11/13/2017

Decadência de dois grandes homens (Conto), de Machado de Assis


Decadência de dois grandes homens

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Os antigos frequentadores do Café Carceller hão de recordar-se de um velho que ali ia todas as manhãs às oito horas, almoçava, lia os jornais, fumava um charuto, dormia cerca de meia hora e saía. Estando de passagem no Rio de Janeiro, aonde viera para tratar questões políticas com os ministros, atirei-me ao prazer de estudar todos os originais que encontrava, e não tenho dúvida em confessar que até então só tinha encontrado cópias. O velho apareceu a tempo; tratei de analisar o tipo.

Era meu costume — costume das montanhas mineiras — acordar cedo e almoçar cedo. Ia fazê-lo ao Carceller, justamente à hora do velho, dos empregados públicos e dos escreventes de cartório. Sentava-me à mesa que enfrentava com a do velho, e que era a penúltima do lado esquerdo contando do fundo para a rua. Era ele homem de seus cinquenta anos, barbas brancas, olhos encovados, cor amarela, algum abdome, mãos ossudas e compridas. Comia vagarosamente algumas fatias de pão-de-ló e uma chávena de chocolate. Durante o almoço não lia; mas apenas acabado o chocolate, acendia um charuto que tirava do bolso, que era sempre do mesmo tamanho, e que no fim de certo tempo tinha a virtude de o fazer adormecer e deixar cair das mãos o jornal que estivesse lendo. Encostava então a cabeça à parede, e dormia plácido e risonho como se algum sonho agradável lhe estivesse dançando no espírito; às vezes abria os olhos, contemplava o vácuo, e continuava a dormir tranquilamente.

Indaguei do caixeiro quem era aquele freguês.

— Não sei, respondeu; almoça aqui há quatro anos, todos os dias, à mesma hora.

— Tem ele por aqui algum conhecido?

— Nenhum; aparece só e retira-se só.

Aguçava-me a curiosidade. Ninguém conhecia o velho; era mais uma razão para conhecê-lo eu. Procurei travar conversa com o desconhecido, e aproveitei uma ocasião em que ele acabava de engolir o chocolate e procurava com os olhos algum jornal.

— Aqui está este, disse-lhe eu, indo levar-lhe.

— Obrigado, respondeu-me o homem sem levantar os olhos e abrindo a folha.

Não obtendo mais nada, quis travar conversa por outro modo.

— Traz hoje um magnífico artigo sobre a guerra.

— Ah! disse o velho com indiferença.

Nada mais.

Voltei ao meu lugar disposto a esperar que o velho lesse, dormisse e acordasse. Paciência de curioso, que ninguém a tem maior, nem mais fria. Ao cabo do tempo do costume tinha o homem lido, fumado e dormido. Acordou, pagou o almoço e saiu. Acompanhei-o imediatamente; mas o homem tendo chegado à esquina, voltou e foi até à outra esquina, aonde se demorou, seguiu por uma rua, tomou a parar e a voltar, a ponto que eu desisti de saber onde iria ele ter, tanto mais que nesse dia devia entender-me com um dos membros do governo, e não podia perder a ocasião.

Quando no dia seguinte, eram 15 de março, voltei ao Carceller, encontrei lá com o meu homem, assentado no lugar do costume; estava acabando de almoçar, almocei também; mas desta vez guardou-me o misterioso velho uma surpresa; em vez de pedir um jornal e fumar um charuto, encostou a cara nas mãos e começou a olhar para mim.

— Bom, disse eu; está amansado. Naturalmente vai dizer-me alguma coisa. Mas o homem nada disse e continuou a olhar para mim. A expressão dos olhos, que de ordinário era morta e triste, nessa ocasião tinha um quê de terror. Supondo que ele quisesse dizer-me alguma coisa, fui o primeiro a dirigir-lhe a palavra.

— Não lê hoje os jornais?

— Não, respondeu-me ele com voz sombria; estou pensando...

— Em quê?

O velho fez um movimento nervoso com a cabeça e disse:

— São chegados os idos de março!

