Depois do Cometa
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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De olhos pisados e presos num halo de
violeta cinta, Alexandrina ergueu-se da “steeple-chaise”, e beijou a mão da
velha senhora D. Carolina, que acompanhava Mimi, naquela matutina visita de
núpcias.
Ao depois, como duas flores de uma só haste
separadas para sempre que se reencontrassem, a recém-casada recebeu alacremente
nos braços a figura da amiga e beijaram-se fartamente.
De outro lado, Artur, o novel esposo,
enfardado no seu dolman de brins brancos, cumprimentara, cerimoniosamente, a Dona
Carolina e com um sorriso prazenteiro aplaudiu as brejeirices de Mimi.
Esta e Alexandrina, ao depois de afáveis
cumprimentos gerais, confidenciavam numa janela, por detrás de arrendadas
cortinas, onde se foram acastelar para a permuta de segredos...
***
— A que
horas despertaste?
— Nem sei
mesmo...
— Não é
possível.
— Palavra!
— Então
ferraste no sono, e...
— Ao contrário:
não dormimos.
— É
esquisito.
— Como te
enganas! Não calculas o que seja a estafa de um dia de noivado.
— O dia
mais belo da mulher...
— Parece-te?
— Esta é
boa, Alexandrina! Sou eu quem deve perguntar-te: não te sentiste extraordinariamente
feliz?
— Ah!
sim... Casei-me por meu gosto...
— Olha
que já me pareces outra com tanta sisudez e secura...
— Não é,
Mimi. Artur e Dona Carolina nos olham insistentemente. É preciso que não me
tenham na conta de alguma leviana: já hoje em dia, minha amiga, tenho segredos
que te não posso falar...
— Proibiram-te
de dizermos..
— Não!
Nem sei explicar-te, mas há tanta alteração na vida de uma mulher que se casa,
dentro das primeiras vinte e quatro horas de sua vida conjugal, que nem sei
como me reconheceste hoje... Já viste, no craveiro, o botãozinho verde; o
casulo de folhas, como, na manhã seguinte, está um perfumoso cravo, uma flor
distinta? Se te dessem as duas coisas, pela vez primeira, tu contestarias o
fato como inverídico...
— Mas eu
te vejo a mesma boniteza...
— Sim! É
questão de alma. Supõe que adormeceste no começo de uma viagem e que quando
despertaste estavas numa terra de estranhos. O teu corpo seria o mesmo, a tua
lindeza não seria transformada, mas o teu coração palpitaria diversamente na
sociedade desconhecida a que aportaste. As tuas amigas ficariam noutra parte.
Se quisesses vê-las, seria preciso que regressasses ou que elas viajassem para
onde foras. Assim no casamento: viajei para muito longe de ti. Para nos
irmanarmos como dantes, ou voltarei à minha imaculabilidade de ontem, o que
seria impossível, ou tu ascenderás ao matrimônio para o que faço votos.
— Tens
razão!
— Não te
parece?
— Falas e
procedes tão judiciosamente que não me atrevo a duvidar das alterações por que
passaste... Eu, porém, serei capaz de repudiar o casamento para não me esquecer
tão depressa das intimidades com as minhas amigas...
— Não me
esqueci. És injusta! Não te darei novas confidências: as velhas, entretanto,
ficarão acariciadas como um sonho de felicidades na vida de uma mulher
inditosa.
— Pois
pensei que me dirias tudo...
— Tudo...
quê?
— Ora!
— Denuncias
que pensas em algumas coisas que não são verídicas, ou, pelo menos, não o foram
para mim.
— Foste
diferente das outras!
— Ofendes-me.
— Não te
ofendo, não. Desconheço-te.
— Que
quererias tu que eu te falasse?
— Não
sei. Se soubesse, desnecessário seria que me referisses.
— Objetiva
o que queres saber... e depressa, porque Artur me acompanha com um olhar
seriamente investigador e tua mãe franze o sobrolho para mim... Um há de
supor-me indiscreta para te comunicar tolices... e a outra... corrupta para te
ensinar... loucuras...
— Não!
Deixa...
— És má!
Tens talento e não queres compreender a minha situação, especialmente no dia de
hoje.
— Já te
compreendi: e estou pelo que tu quiseres...
— Amuas
sem razão.
— Com que
direito a planta exige viço da flor que já foi colhida? Compreendo,
perfeitamente, agora, que entre nós duas existe a alma do Sr. Artur...
— Não
exageres...
— Podes
ouvir de mim o maior segredo, bem como ouvirás dele também. Os meus serão
contados, sílaba por sílaba, aos ouvidos do Sr. teu esposo, porque não deve
haver um conhecimento novo que não pertença a ambos: os dele... morrerão
contigo, porque não deves trair à tua fé conjugal...
— És
incondescendente!
— Sim,
sou incondescendente na verdade das coisas.
— Em
parte, minha amiga.
— Não. Em
tudo.
— Veremos.
— Pois
experimenta!
