D.
Benedita
UM RETRATO
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
CAPÍTULO 1
A coisa mais árdua do mundo, depois do ofício
de governar, seria dizer a idade exata de D. Benedita. Uns davam-lhe quarenta
anos, outros quarenta e cinco, alguns trinta e seis. Um corretor de fundos
descia aos vinte e nove; mas esta opinião, eivada de intenções ocultas, carecia
daquele cunho de sinceridade que todos gostamos de achar nos conceitos humanos.
Nem eu a cito, senão para dizer, desde logo, que D. Benedita foi sempre um
padrão de bons costumes. A astúcia do corretor não fez mais do que indigná-la,
embora, momentaneamente; digo momentaneamente. Quanto às outras conjeturas,
oscilando entre os trinta e seis e os quarenta e cinco, não desdiziam das
feições de D. Benedita, que eram maduramente graves e juvenilmente graciosas.
Mas, se alguma coisa admira é que houvesse suposições neste negócio, quando
bastava interrogá-la para saber a verdade verdadeira.
D. Benedita fez quarenta e dois anos no
domingo dezenove de setembro de 1869.
São
seis horas da tarde; a mesa da família está ladeada de parentes e amigos, em
número de vinte ou vinte e cinco pessoas. Muitas dessas estiveram no jantar de
1868, no de 1867 e no de 1866, e ouviram sempre aludir francamente à idade da
dona da casa. Além disso, veem-se ali, à mesa, uma moça e um rapaz, seus
filhos; este é, decerto, no tamanho e nas maneiras, um tanto menino; mas a
moça, Eulália, contando dezoito anos, parece ter vinte e um, tal é a severidade
dos modos e das feições.
A alegria dos convivas, a excelência do
jantar, certas negociações matrimoniais incumbidas ao cônego Roxo, aqui
presente, e das quais se falará mais abaixo, as boas qualidades da dona da
casa, tudo isso dá à festa um caráter íntimo e feliz. O cônego levanta-se para
trinchar o peru. D. Benedita acatava esse uso nacional das casas modestas de
confiar o peru a um dos convivas, em vez de o fazer retalhar fora da mesa por
mãos servis, e o cônego era o pianista daquelas ocasiões solenes. Ninguém
conhecia melhor a anatomia do animal, nem sabia operar com mais presteza.
Talvez, — e este fenômeno fica para os entendidos, — talvez a circunstância do
canonicato aumentasse ao trinchante, no espírito dos convivas, uma certa soma
de prestígio, que ele não teria, por exemplo, se fosse um simples estudante de
matemáticas, ou um amanuense de secretaria. Mas, por outro lado, um estudante
ou um amanuense, sem a lição do longo uso, poderia dispor da arte consumada do
cônego? É outra questão importante.
Venhamos, porém, aos demais convivas, que
estão parados, conversando; reina o burburinho próprio dos estômagos meio
regalados, o riso da natureza que caminha para a repleção; é um instante de
repouso.
D. Benedita fala, como as suas visitas, mas
não fala para todas, senão para uma, que está sentada ao pé dela. Essa é uma
senhora gorda, simpática, muito risonha, mãe de um bacharel de vinte e dois
anos, o Leandrinho, que está sentado defronte delas. D. Benedita não se
contenta de falar à senhora gorda, tem uma das mãos desta entre as suas; e não
se contenta de lhe ter presa a mão, fita-lhe uns olhos namorados, vivamente
namorados. Não os fita, note-se bem, de um modo persistente e longo, mas
inquieto, miúdo, repetido, instantâneo. Em todo caso, há muita ternura naquele
gesto; e, dado que não a houvesse, não se perderia nada, porque D. Benedita
repete com a boca a D. Maria dos Anjos tudo o que com os olhos lhe tem dito: —
que está encantada, que considera uma fortuna conhecê-la, que é muito
simpática, muito digna, que traz o coração nos olhos, etc., etc., etc. Uma de
suas amigas diz-lhe, rindo, que está com ciúmes.
— Que arrebente! responde ela, rindo também.
E voltando-se para a outra:
— Não acha? ninguém deve meter-se com a nossa
vida.
E aí tornavam as finezas, os encarecimentos,
os risos, as ofertas, mais isto, mais aquilo, — um projeto de passeio, outro de
teatro, e promessas de muitas visitas, tudo com tamanha expansão e calor, que a
outra palpitava de alegria e reconhecimento.
