D. Paula
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Não era possível chegar mais a ponto. D. Paula entrou na sala exatamente quando a sobrinha enxugava os olhos cansados de chorar. Compreende-se o assombro da tia. Entender-se-á também o da sobrinha, em se sabendo que D. Paula vive no alto da Tijuca, donde raras vezes desce; a última foi pelo Natal passado, e estamos em Maio de 1882. Desceu ontem, à tarde, e foi para casa da irmã, Rua do Lavradio. Hoje, tão depressa almoçou, vestiu-se e correu a visitar a sobrinha. A primeira escrava que a viu, quis ir avisar a senhora, mas D. Paula ordenou-lhe que não, e foi pé ante pé, muito devagar, para impedir o rumor das saias, abriu a porta da sala de visitas, e entrou.
— Que é isto? exclamou.
Venancinha atirou-se-lhe aos braços, as
lágrimas vieram-lhe de novo. A tia beijou-a muito, abraçou-a, disse-lhe
palavras de conforto, e pediu, e quis que lhe contasse o que era, se alguma doença,
ou...
— Antes fosse uma doença! antes fosse a
morte! interrompeu a moça.
— Não digas tolices; mas que foi? anda, que
foi?
Venancinha enxugou os olhos e começou a
falar. Não pôde ir além de cinco ou seis palavras; as lágrimas tornaram, tão
abundantes e impetuosas, que D. Paula achou de bom aviso deixá-las correr
primeiro. Entretanto, foi tirando a capa de rendas pretas que a envolvia, e
descalçando as luvas. Era uma bonita velha, elegante, dona de um par de olhos
grandes, que deviam ter sido infinitos. Enquanto a sobrinha chorava, ela foi
cerrar cautelosamente a porta da sala, e voltou ao canapé. No fim de alguns
minutos, Venancinha cessou de chorar, e confiou à tia o que era.
Era nada menos que uma briga com o marido,
tão violenta, que chegaram a falar de separação. A causa eram ciúmes. Desde
muito que o marido embirrava com um sujeito; mas na véspera à noite, em casa do
C... vendo-a dançar com ele duas vezes e conversar alguns minutos, concluiu que
eram namorados. Voltou amuado para casa; de manhã, acabado o almoço, a cólera
estourou, e ele disse-lhe coisas duras e amargas, que ela repeliu com outras.
— Onde está teu marido? perguntou a tia.
— Saiu; parece que foi para o escritório.
D. Paula perguntou-lhe se o escritório era
ainda o mesmo, e disse-lhe que descansasse, que não era nada; dali a duas horas
tudo estaria acabado. Calçava as luvas rapidamente.
— Titia vai lá?
— Vou... Pois então? Vou. Teu marido é bom,
são arrufos. 104? Vou lá; espera por mim, que as escravas não te vejam.
Tudo isso era dito com volubilidade,
confiança e doçura. Calçadas as luvas, pôs o mantelete, e a sobrinha ajudou-a,
falando também, jurando que, apesar de tudo, adorava o Conrado. Conrado era o
marido, advogado desde 1874. D. Paula saiu, levando muitos beijos da moça. Na
verdade, não podia chegar mais a ponto. De caminho, parece que ela encarou o
incidente, não digo desconfiada, mas curiosa, um pouco inquieta da realidade
positiva; em todo caso ia resoluta a reconstruir a paz doméstica.
Chegou, não achou o sobrinho no escritório,
mas ele veio logo, e, passado o primeiro espanto, não foi preciso que D. Paula
lhe dissesse o objeto da visita; Conrado adivinhou tudo. Confessou que fora
excessivo em algumas coisas, e, por outro lado, não atribuía à mulher nenhuma
índole perversa ou viciosa. Só isso; no mais, era uma cabeça de vento, muito
amiga de cortesias, de olhos ternos, de palavrinhas doces, e a leviandade
também é uma das portas do vício. Em relação à pessoa de quem se tratava, não
tinha dúvida de que eram namorados. Venancinha contara só o fato da véspera;
não referiu outros, quatro ou cinco, o penúltimo no teatro, onde chegou a haver
tal ou qual escândalo. Não estava disposto a cobrir com a sua responsabilidade
os desazos da mulher. Que namorasse, mas por conta própria.