— E se eu
te provar?
— Pago-te
com um beijo...
— Oh!
Pois então a mulher que se casou pode beijar outra pessoa que não seja o seu
esposo?
— Deste
modo, Mimi, não chegaremos a um acordo. Há beijos como há conversas... O que te
conversei até ontem, não conversarei jamais com o meu esposo. O que te converso
agora, não conversarei jamais com a tua mamã. Beijos!... Os que te dou são da
ordem dos que sempre te dei...
— Bem te
compreendo. A mulher casada tem duas existências.
— Não sei
se somente duas, mas, a solteira, antes do matrimônio, nem sei quantas tem...
— Contudo,
conto-te eu um incidente de minha intimidade feminina. Dizes ou não ao teu marido?
— Conforme.
— Não é
caso de dubiedades. Dizes ou não?
— Se for
só do teu interesse, não.
— Faço-te
justiça, minha boa Alexandrina: a tua gentileza obriga-te ao falseamento agora,
somente agora, do teu dever. Contarás tudo o que te disserem, ou serás uma
perjura na fé conjugal. Eu mesma duvidaria de tuas intenções, se ocultasses do
teu marido o menor acontecimento que te revelassem. E, por fim, em tudo quanto
te falarem hás de descobrir sempre esse interesse que não é exclusivo da pessoa
que te falou, para contares tudo ao teu companheiro. Deixemos essas coisas de
parte, e afetemos a nossa convivência hipócrita, como tu queres...
— Dou-te
razão, minha amiga. O mundo é esse mesmo e não serei eu quem o modificará.
— Estavas
bela, Alexandrina, nas tuas vestias de noiva!
— Achaste?
— Encantadoramente
bela!
— E tu me
viste?
— Sim.
Passaste bem junto de mim quando saltavas da carruagem à porta da igreja.
Tinhas um rubor nas faces de matar de inveja.
— Era a
última nota do meu pudor de virgem!
— A tua
costureira fez o teu vestido a capricho e o teu cabeleireiro assentou-te a
grinalda como uma coroa de rainha. Agradou-me a tua elegância. E, por que não
te censurar? só não gostei de trazeres os olhos humildemente baixos...
Faltava-te o sol do teu olhar esplêndido.
— Lisonjeira!
— Eu
traria os olhos bem iluminados, fascinando as multidões que se dominavam com a
curiosidade de ver-me...
— Tens
razão. Naquela hora, eu temia os olhos de tanta gente... sem saber que... mais
tarde...
— Dize...
dize...
— Dir-te-ei...
mais tarde... eu teria sobre o meu corpo olhares mais algozes...
— Deveras?
— Sim,
minha amiga! Não calculas o olhar de Artur quando ele... Oh! Digo-te demais!
Perdoa se te ofendo...
— Desculpo-te.
Senhora de mim, sei dispensar-te das leviandades que, ainda há pouco,
condenavas. Onde puseste o teu véu?
— Guardei-o
já para oferenda a uma Santa.
— Quem to
tirou?
— A
mamã... Artur conversava no salão com o papá e dois amigos retardatários...
Sentia-me alquebrada. Também já era alta hora da madrugada. Duas ou três, não
sei.
— E o teu
vestido? Era primoroso...
— Está no
armoire-àglace...
— Muito
amarrotado?
— Não.
Quando o despi... chorei! Como é que uma mulher só se veste tão bem uma vez na
vida?!...
— Choraste,
Alexandrina?
— Sim.
— É de
mau agouro. Dizem que morrerá primeiro aquele que chora...
— Não
sabia.
— Nem que
morrerá antes do outro o que se deitou por primeiro?
— Também
não! E por isso também serei eu quem morrerá antes...
— Ah! já
estavas deitada quando ele apareceu na alcova?
— Sim.
Ele se abeirou de mim e, segurando-me uma das mãos, tratou do sucesso das
festas de nosso casamento. Recapitulamos toda a seroada, desde as asperezas do
juiz casamenteiro, até às melifluidades de voz do sacerdote, quando fez a prática
sobre a felicidade conjugal. Recompusemos a sociedade que aqui esteve. As
danças, o serviço de buffet, a
cerimônia do chá... Tudo se conservou. Ele dizia uma coisa, eu lembrava outra.
Sorríamos-nos, comentávamos, com seriedade, as incorreções dos outros...
— E o
tempo se passava...
— É
exato, Mimi. O tempo se escoava enganadoramente. Não sabes, porém, como foi
oportuna a nossa conversação. Quando estremecemos, ouviu-se o tiro das cinco
horas...
— E
então?
— Artur
lembrou-se do cometa... Já o viste?
— Ainda
não!
— Pois é
belo! Artur mostrou-mo... Que lindo esteve ele na madrugada do meu
casamento?!... Se todos vissem o cometa como eu vi...
Interrompidas
por Dona Carolina, Mimi e Alexandrina, dando-se as mãos, nervosamente, passaram
ao recinto da sala e entraram na conversação comum...
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