Estremeci ouvindo esta singular resposta, e o velho, como se não visse o movimento, continuou:

— Compreende, não? É hoje um tristíssimo aniversário.

— A morte de César? perguntei eu rindo.

— Sim, respondeu o velho com voz cavernosa.

Não tinha que ver; era algum homem maníaco; mas que haveria de comum entre ele e o vencedor das Gálias? A curiosidade cresceu; e aproveitei a disposição em que o velho estava de travar conhecimento. Levantei-me e fui sentar-me à mesa dele.

— Mas que tem o senhor com a morte de César?

— O que tenho com a morte daquele grande homem? Tudo.

— Como assim?

O velho abriu a boca e ia responder, mas a palavra ficou-lhe no ar e o homem voltou à taciturnidade habitual. Ocupei esse tempo em contemplá-lo mais detidamente e de perto. Olhava ele para a mesa, com as mãos postas debaixo das orelhas; os músculos do rosto estremeciam de quando em quando, e os olhos rolavam dentro das órbitas como favas nadando em prato de molho. No fim de algum tempo olhou para mim, e eu aproveitei a ocasião para dizer-lhe:

— Quer um charuto?

— Obrigado; eu só fumo dos meus; são charutos opiados, grande recurso para quem quer esquecer um grande crime. Quer um?

— Não tenho crimes.

— Não importa; colherá prazer em fumá-lo.

Aceitei o charuto, e guardei-o.

— Consente que o guarde?

— Pois não, respondeu ele.

Outro silêncio mais prolongado. Vi que o homem não estava para conversa; a fronte se lhe entristecia cada vez mais como a Tijuca quando está para cair temporal. Ao cabo de alguns minutos, disse-lhe eu:

— Simpatizo muito com o senhor, quer que eu seja seu amigo?

Luziram os olhos do homem.

— Meu amigo? disse ele; oh! por que não? preciso de um, mas de um amigo verdadeiro.

Estendeu-me a mão, que eu lhe apertei com afeto.

— Como se chama? perguntei eu.

Sorriu o velho, soltou das cavernas do peito um longo e magoadíssimo suspiro, e respondeu-me:

— Jaime. E o senhor?

— Miranda, doutor em medicina.

— É brasileiro?

— Sim, senhor.

— Meu patrício então?

— Creio.

— Meu patrício!...

E dizendo isto o velho teve um sorriso tão infernal, tão sombrio, tão lúgubre, que eu tive ideia de me ir embora. Reteve-me a curiosidade de chegar ao fim. Jaime não prestava atenção ao que se passava ali; e exclamava de quando em quando:

— Os idos de março! os idos de março!

— Olhe, meu amigo Sr. Jaime, quer ir dar um passeio comigo?

Aceitou sem dizer palavra. Quando nos achamos na rua perguntei-lhe se preferia algum lugar.

Respondeu-me que não.

Andamos ao acaso; eu procurava travar conversa a fim de distrair o homem dos idos de março; e consegui a pouco e pouco que se tornasse mais conversador. Era então apreciável. Não falava sem gesticular com o braço esquerdo, com a mão fechada, e o dedo polegar aberto. Contava anedotas de mulheres e mostrava-se grande apreciador do sexo amável; era exímio na descrição da beleza feminina. A conversa passou à história, e Jaime exaltou os tempos antigos, a virtude romana, as páginas de Plutarco, Tito Lívio e Suetônio. Sabia o Tácito de cor e dormia com Virgílio, disse ele. Seria um doido, mas conversava com muito juízo.

Sobre a tarde tive fome e convidei-o a jantar.

— Comerei pouco, respondeu Jaime; estou indisposto. Ai! os idos de março!

Jantamos em hotel, e eu quis acompanhá-lo a casa, que era na Rua da Misericórdia. Consentiu nisso com verdadeira explosão de alegria. A casa dizia com o dono. Duas estantes, um globo, vários alfarrábios espalhados no chão, uma parte sobre uma mesa, e uma cama antiga.

Eram seis horas da tarde quando entramos. Jaime tremia quando chegou à porta da sala.

— Que tem? perguntei-lhe eu.

— Nada, nada.