D. Paula ouviu tudo, calada; depois falou
também. Concordava que a sobrinha fosse leviana; era próprio da idade. Moça
bonita não sai à rua sem atrair os olhos, e é natural que a admiração dos
outros a lisonjeie. Também é natural que o que ela fizer de lisonjeada pareça
aos outros e ao marido um princípio de namoro: a fatuidade de uns e o ciúme do
outro explicam tudo. Pela parte dela, acabava de ver a moça chorar lágrimas
sinceras, deixou-a consternada, falando de morrer, abatida com o que ele lhe dissera.
E se ele próprio só lhe atribuía leviandade, por que não proceder com cautela e
doçura, por meio de conselho e de observação, poupando-lhe as ocasiões,
apontando-lhe o mal que fazem à reputação de uma senhora as aparências de
acordo, de simpatia, de boa vontade para os homens?
Não gastou menos de vinte minutos a boa
senhora em dizer essas coisas mansas, com tão boa sombra, que o sobrinho sentiu
apaziguar-se-lhe o coração. Resistia, é verdade; duas ou três vezes, para não
resvalar na indulgência, declarou à tia que entre eles tudo estava acabado. E,
para animar-se, evocava mentalmente as razões que tinha contra a mulher. A tia,
porém, abaixava a cabeça para deixar assar a onda, e surgia outra vez com os
seus grandes olhos sagazes e teimosos. Conrado ia cedendo aos poucos e mal. Foi
então que D. Paula propôs um meio-termo.
— Você perdoa-lhe, fazem as pazes, e ela vai
estar comigo, na Tijuca, um ou dois meses; uma espécie de desterro. Eu, durante
este tempo, encarrego-me de lhe pôr ordem no espírito. Valeu?
Conrado aceitou. D. Paula, tão depressa
obteve a palavra, despediu-se para levar a boa nova à outra, Conrado
acompanhou-a até à escada. Apertaram as mãos; D. Paula não soltou a dele sem
lhe repetir os conselhos de brandura e prudência; depois, fez esta reflexão
natural:
— E vão ver que o homem de quem se trata nem
merece um minuto dos nossos cuidados...
— É um tal Vasco Maria Portela...
D. Paula empalideceu. Que Vasco Maria
Portela? Um velho, antigo diplomata, que... Não, esse estava na Europa desde
alguns anos, aposentado, e acabava de receber um título de Barão. Era um filho
dele, chegado de pouco, um pelintra... D. Paula apertou-lhe a mão, e desceu
rapidamente. No corredor, sem ter necessidade de ajustar a capa, fê-lo durante
alguns minutos, com a mão trêmula e um pouco de alvoroço na fisionomia. Chegou
mesmo a olhar para o chão, refletindo. Saiu, foi ter com a sobrinha, levando a
reconciliação e a cláusula. Venancinha aceitou tudo.
Dois dias depois foram para a Tijuca.
Venancinha ia menos alegre do que prometera; provavelmente era o exílio, ou
pode ser também que algumas saudades. Em todo caso, o nome de Vasco subiu a
Tijuca, se não em ambas as cabeças, ao menos na da tia, onde era uma espécie de
eco, um som remoto e brando, alguma coisa que parecia vir do tempo da Stoltz e
do ministério Paraná. Cantora e ministério, coisas frágeis, não o eram menos
que a ventura de ser moça, e onde iam essas três eternidades? Jaziam nas ruínas
de trinta anos. Era tudo o que D. Paula tinha em si e diante de si.
Já se entende que o outro Vasco, o antigo,
também foi moço e amou. Amaram-se, fartaram-se um do outro, à sombra do
casamento, durante alguns anos, e, como o vento que passa não guarda a palestra
dos homens, não há meio de escrever aqui o que então se disse da aventura. A
aventura acabou; foi uma sucessão de horas doces e amargas, de delícias, de
lágrimas, de cóleras, de arroubos, drogas várias com que encheram a esta
senhora a taça das paixões. D. Paula esgotou-a inteira e emborcou-a depois para
não mais beber. A saciedade trouxe-lhe a abstinência, e com o tempo foi esta
última fase que fez a opinião. Morreu-lhe o marido e foram vindo os anos. D.