O peru está comido. D. Maria dos Anjos faz um
sinal ao filho; este levanta-se e pede que o acompanhem em um brinde:
— Meus senhores, é preciso desmentir esta
máxima dos franceses: — les absents ont
tort. Bebamos a alguém que está longe, muito longe, no espaço, mas perto,
muito perto, no coração de sua digna esposa: — bebamos ao ilustre Desembargador
Proença.
A assembleia não correspondeu vivamente ao
brinde; e para compreendê-lo basta ver o rosto triste da dona da casa. Os
parentes e os mais íntimos disseram
baixinho entre si que o Leandrinho fora
estouvado; enfim, bebeu-se, mas sem estrépito; ao que parece, para não avivar a
dor de D. Benedita. Vã precaução! D. Benedita, não podendo conter-se, deixou
rebentarem-lhe as lágrimas, levantou-se da mesa, retirou-se da sala. D. Maria
dos Anjos acompanhou-a. Sucedeu um silêncio mortal entre os convivas. Eulália
pediu a todos que continuassem, que a mãe voltava já.
— Mamãe é muito sensível, disse ela, e a ideia
de que papai está longe de nós...
O Leandrinho, consternado, pediu desculpa a
Eulália. Um sujeito, ao lado dele, explicou-lhe que D. Benedita não podia ouvir
falar do marido sem receber um golpe no coração — e chorar logo; ao que o
Leandrinho acudiu dizendo que sabia da tristeza dela, mas estava longe de supor
que o seu brinde tivesse tão mau efeito.
— Pois era a coisa mais natural, explicou o
sujeito, porque ela morre pelo marido.
— O cônego, acudiu Leandrinho, disse-me que
ele foi para o Pará há uns dois anos...
— Dois anos e meio; foi nomeado desembargador
pelo ministério Zacarias. Ele queria a Relação de São Paulo, ou da Bahia; mas
não pôde ser e aceitou a do Pará.
— Não voltou mais?
— Não voltou.
— D. Benedita naturalmente tem medo de
embarcar...
— Creio que não. Já foi uma vez à Europa. Se
bem me lembro, ela ficou para arranjar alguns negócios de família; mas foi
ficando, ficando, e agora...
— Mas era muito melhor ter ido em vez de
padecer assim... Conhece o marido?
— Conheço; um homem muito distinto, e ainda
moço, forte; não terá mais de quarenta e cinco anos. Alto, barbado, bonito.
Aqui há tempos disse-se que ele não teimava com a mulher, porque estava lá de
amores com uma viúva.
— Ah!
— E houve até quem viesse contá-lo a ela
mesma. Imagine como a pobre senhora ficou! Chorou uma noite inteira, no dia
seguinte não quis almoçar, e deu todas as ordens para seguir no primeiro vapor.
— Mas não foi?
— Não foi; desfez a viagem daí a três dias.
D. Benedita voltou nesse momento, pelo braço
de D. Maria dos Anjos. Trazia um sorriso envergonhado; pediu desculpa da
interrupção, e sentou-se com a recente amiga ao lado, agradecendo os cuidados
que lhe deu, pegando-lhe outra vez na mão.
— Vejo que me quer bem, disse ela.
— A senhora merece, disse D. Maria dos Anjos.
— Mereço? inquiriu ela entre desvanecida e
modesta.
E declarou que não, que a outra é que era
boa, um anjo, um verdadeiro anjo; palavra que ela sublinhou com o mesmo olhar
namorado, não persistente e longo, mas inquieto e repetido. O cônego, pela sua
parte, com o fim de apagar a lembrança do incidente, procurou generalizar a
conversa, dando-lhe por assunto a eleição do melhor doce. Os pareceres
divergiram muito. Uns acharam que era o de coco, outros o de caju, alguns o de
laranja, etc. Um dos convivas, o Leandrinho, autor do brinde, dizia com os
olhos, — não com a boca, — e dizia-o de um modo astucioso, que o melhor doce
eram as faces de Eulália, um doce moreno, corado; dito que a mãe dele
interiormente aprovava, e que a mãe dela não podia ver, tão entregue estava à
contemplação da recente amiga. Um anjo, um verdadeiro anjo!