Mal entrávamos na sala, pulou da mesa, onde se achava acocorado, um enorme gato preto. Não fugiu; saltou aos ombros de Jaime. Este tremeu todo e procurou aquietar o animal passando-lhe a mão pelo lombo.

— Sossega, Júlio! dizia ele, enquanto eu com o olhar inspecionava o albergue do homem e procurava cadeira onde me sentasse.

O gato pulou depois à mesa e fitou em mim dois grandes olhos verdes, fulminantes, interrogadores; compreendi o susto do velho. O gato era modelo na espécie; tinha certo ar de ferocidade da onça, de que era miniatura acabada. Era todo preto, pernas compridas, longas barbas; gordo e alto, tendo uma extensa cauda que brincava no ar dando saltos caprichosos. Tive sempre antipatia aos gatos; aquele causava-me horror. Parecia-me que ia saltar sobre mim e esganar-me com as largas patas.

— Mande o seu gato embora, disse eu a Jaime.

— Não faz mal, respondeu-me o velho. Júlio César, não é verdade que tu não fazes mal a este senhor?

O gato voltou-se para ele; e Jaime beijou repetidas vezes a cabeça do gato. Do susto passara à efusão. Compreendi que seria pueril assustar-me quando o animal era tão manso, ainda que não compreendi o medo do velho quando entrou. Haveria alguma coisa entre aquele homem e aquele bicho? Não pude explicá-lo. Jaime acariciou o gato enquanto eu por me distrair lia o título das obras que estavam nas estantes. Um dos livros tinha no lombo este título: Metempsicose.

— Acredita na metempsicose? perguntei eu.

O velho, que estava ocupado em tirar o paletó e vestir um chambre de chita amarela, interrompeu aquele serviço, para dizer-me:

— Se acredito? Em que queria o senhor que eu acreditasse?

— Um homem instruído, como o senhor, não devia crer em tolices desta ordem, respondi abrindo o livro.

Jaime acabou de vestir o chambre, e veio a mim.

— Meu caro senhor, disse ele; não zombe assim da verdade; nem zombe nunca de filosofia nenhuma. Toda a filosofia pode ser verdadeira; a ignorância dos homens é que faz de uma ou de outra crença da moda. Contudo para mim, que as conheci todas, só uma é a verdadeira, e é essa a que alude o senhor com tanto desdém.

— Mas...

— Não me interrompa, disse ele; quero convencê-lo.

Levou-me a uma poltrona de couro e obrigou-me a sentar ali. Depois foi sentar-se ao pé da mesa, em frente a mim e começou a desenvolver a sua teoria, que eu ouvi sem pestanejar. Jaime tinha a palavra fácil, ardente, impetuosa; animavam-se-lhe os olhos, tremia-lhe o lábio, e a mão, a famosa mão esquerda, agitava no ar o dedo polegar aberto e curvo como um ponto de interrogação.

Ouvi o discurso do homem, e não ousei contestar-lhe. Era evidentemente um doido; e ninguém discute com homem doido. Jaime acabou de falar e caiu numa espécie de prostração. Cerrou os olhos e ficou insensível alguns minutos. O gato saltou à mesa, entre mim e ele, e começou a passar a mão pela cara de Jaime, o que o fez despertar daquele abatimento.

— Júlio! Júlio! exclamava ele beijando o gato; será hoje? será hoje?

Júlio não parecia entender a pergunta; alteou o lombo, descreveu com a cauda algumas figuras geométricas no ar, deu dois saltos e pulou ao chão.

Jaime acendeu um lampião, enquanto eu me levantava para me ir embora.

— Não se vá, meu amigo, disse-me Jaime; peço-lhe um favor.

— Qual?

— Fique comigo até a meia-noite.

— Não posso.

— Por quê? não imagina que favor me faria!

— Tem medo?

— Hoje tenho: são os idos de março.

Consenti em ficar.

— Não me dirá, perguntei eu, que tem o senhor com os idos de março?

— Que tenho? disse Jaime com os olhos em fogo. Não sabe quem sou?

— Pouco sei.

— Não sabe nada.

Jaime inclinou-se sobre a mesa e disse-me ao ouvido:

— Sou Marco Bruto!