Paula era agora uma pessoa austera e pia, cheia de prestígio e consideração.
A sobrinha é que lhe levou o pensamento ao
passado. Foi a presença de uma situação análoga, de mistura com o nome e o
sangue do mesmo homem, que lhe acordou algumas velhas lembranças. Não esqueçam
que elas estavam na Tijuca, que iam viver juntas algumas semanas, e que uma
obedecia à outra; era tentar e desafiar a memória.
— Mas nós deveras não voltamos à cidade tão
cedo? perguntou Venancinha rindo, no outro dia de manhã.
— Já estás aborrecida?
— Não, não, isso nunca, mas pergunto...
D. Paula, rindo também, fez com o dedo um
gesto negativo; depois, perguntou-lhe se tinha saudades cá de baixo. Venancinha
respondeu que nenhumas; e para dar mais força à resposta, acompanhou-a de um
descair dos cantos da boca, a modo de indiferença e desdém. Era pôr demais na
carta, D. Paula tinha o bom costume de não ler às carreiras, como quem vai
salvar o pai da forca, mas devagar, enfiando os olhos entre as sílabas e entre
as letras, para ver tudo, e achou que o gesto da sobrinha era excessivo.
"Eles amam-se!" pensou ela.
A descoberta avivou o espírito do passado. D.
Paula forcejou por sacudir fora essas memórias importunas; elas, porém,
voltavam, ou de manso ou de assalto, como raparigas que eram, cantando, rindo,
fazendo o diabo. D. Paula tornou aos seus bailes de outro tempo, às suas
eternas valsas que faziam pasmar a toda a gente, às mazurcas, que ela metia à
cara das sobrinhas como sendo a mais graciosa coisa do mundo, e aos teatros, e
às cartas, e vagamente, aos beijos; mas tudo isso — e esta é a situação — tudo
isso era como as frias crônicas, esqueleto da história, sem a alma da história.
Passava-se tudo na cabeça. D. Paula tentava emparelhar o coração com o cérebro,
a ver se sentia alguma coisa além da pura repetição mental, mas, por mais que
evocasse as comoções extintas, não lhe voltava nenhuma. Coisas truncadas!
Se ela conseguisse espiar para dentro do
coração da sobrinha, pode ser que achasse ali a sua imagem, e então... Desde
que esta ideia penetrou no espírito de D. Paula, complicou-lhe um pouco a obra
de reparação e cura. Era sincera, tratava da alma da outra, queria vê-la
restituída ao marido. Na constância do pecado é que se pode desejar que outros
pequem também, para descer de companhia ao purgatório; mas aqui o pecado já não
existia. D. Paula mostrava à sobrinha a superioridade do marido, as suas
virtudes e assim também as paixões, que podiam dar um mau desfecho ao
casamento, pior que trágico, o repúdio.
Conrado, na primeira visita que lhes fez,
nove dias depois, confirmou a advertência da tia; entrou frio e saiu frio.
Venancinha ficou aterrada. Esperava que os nove dias de separação tivessem
abrandado o marido, e, em verdade, assim era; mas ele mascarou-se à entrada e
conteve-se para não capitular. E isto foi mais salutar que tudo o mais. O
terror de perder o marido foi o principal elemento de restauração. O próprio
desterro não pôde tanto.
Vai senão quando, dois dias depois daquela
visita, estando ambas ao portão da chácara, prestes a sair para o passeio do
costume, viram vir um cavaleiro. Venancinha fixou a vista, deu um pequeno
grito, e correu a esconder-se atrás do muro. D. Paula compreendeu e ficou. Quis
ver o cavaleiro de mais perto; viu-o dali a dois ou três minutos, um galhardo
rapaz, elegante, com as suas finas botas lustrosas, muito bem-posto no selim;
tinha a mesma cara do outro Vasco, era o filho; o mesmo jeito da cabeça, um
pouco à direita, os mesmos ombros largos, os mesmos olhos redondos e profundos.
