De como o avarento morreu...
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Quarto humilde, úmido e infecto, mal
iluminado, e sem móveis:—uma enxerga, e sobre esta, em inquieta agonia, Manuel
Carlos proferia blasfêmias.
Ao seu lado, a Negra, que era uma amante
retinta, carnuda e fortalecida com as sabugens da avareza, acompanhava com os
olhos cautelosos a agitação do moribundo angustiado.
Doutro cômodo da mansarda, partia um
movimento suspeito, mal percebido, a princípio, pelo enfermo, que entrava numa
última reação da vida contra a morte.
Nesta hora, da doença, por entre as
chocantes palavras de Manuel Carlos, ouvia-se, também, o rim-rim-rim dos seus
dentes que rangiam como uma lima ativa sobre um pedaço de ferro...
***
— E creio
que me vou mesmo! Nem sei como se morre assim, quando muito dinheiro ainda eu poderia
acumular dentro do meu cofre. A vida é um pedaço de ouro comprado com um milhão
de moedas... A morte é uma ladra que nos furta, para esbanjar entre muitos, o
ouro que tanto custa a reunir... Sou rico! Digo-o com um cordial prazer. Também
trabalhei como uma alma possessa. Não houve domingo nem dia santo, que me
dessem descanso, à chuva e ao sol, alta madrugada e avançada noite... Rim...
rim... rim... rim...
— Como
ele range os dentes?!...
— Todo o
dia, a mesma coisa... Rompendo a madrugada, ia para as cavalariças despertar
aqueles miseráveis todos que dormiam, como massas de feno, nos recantos das
manjedouras. Às vezes, chovia como um dilúvio. E eu, com o corpo quente da
cama, cortava o pátio, metido no meu capote de lã, e, menos feliz do que os
meus assalariados que ainda dormiam, tiritava, muitas vezes, de frio. A
atividade, porém, dava-me calor e forças. Ora, muito pequeno comecei a vida nas
terras da Beira, de onde sair, num dia de inverno, há mais de trinta anos.
Nesse dia, a avozinha e a mãe Geralda levaram-me até à casa do moço que me
trouxe para aqui. Ah! Deus lhe dê o reino dos céus, já que na terra eu nada lhe
pude dar... Rim... rim... rim... rim... Bela pessoa, generoso ao desperdício...
Que barulho é esse que ouço de instante a instante?
— São os
trabalhadores no terreiro.
— Saíram
hoje os veículos?
— Saíram
todos.
— Mas,
esse ruído parece-me muito dentro de casa.
— Talvez
os cães...
— Não me
veio ver hoje o Tupi. Tem sido esse canzarrão o meu maior amigo. Todas as
manhãs salta sobre o meu leito e acaricia-me as mãos. Por onde andará ele que
hoje se esqueceu de mim?
— Prendi-o,
inda há pouco. Espera-se o médico, e...
— Nem
pense nisso: o pobre animal se ladra não morde. Vigia-me a casa e desconhece os
estranhos.
— Ladra e
assusta.
— Avisa-me
de que desconhecidos penetraram neste lar. Fazem-me falta as suas lambarices.
Tenho-o desde pequenino, ao desmamar-se. Há oito anos. E sempre tive o
pensamento de fazer-lhe o enterro. Se ele ouvia, de longe mesmo, o tropel do
animal que eu montava, ia correndo buscar-me em meio de caminho. Nunca
encontrei uma criatura que se lhe comparasse em fidelidade e presteza. Tudo uma
cambada! Nem sei... Rim... rim... rim... rim... Nem sei como se têm feito por
aí afora os meus serviços... E hoje é o último do mês. Se não se procurar, a
terrível corja não paga. Nem tenho uma pessoa a quem confie esse serviço. Neste
mundo só se encontram gatunos e ladrões. Um honesto, como eu, é uma realidade
rara! Em tudo fui roubado, até na saúde. Dos poucos, das moedas de cobre, os simples
trocos e diferenças nas compras, tu te assenhoreavas, porque me dizias que eram
economias. Na minha mesa, nunca puseste um doce, uma fruta melhor. Era todo o
santo dia a mesma coisa... Como me arrependo de ter deixado nas tuas mãos as
economias que deviam ter voltado ao meu capital, porque dele se despediam para
sempre... Rim... rim... rim... rim... Como se acaba mesquinhamente uma
existência operosa!... Ouço novos ruídos... Só me parece que os de agora são
dentro de casa...