Por mais extravagante que estas palavras pareçam ao frio leitor, confesso que me causaram profunda sensação. Recuei a cadeira e contemplei a cabeça do velho. Pareceu-me que a iluminava a virtude romana. Os olhos tinham fulgores de padre conscrito; o lábio parecia estar fazendo uma oração à liberdade. Durante alguns minutos saboreou ele silenciosamente a minha silenciosa admiração. Depois, sentando-se outra vez:

— Marco Bruto sou, disse, ainda que esta revelação lhe cause espanto. Sou aquele que encabeçou a momentânea vitória da liberdade, o assassino (em que me pese o nome!), o assassino do divino Júlio.

E voltando os olhos para o gato, que estava sobre uma cadeira, entrou a contemplá-lo com uma expressão de arrependimento e dor. O gato fitou nele os olhos verdes, redondos, e nesta contemplação recíproca ficaram até que eu para obter maior explicação do que presenciava, perguntei ao velho:

— Mas, Sr. Bruto, se é aquele grande homem que assassinou César por que receia os idos de março? César não voltou cá.

— A causa do meu receio ninguém a sabe; mas eu lhe direi francamente, pois é o único homem que tem mostrado interesse por mim. Receio os idos de março, porque...

Estacou; enorme trovão rolou nos ares e pareceu abalar a casa até os alicerces. O velho ergueu os braços e os olhos para o teto e fez mentalmente uma prece a algum deus do paganismo.

— Será a hora? perguntou ele baixinho.

— De quê? perguntei.

— Do castigo. Ouça, mancebo; o senhor é filho de um século sem fé nem filosofia; não conhece o que é a cólera dos deuses. Também eu nasci neste século; mas trouxe comigo as virtudes da minha primeira aparição na terra: corpo de Jaime, alma de Bruto.

— Então já morreu antes de ser Jaime?

— Sem dúvida; é sabido que morri; ainda que eu desejasse negá-lo, aí estaria a História para dizer o contrário. Morri; séculos depois, voltei ao mundo com esta forma que vê; agora voltarei a outra forma e...

Aqui o velho começou a chorar. Consolei-o como pude, enquanto o gato, trepando à mesa, veio acariciá-lo com uma afeição bem contrária à índole de uma onça. O velho agradeceu as minhas consolações, e as carícias de Júlio. Aproveitei a ocasião para lhe dizer que efetivamente eu imaginava que o ilustre Bruto devia ter aquela figura.

O velho sorriu.

— Estou mais gordo, disse ele; naquele tempo eu era magro. Coisa natural; homem gordo não faz revolução. Bem o compreendia César quando dizia que não temia a Antônio e Dolabela, mas sim àqueles dois sujeitos amarelos e magros e éramos Cássio e eu...

— Pensa então o senhor que...

— Penso que homem gordo não faz revolução. O abdome é naturalmente amigo da ordem; o estômago pode destruir um império; mas há de ser antes de jantar. Quando Catilina encabeçou a célebre conjuração a quem foi procurar? Foi procurar a gente que não tinha um sestércio de seu; a turba dos clientes, que vivia de espórtulas, não os que viviam pomposamente em Túsculo ou Baias.

Achei curiosa a doutrina e disse a propósito algumas palavras que nos distraíram do assunto principal.

O genro de Catão continuou:

— Não lhe contarei, pois sabe a História, a conjuração dos idos de março. Apenas lhe direi que eu entrara naquela sinceramente, porquanto, como muito bem disse um poeta inglês, que depois me meteu em cena, eu matei César, não por ódio a César, mas por amor da República.

— Apoiado!

— O senhor é deputado? perguntou o velho sorrindo.

— Não, senhor.

— Pensei. Aproveito a ocasião para dizer-lhe que a tática parlamentar de tomar tempo com discursos até o fim das sessões não é nova.

— Ah!