Nessa mesma noite, Venancinha contou-lhe
tudo, depois da primeira palavra que ela lhe arrancou. Tinham-se visto nas
corridas, uma vez, logo que ele chegou da Europa. Quinze dias depois, foi-lhe
apresentado em um baile, e pareceu-lhe tão bem, com um ar tão parisiense, que
ela falou dele, na manhã seguinte, ao marido. Conrado franziu o sobrolho, e foi
este gesto que lhe deu uma ideia que até então não tinha. Começou a vê-lo com
prazer; daí a pouco com certa ansiedade. Ele falava-lhe respeitosamente,
dizia-lhe coisas amigas, que ela era a mais bonita moça do Rio, e a mais
elegante, que já em Paris ouvira elogiá-la muito, por algumas senhoras da
família Alvarenga. Tinha graça em criticar os outros, e sabia dizer também umas
palavras sentidas, como ninguém. Não falava de amor, mas perseguia-a com os
olhos, e ela, por mais que afastasse os seus, não podia afastá-los de todo.
Começou a pensar nele, amiudadamente, com interesse, e quando se encontravam,
batia-lhe muito o coração; pode ser que ele lhe visse então, no rosto, a
impressão que fazia.
D. Paula, inclinada para ela, ouvia essa
narração, que aí fica apenas resumida e coordenada. Tinha toda a vida nos
olhos; a boca meio aberta, parecia beber as palavras da sobrinha, ansiosamente,
como um cordial. E pedia-lhe mais, que lhe contasse tudo, tudo. Venancinha
criou confiança. O ar da tia era tão jovem, a exortação tão meiga e cheia de um
perdão antecipado, que ela achou ali uma confidente e amiga, não obstante
algumas frases severas que lhe ouviu, mescladas às outras, por um motivo de
inconsciente hipocrisia. Não digo cálculo; D. Paula enganava-se a si mesma.
Podemos compará-la a um general inválido, que forceja por achar um pouco do
antigo ardor na audiência de outras campanhas.
— Já vês que teu marido tinha razão, dizia
ela; foste imprudente, muito imprudente...
Venancinha achou que sim, mas jurou que
estava tudo acabado.
— Receio que não. Chegaste a amá-lo deveras?
— Titia...
— Tu ainda gostas dele!
— Juro que não. Não gosto; mas confesso...
sim... confesso que gostei... Perdoe-me tudo; não diga nada a Conrado; estou
arrependida... Repito que a princípio um pouco fascinada... Mas que quer a
senhora?
— Ele declarou-te alguma coisa?
—Declarou; foi no teatro, uma noite, no
Teatro Lírico, à saída. Tinha costume de ir buscar-me ao camarote e conduzir-me
até o carro, e foi à saída... duas palavras...
D. Paula não perguntou, por pudor, as próprias
palavras do namorado, mas imaginou as circunstâncias, o corredor, os pares que
saíam, as luzes, a multidão, o rumor das vozes, e teve o poder de representar,
com o quadro, um pouco das sensações dela; e pediu-lhas com interesse,
astutamente.
— Não sei o que senti, acudiu a moça cuja
comoção crescente ia desatando a língua; não me lembro dos primeiros cinco
minutos. Creio que fiquei séria; em todo o caso, não lhe disse nada. Pareceu-me
que toda gente olhava para nós, que teriam ouvido, e quando alguém me
cumprimentava sorrindo, dava-me ideia de estar caçoando. Desci as escadas não
sei como, entrei no carro sem saber o que fazia; ao apertar-lhe a mão, afrouxei
bem os dedos. Juro-lhe que não queria ter ouvido nada. Conrado disse-me que
tinha sono, e encostou-se ao fundo do carro; foi melhor assim, porque eu não
sei que diria, se tivéssemos de ir conversando. Encostei-me também, mas por
pouco tempo; não podia estar na mesma posição. Olhava para fora através dos
vidros, e via só o clarão dos lampiões, de quando em quando, e afinal nem isso
mesmo; via os corredores do teatro, as escadas, as pessoas todas, e ele ao pé
de mim, cochichando as palavras, duas palavras só, e não posso dizer o que
pensei em todo esse tempo; tinha as ideias baralhadas, confusas, uma revolução
em mim...