CAPÍTULO
2
D. Benedita levantou-se, no dia seguinte, com
a ideia de escrever uma carta ao marido, uma longa carta em que lhe narrasse a
festa da véspera, nomeasse os convivas e os pratos, descrevesse a recepção
noturna, e, principalmente, desse notícia das novas relações com D. Maria dos
Anjos. A mala fechava-se às duas horas da tarde, D. Benedita acordara às nove,
e, não morando longe (morava no Campo da Aclamação), um escravo levaria a carta
ao correio muito a tempo. Demais, chovia; D. Benedita arredou a cortina da
janela, deu com os vidros molhados; era uma chuvinha teimosa, o céu estava todo
brochado de uma cor pardo-escura, malhada de grossas nuvens negras. Ao longe,
viu flutuar e voar o pano que cobria o balaio que uma preta levava à cabeça:
concluiu que ventava. Magnífico dia para não sair, e, portanto, escrever uma
carta, duas cartas, todas as cartas de uma esposa ao marido ausente. Ninguém
viria tentá-la.
Enquanto ela compõe os babadinhos e rendas do
roupão branco, um roupão de cambraia que o desembargador lhe dera em 1862, no
mesmo dia aniversário, 19 de setembro, convido a leitora a observar-lhe as
feições. Vê que não lhe dou Vênus; também não lhe dou Medusa. Ao contrário de
Medusa, nota-se-lhe o alisado simples do cabelo, preso sobre a nuca. Os olhos
são vulgares, mas têm uma expressão bonachã. A boca é daquelas que, ainda não
sorrindo, são risonhas, e tem esta outra particularidade, que é uma boca sem
remorsos nem saudades: podia dizer sem desejos, mas eu só digo o que quero, e
só quero falar das saudades e dos remorsos. Toda essa cabeça, que não
entusiasma, nem repele, assenta sobre um corpo antes alto do que baixo, e não
magro nem gordo, mas fornido na proporção da estatura. Para que falar-lhe das
mãos? Há de admirá-las logo, ao travar da pena e do papel, com os dedos
afilados e vadios, dois deles ornados de cinco ou seis anéis.
Creio que é bastante ver o modo por que ela
compõe as rendas e os babadinhos do roupão para compreender que é uma senhora
caprichosa, amiga do arranjo das coisas e de si mesma. Noto que rasgou agora o
babadinho do punho esquerdo, mas é porque, sendo também impaciente, não podia mais
“com a vida deste diabo”. Essa foi a sua expressão, acompanhada logo de um
“Deus me perdoe!” que inteiramente lhe extraiu o veneno. Não digo que ela bateu
com o pé, mas adivinha-se, por ser um gesto natural de algumas senhoras
irritadas. Em todo caso, a cólera durou pouco mais de meio minuto. D. Benedita
foi à caixinha de costura para dar um ponto no rasgão, e contentou-se com um
alfinete. O alfinete caiu no chão, ela abaixou-se a apanhá-lo. Tinha outros, é
verdade, muitos outros, mas não achava prudente deixar alfinetes no chão.
Abaixando-se, aconteceu-lhe ver a ponta da chinela, na qual pareceu-lhe
descobrir um sinal branco; sentou-se na cadeira que tinha perto, tirou a
chinela, e viu o que era: era um roidinho de barata. Outra raiva de D.
Benedita, porque a chinela era muito galante, e fora-lhe dada por uma amiga do
ano passado. Um anjo, um verdadeiro anjo! D. Benedita fitou os olhos irritados
no sinal branco; felizmente a expressão bonachã deles não era tão bonachã que
se deixasse eliminar de todo por outras expressões menos passivas, e retomou o
seu lugar. D. Benedita entrou a virar e revirar a chinela, e a passá-la de uma
para outra mão, a princípio com amor, logo depois maquinalmente, até que as
mãos pararam de todo, a chinela caiu no regaço, e D. Benedita ficou a olhar
para o ar, parada, fixa. Nisto o relógio da sala de jantar começou a bater
horas. D. Benedita logo às primeiras duas estremeceu:
— Jesus! Dez horas!
E, rápida, calçou a chinela, consertou
depressa o punho do roupão, e dirigiu-se à escrivaninha, para começar a carta.
Escreveu, com efeito, a data, e um: — “Meu ingrato marido”; enfim, mal traçara
estas linhas: — “Você lembrou-se ontem de mim? Eu...”, quando Eulália lhe bateu
à porta, bradando:
— Mamãe, mamãe, são horas de almoçar.
D. Benedita abriu a porta, Eulália beijou-lhe
a mão, depois levantou as suas ao céu:
— Meu Deus! que dorminhoca!