— Foi inventada por meu ilustre sogro, o incomparável Catão, quando César, voltando vencedor da Espanha, queria o triunfo e o consulado. A assembleia inclinava-se a favor do pretendente; Catão não teve outro meio: subiu à tribuna e falou até a noite, falou sem parar um minuto. Os ouvintes ficaram estafados com a arenga, e César vendo que não podia ceder a um homem daquele calibre, dispensou o triunfo, e veio pleitear o consulado.

— De maneira que hoje quando um orador toma o tempo até o fim da hora?...

— Está na altura de Catão.

— Tomo nota.

— Ah! meu rico senhor, a vida é uma eterna repetição. Todos inventam o inventado.

— Tem razão.

— Matamos o divino Júlio, e mal lhe posso dizer o assombro que se seguiu ao nosso crime... Crime lhe chamo porque reconheço hoje que o era; mas sou obrigado a dizer que o ilustre César ofendera a majestade romana. Eu não fui o inventor da conjuração; toda a gente estava inspirada dos meus desejos. Eu não podia entrar no senado que não achasse essa cartinha: “Dormes, Bruto?” ou então: “Ai, Bruto que já o não és”. De toda a parte me instigaram. Uniram-se todos os ódios ao meu, e o mundo presenciou aquela tremenda catástrofe...

Jaime ou Bruto, que eu realmente não sei como lhe chame, concentrou um pouco o seu espírito; depois levantou-se, foi à porta, espiou, deu uma carreirinha e veio sentar-se defronte de mim.

— Há de ter lido que a sombra de César me apareceu depois duas vezes, sendo que, da segunda, veio silenciosa e silenciosa foi. É um erro. Da segunda vez foi que eu ouvi tremendo segredo que lhe vou revelar. Não o disse a ninguém por medo, e medo do que se dissesse de mim. Vá, abra os ouvidos...

Nesse momento o gato começou a dar saltos vertiginosos.

— Que diabo é isto? disse eu.

— Não sei; creio que está com fome. São horas de cearmos.

Jaime— Bruto foi buscar a ceia do gato, e trouxe para a mesa um assado frio, pão, queijo inglês, e vinho italiano e figos secos.

— Os vinhos italianos são uma recordação de minha vida anterior, disse ele. Quanto aos figos, se não são de Túsculo, ao menos os fazem lembrar.

Comemos tranquilamente; eram então oito horas, e o velho estava ansioso que batessem as doze. Ao cabo de meia hora acendeu ele um charuto, e eu o mesmo que ele me havia dado de manhã, e continuamos a falar de César.

— Apareceu-me a sombra, disse ele, e desenrolou um libelo dos males que eu havia feito à República com a morte dele, e ao mesmo tempo acrescentou que o meu crime nada salvara, pois era inevitável a decadência da República. Como eu respondesse um pouco irritado, a sombra soltou estas fatídicas palavras: “Bruto, os deuses querem punir-te da minha morte. Voltaremos ao mundo outra vez debaixo da forma humana, e depois, imediatamente depois minha alma passará ao corpo de um gato. Daí em diante, Bruto, teme sempre os idos de março, porque a um desses aniversários serás transformado em rato, e engolido por mim.”

Tirei o charuto da boca, e contemplei a cara do meu interlocutor. Era impossível que não estivesse próximo um acesso de loucura; mas o olhar do homem conservava a mesma inteligência e serenidade. Ele respirava a fumaça com delícias e olhava, ora para o teto, ora para o gato.

— É um doido manso, pensei eu, e continuei a fumar enquanto o velho continuou:

— Compreende o senhor por que motivo receio esses malditos idos de março, aniversário do meu crime.

Atirou fora o charuto.

— Não fuma? perguntei eu.

— Destes não fumo hoje.

— Quer dos meus?

— Aceito.

Dei-lhe um charuto, que ele acendeu, e eu continuei a fumar o dele, que me fazia sentir delícias inefáveis. Ia-se-me o corpo ficando mole; estendi-me na poltrona e prestei ouvidos ao anfitrião.

Este passeava vagarosamente, gesticulando, rindo sem motivo, outras vezes chorando, tudo como quem tem alguma mania na cabeça.

— Não me dirá, perguntei eu, se é neste gato que está a alma de Júlio?

— Sem dúvida, é neste bicho que se meteu a alma daquele grande homem, o primeiro do universo.