— Pois
quem seria?
— Sei lá...
Ouço coisas que só me parecem na sala da frente. Vai ver se é alguém...
— Nem
precisa. A porteira está fechada, e abrindo-se ela a campainha dá sinal. Ao
depois, o velho Thomé trata na estribaria dos animais em que montas...
— Vai
tudo muito bem, mas não me posso conformar é com esta vida de cama. Seis dias
de doença, e estou derreado como uma velha mangueira... Inda assim,
considero-me bastante feliz. Não devo nada a ninguém. E, a mim, todos me devem.
Depois de amanhã, vence-se uma letra de um devedor: há de querer pagar-me os
juros de quinze por cento por novo semestre... Mas ele estará enganado. Se
quiser reformar, os juros crescerão. Agora só darei dinheiros a dezoito ao
mês... Serviu? Façamos o negócio. Não serviu, passe muito bem... Rim... rim...
rim... rim... Acabou-se o tempo em que eu era tolo. Esta casa deu-me uma espera
de seis anos. Emprestei o dinheiro e o dono fez a hipoteca por três anos. Ao
depois de vencido o seu compromisso, levou engabelando-me por mais três anos...
Era uma conversa fiada hoje, uma promessa amanhã, e, nada, nem juros novos, nem
capital velho... Se eu não metesse advogado... Rim... rim... rim... rim... Eu
sempre segui o conselho de que “poupa e os santos te ajudarão”... Não ganhei
nunca quatro vinténs de que não guardasse três... Não te estou dizendo? Esse
barulho é dentro de casa...
— Desta
vez não ouvi nada.
— Então,
estás surda. Pareceu-me que se abria uma porta e que gente andava. Rim...
rim... rim... rim...
— Não sei
que espécie de gente...
— Realmente
posso enganar-me.
— Já te
convences? A esta hora, nem os trabalhadores estão aqui... Ah! Esqueci-me de
dizer-te: os cavouqueiros não foram hoje à pedreira...
— Miseráveis!
Preguiçosos! Nem me vendo neste estado, esses malvados deixam de consumir-me.
Um dia de descanso numa pedreira, é um prejuizão... Rim... rim... rim... rim...
— Fiz ver
tudo isto a eles.
— E por que
não trabalharam?
— Porque
morreu a moça do mestre, e este não veio...
— Não
digo?!... Foi alguma imperatriz, certamente, que morreu. Pois lá na minha
terra, é que se sabe trabalhar... Lá trabalhariam até à hora do enterro. Aqui
encontram a razão para muitos dias de ócio. Se eu estivesse bom, a esta hora
teria tocado todos eles para a rua. Rim... rim... rim... rim... Não gosto de
vadios. Fui homem que, numa vida inteira, não teve uma hora de vadiação. Sempre
comi de chapéu na cabeça e esporas nas botinas. Por isso guardei meia-dúzia de
contos. Digo assim meia-dúzia, mas, ao certo, nem sei quantas meias-dúzias
guardei... Trabalha-se e guarda-se... Ouviste agora?
— Sim.
— E
então?
— Não
sabes o que foi?
— Não
sei...
— O Tupi
que esbarrou numa cadeira. Tranquei-o na sala de dentro, e aos outros mandei
pôr as correntes...
— Vai
soltar o Tupi. É inofensivo, tanta quanto é leal e cuidadoso. Nunca mereceu um
castigo. Vai soltá-lo!
— Deixa-o
preso. O doutor assusta-se sempre que chega e o animal avança sobre ele...
— É uma
prova de lealdade.
— Que
incomoda aos estranhos. Por que não bebes o leite? Queres?