— O almoço está pronto?
— Há que séculos!
— Mas eu tinha dito que hoje o almoço era
mais tarde... Estava escrevendo a teu pai.
Olhou alguns instantes para a filha, como
desejosa de lhe dizer alguma coisa grave, ao menos difícil, tal era a expressão
indecisa e séria dos olhos. Mas não chegou a dizer nada; a filha repetiu que o
almoço estava na mesa, pegou-lhe do braço e levou-a.
Deixemo-las almoçar à vontade; descansemos
nessa outra sala, a de visitas, sem aliás inventariar os móveis dela, como o
não fizemos em nenhuma outra sala ou quarto. Não é que eles não prestem, ou
sejam de mau gosto; ao contrário, são bons. Mas a impressão geral que se recebe
é esquisita, como se ao trastejar daquela casa houvesse presidido um plano
truncado, ou uma sucessão de planos truncados. Mãe, filha e filho almoçaram.
Deixemos o filho, que nos não importa, um pirralho de doze anos, que parece ter
oito, tão mofino é ele. Eulália interessa-nos, não só pelo que vimos de relance
no capítulo passado, como porque, ouvindo a mãe falar em D. Maria dos Anjos e
no Leandrinho, ficou muito séria e, talvez, um pouco amuada. D. Benedita
percebeu que o assunto não era aprazível à filha, e recuou da conversa, como
alguém que desanda uma rua para evitar um importuno; recuou e ergueu-se; a
filha veio com ela para a sala de visitas.
Eram onze horas menos um quarto. D. Benedita
conversou com a filha até depois do meio-dia, para ter tempo de descansar o
almoço e escrever a carta. Sabem que a mala fecha às duas horas. De fato,
alguns minutos, poucos, depois do meio-dia, D. Benedita disse à filha que fosse
estudar piano, porque ela ia acabar a carta. Saiu da sala; Eulália foi à
janela, relanceou a vista pelo Campo, e, se lhes disser que com uma pontazinha
de tristeza nos olhos, podem crer que é a pura verdade. Não era, todavia, a
tristeza dos débeis ou dos indecisos; era a tristeza dos resolutos, a quem dói
de antemão um ato pela mortificação que há de trazer a outros, e que, não
obstante, juram a si mesmos praticá-lo, e praticam. Convenho que nem todas
essas particularidades podiam estar nos olhos de Eulália, mas por isso mesmo é
que as histórias são contadas por alguém, que se incumbe de preencher as
lacunas e divulgar o escondido. Que era uma tristeza máscula, era; — e que daí
a pouco os olhos sorriam de um sinal de esperança, também não é mentira.
— Isto acaba, murmurou ela, vindo para
dentro.
Justamente nessa ocasião parava um carro à porta,
apeava-se uma senhora, ouvia-se a campainha da escada, descia um moleque a
abrir a cancela, e subia as escadas D. Maria dos Anjos. D. Benedita, quando lhe
disseram quem era, largou a pena, alvoroçada; vestiu-se à pressa, calçou-se, e
foi à sala.
— Com este tempo! exclamou. Ah! isto é que é
querer bem à gente!
— Vim sem esperar pela sua visita, só para
mostrar que não gosto de cerimônias, e que entre nós deve haver a maior
liberdade.
Vieram os cumprimentos de estilo, as
palavrinhas doces, os afagos da véspera. D. Benedita não se fartava de dizer,
que a visita naquele dia era uma grande fineza, uma prova de verdadeira
amizade; mas queria outra, acrescentou daí a um instante, que D. Maria dos
Anjos ficasse para jantar. Esta desculpou-se alegando que tinha de ir a outras
partes; demais, essa era a prova que lhe pedia, — a de ir jantar à casa dela
primeiro. D. Benedita não hesitou, prometeu que sim, naquela mesma semana.
— Estava agora mesmo escrevendo o seu nome,
continuou.
— Sim?
— Estou escrevendo a meu marido, e falo da
senhora. Não lhe repito o que escrevi, mas imagine que falei muito mal da
senhora, que era antipática, insuportável, maçante, aborrecida... Imagine!
— Imagino, imagino. Pode acrescentar que,
apesar de ser tudo isso, e mais alguma coisa, apresento-lhe os meus respeitos.
— Como ela tem graça para dizer as coisas!
comentou D. Benedita olhando para a filha.