O gato não pareceu reparar nessa adulação póstuma do nobre Bruto, e foi colocar-se no sofá em ação de querer dormir. Pus os olhos no animal, e admirei o que eram os destinos humanos. César estava reduzido à condição de animal doméstico! Aquele gato, que estava ali diante de mim, tinha escrito os Comentários, subjugado os Gauleses, vencido Pompeu, destruído a República. Saciava-se agora com uma simples ceia, quando outrora queria dominar todo o universo.

Jaime veio tirar-me das minhas cogitações.

— Poderia eu ter alguma dúvida acerca da identidade deste animal, disse ele; mas tudo me prova que é ele o meu divino Júlio.

— Como?

— Apareceu-me aqui uma noite sem que a porta estivesse aberta e começou a olhar para mim. Quis pô-lo fora; impossível. Então lembrou-me a ameaça da sombra. — “Júlio César”, disse eu, chamando o gato; e imediatamente começou ele a fazer-me festas. Era fado ou ocasião: mais tarde ou mais cedo o meu túmulo é o ventre deste nobre animal.

— Acho que não tem razão de crer...

— Ah! meu caro doutor... é razão e mais que razão. Quer ver? Júlio César!

O gato, apenas ouviu este nome, pulou do sofá e começou a dar saltos mortais por cima de um Niágara imaginário, a ponto de me obrigar a sair da cadeira e ir para o sofá.

— Aquieta-te, Júlio! disse o velho.

O gato sossegou; trepou para uma poltrona e ali arranjou como a seu gosto.

Quanto a mim, sentindo no corpo um delicioso torpor, estendi-me no sofá e continuei a pasmar ouvindo a narração do meu Jaime— Bruto. Durou esta ainda uma boa meia hora; falou-me o homem das coisas da República, da timidez de Cícero, da versatilidade do povo, da magnanimidade de César, da política de Otávio. Elogiou muito a antiga esposa de quem conservava eternas saudades; e por fim calou-se.

Nenhum rumor, o trovão não trouxera chuva; as patrulhas andavam por longe; nenhum caminhante feria as pedras da rua. Eram mais de dez horas. O meu anfitrião, sentado na cadeira de couro, olhava para mim, abrindo dois grandes olhos e eis que estes começam a crescer lentamente, e já ao fim de alguns minutos pareciam no tamanho e na cor as lanternas dos bondes de Botafogo. Depois, começaram a diminuir até ficarem muito abaixo do tamanho natural. A cara foi-se-lhe alongando e tomando proporções de focinho; caíram as barbas; achatou-se o nariz; diminuiu o corpo, assim como as mãos; as roupas desapareceram; as carnes tomaram uma cor escura; saiu-lhe uma extensa cauda, e eis o ilustre Bruto, a saltar sobre a mesa, com as formas e as visagens de um rato.

Senti os cabelos eriçados; tremia-me o corpo; batia-me o coração.

No mesmo instante, o gato saltou à mesa e avançou para ele. Fitaram-se alguns instantes, o que me trouxe à memória aqueles versos de Lucano, que o Sr. Castilho José nos deu magistralmente assim:

Nos altos, frente a frente, os dois caudilhos,
Sôfregos de ir-se às mãos, já se acamparam.

Após curto silêncio, o gato avançou para o rato; o rato pulou ao chão, e o gato atrás dele. Subiu o rato ao sofá, e o gato também. Onde Bruto se escondesse, lá se metia César, às vezes o primeiro encarava de frente o segundo, mas este não se assustava com isso, e avançava sempre. Gemidos e roncos ferozes eram a orquestra desta dança infernal. Exausto de uma luta impossível, o rato deixou-se cair arquejante, e o gato pôs-lhe a pata em cima.

Que pena descreveria o olhar triunfante de César quando viu debaixo de si o miserando Bruto? Não conheço nada em poesia ou pintura — nem sequer na música chamada imitativa, — nada conheço que produza a impressão que me produziu aquele grupo e aquele olhar. De uma rivalidade secular, que lutou à luz do sol e da História, passava-se ali o último ato, dentro de uma sala obscura, tendo por espectador único um provinciano curioso.

