me pesa o morrer, a vida passa como o orvalho
desaparece com o vento; uma coisa me aflige: — o futuro da pátria.” — Ikegami
Iasakichi Fujiwara no Mitsunori, de trinta e oito anos, escreveu o seguinte: —
“É preciso alumiar o espírito da nação; para isto abandono o corpo ao meu
país;” — este, quando as entranhas lhe caíram, fez menção de atirá-las à cara
dos franceses. Oishi Jinkichi Fujiwara no Yoshinobu, de trinta e oito anos,
escreveu o seguinte: — “Façamos hoje o sacrifício da vida, com o maior
respeito, pois somos todos filhos deste país dos deuses.” — Sugimoto Shirogora
Minamoto no Yoshinaga, de trinta e quatro anos, escreveu o seguinte: — “Sinto o
coração feliz pela agonia que sofro, ao dar a vida pela pátria;” este, por um
gesto respeitoso, ofereceu as entranhas aos franceses. Katsugase Saburoku Taira
no Ioshihaya, de vinte e oito anos, escreveu o seguinte: — “Ninguém pode abalar
no ânimo dum samurai o sentimento que
tributa ao seu senhor.” — Iamamoto Tetsusuka Minamoto no Toshiwo, de vinte e
oito anos, escreveu o seguinte: — “Muitos condenam a alma do samurai; pensarão de outro modo aqueles
que bem a conhecem.” — Morishita Mokichi Fujiwara no Shigemasa, de trinta e
nove anos, escreveu o seguinte: — “Abramos o caminho aos ignorantes, a fim de
alumiar o mundo.” — Kitashiro Kensuke Minamoto no Katayoshi, de trinta e seis
anos, escreveu o seguinte: — “Para legar o seu nome à posteridade há um meio: o
sacrifício da vida.” — Inada Kwannoyo Fujiwara no Norashige, de vinte e oito
anos, escreveu o seguinte: — “Os japoneses não temem de perder a vida; também a
cerejeira, rainha das árvores pelas suas flores, perde um dia essas flores.” —
Yanagase Tsuneshichi Fujiwara no Yoshiyoshi, de vinte e seis anos, escreveu o
seguinte: — “Sacrifiquemos aqui as nossas vidas, e mostremos aos estrangeiros o
que vale a nobre coragem japonesa.” — Contando bem, são onze já. Parou aqui a
cena, porque o comandante do Dupleix,
notando já onze mortos para expiação dos onze crimes, deu-se por satisfeito,
pediu que cessasse aquele espetáculo assombroso. Dos samurais perdoados, um suicidou-se em breve trecho, dando de barato
a graça pela honra de morrer com os seus; os outros dispersaram-se; vive um
ainda hoje, presumo que em Nagoya, um interessante velhinho, que reconta de bom
grado as peripécias daquele horrível drama.
Os onze samurais
foram ali mesmo enterrados, no cemitério, junto ao templo. Ainda há pouco lá
estive. O templo é um plácido retiro de sombra e de silêncio, tão velho, que há
alguns meses um rijo vendaval quase o desfez em pó.
Os peregrinos visitam primeiro um jardim interior,
onde uma árvore sagrada, um enorme sagueiro, ocupa o espaço todo, lançando em
volta as suas palmas verdes. A lenda dá-lhe mui longos anos de existência, e
reza que há quase quatro séculos o shogun Nobunaga tanto se agradou daquela
árvore, que mandou arrancá-la e transportar para um dos seus jardins; mas tanto
se mirrava o sagueiro, e tanto se lamentava noite e dia, que não houve remédio
senão trazê-lo de novo ao velho pouso.
Do jardim, passa-se ao pequeno cemitério. As
sepulturas, apresentando a forma de cubos de granito, aconchegam-se, agrupam-se
numa intimidade comovente; por entre as pedras, tufam e florescem as azáleas e
verdejam os musgos, e mãos piedosas vêm depor ramos de flores e de verdura.
Entre estas sepulturas contam-se as dos onze samurais. Mais adiante, as urnas de charão que serviram ao
suplício, alinham-se num altar, e ainda se distinguem manchas negras, do sangue
derramado.
***
Como eu dizia há pouco, os anos passaram sobre os fatos
e esfriaram os rancores. Nestes dois cemitérios, de Kobe e de Sakai, nem já
existe sequer o pó dos ossos, existem só legendas. Em Kobe, as onze sepulturas
evocam no espírito esse período de frenesi da Europa, de curiosidade, de
cobiça, em face da morna inércia deste canto do mundo; e as esquadras que o
devassam, que o visam com os canhões; e os diplomatas que intrigam, que teimam,
conduzindo-o finalmente, à força, ao convívio das nações; e, como peripécias
ínfimas, quase olvidadas e não pesando na marcha progressiva dos negócios, o
sacrifício inglório de alguns humildes obreiros dessa empresa... Em Sakai, as
onze sepulturas rememoram a desesperada resistência duma tribo feliz, contra
aqueles que vinham arrancá-la aos seus sonhos amorosos, rasgar-lhe a lenda e a
crença, e bradar-lhe que ser-se assim ditoso, já não é permitido. Pobres
mortos! abraço com um mesmo olhar de alma, enternecido, as vinte e duas
campas...
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