Eulália sorriu sem convicção. Sentada na
cadeira fronteira à mãe, ao pé da outra ponta do sofá em que estava D. Maria
dos Anjos, Eulália dava à conversação das duas a soma de atenção que a cortesia
lhe impunha, e nada mais.
Chegava a parecer aborrecida; cada sorriso
que lhe abria a boca era de um amarelo pálido, um sorriso de favor. Uma das
tranças, — era de manhã, trazia o cabelo em duas tranças caídas pelas costas
abaixo, — uma delas servia-lhe de pretexto a alhear-se de quando em quando,
porque puxava-a para a frente e contava-lhe os fios do cabelo, — ou parecia
contá-los. Assim o creu D. Maria dos Anjos, quando lhe lançou uma ou duas vezes
os olhos, curiosa, desconfiada. D. Benedita é que não via nada; via a amiga, a
feiticeira, como lhe chamou duas ou três vezes, — “feiticeira como ela só”.
— Já!
D. Maria dos Anjos explicou que tinha de ir a
outras visitas; mas foi obrigada a ficar ainda alguns minutos, a pedido da
amiga. Como trouxesse um mantelete de renda preta, muito elegante, D. Benedita
disse que tinha um igual e mandou buscá-lo. Tudo demoras. Mas a mãe do
Leandrinho estava tão contente! D. Benedita enchia-lhe o coração; achava nela
todas as qualidades que melhor se ajustavam à sua alma e aos seus costumes,
ternura, confiança, entusiasmo, simplicidade, uma familiaridade cordial e
pronta. Veio o mantelete; vieram oferecimentos de alguma coisa, um doce, um
licor, um refresco; D. Maria dos Anjos não aceitou nada mais do que um beijo e
a promessa de que iriam jantar
com ela naquela semana.
— Quinta-feira, disse D. Benedita.
— Palavra?
— Palavra.
— Que quer que lhe faça se não for? Há de ser
um castigo bem forte.
— Bem forte? Não me fale mais.
D. Maria dos Anjos beijou com muita ternura a
amiga; depois abraçou e beijou também a Eulália, mas a efusão era muito menor
de parte a parte. Uma e outra mediam-se, estudavam-se, começavam a
compreender-se. D. Benedita levou a amiga até o patamar da escada, depois foi à
janela para vê-la entrar no carro; a amiga, depois de entrar no carro, pôs a
cabeça de fora, olhou para cima, e disse-lhe adeus, com a mão.
— Não falte, ouviu?
— Quinta-feira.
Eulália já não estava na sala; D. Benedita
correu a acabar a carta. Era tarde; não relatara o jantar da véspera, nem já
agora podia fazê-lo. Resumiu tudo; encareceu muito as novas relações; enfim,
escreveu estas palavras:
O Cônego
Roxo falou-me em casar Eulália com o filho de D. Maria dos Anjos; é um moço
formado em direito este ano; é conservador, e espera uma promotoria, agora, se
o Itaboraí não deixar o ministério. Eu acho que o casamento é o melhor
possível. O Dr. Leandrinho (é o nome dele) é muito bem educado; fez um brinde a
você, cheio de palavras tão bonitas, que eu chorei. Eu não sei se Eulália
quererá ou não; desconfio de outro sujeito que outro dia esteve conosco nas
Laranjeiras. Mas você que pensa? Devo limitar-me a aconselhá-la, ou impor-lhe a
nossa vontade? Eu acho que devo usar um pouco de minha autoridade; mas não
quero fazer nada sem que você me diga. O melhor seria se você viesse cá.
Acabou e fechou a carta; Eulália entrou nessa
ocasião, ela deu-lha para mandar, sem demora, ao correio; e a filha saiu com a
carta sem saber que tratava dela e do seu futuro. D. Benedita deixou-se cair no
sofá, cansada, exausta. A carta era muito comprida apesar de não dizer tudo; e
era-lhe tão enfadonho escrever cartas compridas!