O gato tirou a pata de cima do rato; este deu alguns passos; o gato tomou a pegá-lo; repetiu a cena uma porção de vezes; e se isto era natural de um gato, não era digno de César. Acreditando que me ouvissem, exclamei:

— Não o tortures mais!

O gato olhou para mim e pareceu compreender-me; efetivamente atirou-se ao rato com uma ânsia de quem esperava há muito aquela ocasião. Vi — que horror! — vi o corpo do nobre Bruto passar todo ao estômago do divino César, vi isto, e não lhe pude valer, porque eu tinha a presunção de que as armas da terra nada podiam contra aquela lei do destino.

O gato não sobreviveu à vingança. Apenas comeu o rato, caiu trêmulo, miou alguns minutos e faleceu.

Nada mais restava daqueles dois homens de Plutarco.

Contemplei o quadro algum tempo; e fiz tais reflexões acerca das evoluções históricas e das grandezas humanas, que bem podia escrever um livro que faria a admiração dos povos.

De repente, duas luzes surgiram dos restos miserandos daquele par da Antiguidade; duas luzes azuis, que subiram lentamente até o teto; o teto abriu-se e eu vi distintamente o firmamento estrelado. As luzes subiram no espaço.

Força desconhecida me levantou também do sofá, e eu acompanhei as luzes até meio caminho. Depois seguiram elas, e eu fiquei no espaço, contemplando a cidade iluminada, tranquila e silenciosa. Fui transportado ao oceano, onde vi uma concha à minha espera, uma verdadeira concha mitológica. Entrei nela e comecei a andar na direção do oeste.

Prossegui esta amável peregrinação de um modo verdadeiramente mágico. De repente senti que o meu nariz crescia desmesuradamente; admirei o sucesso, mas uma voz secreta me dizia que os narizes são sujeitos a transformações inopinadas — razão pela qual não me admirei quando o meu apêndice nasal assumiu sucessivamente a figura de um chapéu, de um revólver e de uma jaboticaba. Voltei à cidade; e entrei nas ruas espantado, porque as casas me pareciam todas voltadas com os alicerces para cima, coisa sumamente contrária à lei das casas, que devem ter os alicerces embaixo. Todos me apertavam a mão e perguntavam se eu conhecia a ilha das chuvas, e como eu respondesse que não, fui levado à dita ilha que era a Praça da Constituição e mais o seu jardim pomposamente iluminado.

Nesta preocupação andei até que fui levado outra vez à casa onde se passara a tragédia referida acima. A sala estava só; nem vestígio dos dois homens ilustres. O lampião estava a expiar. Saí aterrado e desci as escadas até chegar à porta  onde achei a chave. Não dormi nessa noite; a madrugada veio surpreender-me com os olhos abertos, contemplando de memória o miserando caso da véspera.

Fui almoçar ao Carceller.

Qual não foi o meu espanto quando lá encontrei vivo e são aquele que eu supunha na eternidade?

— Venha cá, venha cá! disse ele. Por que saiu ontem de casa sem falar?

— Mas... o senhor... pois César não o engoliu?

— Não. Esperei a hora fatal, e apenas ela passou, dei gritos de alegria e quis acordá-lo; mas o senhor dormia tão profundamente que achei melhor ir fazer o mesmo.

— Céus! pois eu...

— Efeitos do charuto que lhe dei. Teve belos sonhos, não?

— Todos, não; sonhei que o gato o engolia...

— Ainda não... Agradeço-lhe a companhia; agora esperarei o ano que vem. Quer almoçar?

Almocei com o homem; no fim do almoço ofereceu-me ele um charuto, que eu recusei dizendo:

— Nada, meu caro; vi coisas terríveis esta noite...

— Falta de costume...

— Talvez.

Saí triste. Procurava um homem original e achei um maluco. Os de juízo são todos copiados uns dos outros. Consta-me até que aquele mesmo homem de Plutarco, freguês do Carceller, curado por um hábil médico, está agora tão comum como os outros. Acabou a originalidade com a maluquice. Tu quoque, Brute?

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