— Leite?!...
Ontem te preveni que leite é luxo e que não posso com essas despesas... Ainda o
compraste hoje?
— O
doutor mandou...
— Rim...
rim... rim... rim...
— Ao
depois, em caso de doença não há desperdício...
— Ora,
deixa-me! Estamos a gastar de mais a mais. É o leite, é a botica, é o doutor...
E melhoras? Por um óculo. Sinto-me cada vez pior. Nem das pernas sou senhor...
Há três dias ainda eu me podia sentar. Hoje... nem recostar-me! Tenho quilos de
chumbo nas pernas... Sei que vou morrer, se a coisa continua assim... Rim...
rim... rim... rim... Fui sempre um homem conservado e indisposto para
divertimentos. Não sei como a minha saúde estragou-se... Vai soltar o cachorro!
Os seus movimentos inquietam-me. Já atirou outra coisa ao chão...
— Deixa o
cachorro preso.
— Pode
arrebentar mais alguma coisa, e serão novas despesas para mim... Que aflição
sinto agora!
— Bebe o
leite!
— Dá-me.
— Já se
devem trinta medidas...
— Como?
— Trinta
medidas do leite: seis dias a cinco medidas, três de manhã, e duas à tarde...
— Que
desperdício! Não digo! Se levar aqui um mês, o leite, o médico e a botica, mais
os relaxamentos dos trabalhadores me terão reduzido à miséria... Sabes que
mais? Não quero mais leite... Suprima-se desde hoje...
— E com
que te alimentas?
— Com
água... É intolerável! Trabalhar uma vida inteira para perder tudo em oito dias
de cama! Não é possível. Não sou rico, não! Toca a poupar...
— Sem o
leite não poderás passar...
— Passo,
sim! Quem foi que disse que não poderei?
— O médico.
— Pois
passo, sim. Sem dinheiro é que nada é possível. Parece-me que se combinaram
todos em roubar-me antes da morte... Tenham paciência um pouquinho! Deixem-me
fechar os olhos primeiro... Rim... rim... rim... rim... Está muito direito!...
Trinta medidas de leite em seis dias! Nem sei se tomei porção igual em todo o
resto da vida! É ter ganho uma fortuna em mais de trinta anos para acabá-la
bebendo leite, pagando médico e sustentando boticas... Não quero mais leite!
Rim... rim... rim... rim... Aborrece-me a vida, porque tudo nela é má fé e
plano de roubo... Ah!... Lá se arrebentou tudo!... Ainda mais esta em cima: o
cão preso, por um capricho, para quebrar os móveis e as louças... Mas, esse
ruído que agora ouvi muito bem...
— Foi a
mesma coisa...
—...não
foi lá dentro...
— Foi,
sim!
— Pareceu-me
na sala da frente...
— Não
cuidarás de outra coisa?
— E que
seria o que caiu?
— Uma
bacia de folhas...
— Não!...
não!... não!...
— Que
queres fazer?
— Levanta-me
aqui...
— Aquieta-te,
homem!... O médico aconselha-te descanso e tu és pior do que um menino...
— Aquele
barulho... Levanta-me aqui...
— Para quê?
não me dirás?
— Quero
recostar-me... Devagarinho, mulher... Pegas no meu corpo como se pegasses num
pedaço de pau...
— Assim?
— Devagarzinho,
sempre... Tira aqui o travesseiro...
— Queres
muita coisa também...
— Não me
fazes favor... Não preciso de ninguém contra a vontade... Tenho dinheiro para
ser bem servido, e gosto que me tenham obediência...
— Estás
muito impaciente...
— Tira o
travesseiro...
— Pronto.
Queres mais alguma coisa?
— As
minhas chaves... As minhas chaves... Ah!... Não estão aqui... Bem sei agora!...
O meu cofre... o meu dinheiro... Estou rouba...
***
E
caiu apoplexiado com o conhecimento do roubo, para morrer, minutos depois,
quando as chaves de seu cofre, voltavam ao seu esconderijo, como verdadeiras
inutilidades...
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