— Mas, em casa?
— Em casa, despindo-me, é que pude refletir
um pouco, mas muito pouco. Dormi tarde, e mal. De manhã, tinha a cabeça
aturdida. Não posso dizer que estava alegre nem triste; lembro-me que pensava
muito nele, e para arredá-lo prometi a mim mesma revelar tudo ao Conrado; mas o
pensamento voltava outra vez. De quando em quando, parecia-me escutar a voz
dele, e estremecia. Cheguei a lembrar-me que, à despedida, lhe dera os dedos
frouxos, e sentia, não sei como diga, uma espécie de arrependimento, um medo de
o ter ofendido... e depois vinha o desejo de o ver outra vez... Perdoe-me,
titia; a senhora é que quer que lhe conte tudo.
A resposta de D. Paula foi apertar-lhe muito
a mão e fazer um gesto de cabeça. Afinal achava alguma coisa de outro tempo, ao
contato daquelas sensações ingenuamente narradas. Tinha os olhos ora meio
cerrados, na sonolência da recordação, — ora aguçados de curiosidade e calor, e
ouvia tudo, dia por dia, encontro por encontro, a própria cena do teatro, que a
sobrinha a princípio lhe ocultara. E vinha tudo o mais, horas de ânsia, de
saudade, de medo, de esperança, desalentos, dissimulações, ímpetos, toda a
agitação de uma criatura em tais circunstâncias, nada dispensava a curiosidade
insaciável da tia. Não era um livro, não era sequer um capítulo de adultério,
mas um prólogo, — interessante e violento.
Venancinha acabou. A tia não lhe disse nada,
deixou-se estar metida em si mesma; depois acordou, pegou-lhe na mão e puxou-a.
Não lhe falou logo; fitou primeiro, e de perto, toda essa mocidade, inquieta e
palpitante, a boca fresca, os olhos ainda infinitos, e só voltou a si quando a
sobrinha lhe pediu outra vez perdão. D. Paula disse-lhe tudo o que a ternura e
a austeridade da mãe lhe poderia dizer, falou-lhe de castidade, de amor ao
marido, de respeito público; foi tão eloquente que Venancinha não pôde
conter-se, e chorou.
Veio o chá, mas não há chá possível depois de
certas confidências. Venancinha recolheu-se logo, e, como a luz era agora
maior, saiu da sala com os olhos baixos, para que o criado lhe não visse a
comoção. D. Paula ficou diante da mesa e do criado. Gastou vinte minutos, ou
pouco menos, em beber uma xícara de chá e roer um biscoito, e apenas ficou só,
foi encostar-se à janela, que dava para a chácara.
Ventava um pouco, as folhas moviam-se
sussurrando, e, conquanto não fossem as mesmas do outro tempo, ainda assim
perguntavam-lhe: "Paula, você lembra-se do outro tempo?" Que esta é a
particularidade das folhas, as gerações que passam contam às que chegam as
coisas que viram, e é assim que todas sabem tudo e perguntam por tudo. Você
lembra-se do outro tempo?
Lembrar, lembrava; mas aquela sensação de há
pouco, reflexo apenas, tinha agora cessado. Em vão repetia as palavras da
sobrinha, farejando o ar agreste da noite: era só na cabeça que achava algum
vestígio, reminiscências, coisas truncadas. O coração empacara de novo, o
sangue ia outra vez com a andadura do costume. Faltava-lhe o contato moral da
outra. E continuava, apesar de tudo, diante da noite, que era igual às outras
noites de então, e nada tinha que se parecesse com as do tempo da Stoltz e do
Marquês de Paraná; mas continuava, e lá dentro as pretas espalhavam o sono
contando anedotas, e diziam, uma ou outra vez, impacientes:
—Sinhá velha hoje deita tarde como diabo!
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