CAPÍTULO
3
Era-lhe tão enfadonho escrever cartas
compridas! Esta palavra, fecho do capítulo passado, explica a longa prostração
de D. Benedita. Meia hora depois de cair no sofá, ergueu-se um pouco, e
percorreu o gabinete com os olhos, como procurando alguma coisa. Essa coisa era
um livro. Achou o livro, e podia dizer achou os livros, pois nada menos de três
estavam ali, dois abertos, um marcado em certa página, todos em cadeiras. Eram
três romances que D. Benedita lia ao mesmo tempo. Um deles, note-se, custou-lhe
não pouco trabalho. Deram-lhe notícia na rua, perto de casa, com muitos
elogios; chegara da Europa na véspera. D. Benedita ficou tão entusiasmada, que
apesar de ser longe e tarde, arrepiou caminho e foi ela mesmo comprá-lo,
correndo nada menos de três livrarias. Voltou ansiosa, namorada do livro, tão
namorada que abriu as folhas, jantando, e leu os cinco primeiros capítulos
naquela mesma noite. Sendo preciso dormir, dormiu; no dia seguinte não pôde
continuar, depois esqueceu-o. Agora, porém, passados oito dias, querendo ler
alguma coisa, aconteceu-lhe justamente achá-lo à mão.
— Ah!
E ei-la que torna ao sofá, que abre o livro
com amor, que mergulha o espírito, os olhos e o coração na leitura tão
desastradamente interrompida. D. Benedita ama os romances, é natural; e adora
os romances bonitos, é naturalíssimo. Não admira que esqueça tudo para ler
este; tudo, até a lição de piano da filha, cujo professor chegou e saiu, sem
que ela fosse à sala. Eulália despediu-se do professor; depois foi ao gabinete,
abriu a porta, caminhou pé ante pé até o sofá, e acordou a mãe com um beijo.
— Dorminhoca!
— Ainda chove?
— Não, senhora; agora parou.
— A carta foi?
— Foi; mandei o José a toda a pressa. Aposto
que mamãe esqueceu-se de dar lembranças a papai? Pois olhe, eu não me esqueço
nunca.
D. Benedita bocejou. Já não pensava na carta;
pensava no colete que encomendara à Charavel, um colete de barbatanas mais
moles do que o último. Não gostava de barbatanas duras; tinha o corpo mui
sensível. Eulália falou ainda algum tempo do pai, mas calou-se logo, e vendo no
chão o livro aberto, o famoso romance, apanhou-o, fechou-o, pô-lo em cima da
mesa. Nesse momento vieram trazer uma carta a D. Benedita; era do Cônego Roxo,
que mandava perguntar se estavam em casa naquele dia, porque iria ao enterro
dos ossos.
— Pois não! bradou D. Benedita; estamos em
casa, venha, pode vir.
Eulália escreveu o bilhetinho de resposta.
Daí a três quartos de hora fazia o cônego a sua entrada na sala de D. Benedita.
Era um bom homem o cônego, velho amigo daquela casa, na qual, além de trinchar
o peru nos dias solenes, como vimos, exercia o papel de conselheiro, e
exercia-o com lealdade e amor. Eulália, principalmente, merecia-lhe muito;
vira-a pequena, galante, travessa, amiga dele, e criou-lhe uma afeição
paternal, tão paternal que tomara a peito casá-la bem, e nenhum noivo melhor do
que o Leandrinho, pensava o cônego. Naquele dia, a ideia de ir jantar com elas
era antes um pretexto; o cônego queria tratar o negócio diretamente com a filha
do desembargador. Eulália, ou porque adivinhasse isso mesmo, ou porque a pessoa
do cônego lhe lembrasse o Leandrinho, ficou logo preocupada, aborrecida.
Mas, preocupada ou aborrecida, não quer dizer
triste ou desconsolada. Era resoluta, tinha têmpera, podia resistir, e
resistiu, declarando ao cônego, quando ele naquela noite lhe falou do
Leandrinho, que absolutamente não queria casar.
— Palavra de moça bonita?
— Palavra de moça feia.
— Mas, por quê?
— Porque não quero.
— E se mamãe quiser?
— Não quero eu.
— Mau! isso não é bonito, Eulália.
Eulália deixou-se estar. O cônego ainda
tornou ao assunto, louvou as qualidades do candidato, as esperanças da família,
as vantagens do casamento; ela ouvia tudo, sem contestar nada. Mas quando o
cônego formulava de um modo direto a questão, a resposta invariável era esta:
— Já disse tudo.
— Não quer?
— Não.
O desconsolo do bom cônego era profundo e
sincero. Queria casá-la bem, e não achava melhor noivo. Chegou a interrogá-la
discretamente, sobre se tinha alguma preferência em outra parte. Mas Eulália,
não menos discretamente, respondia que não, que não tinha nada; não queria
nada; não queria casar. Ele creu que era assim, mas receou também que não fosse
assim; faltava-lhe o trato suficiente das mulheres para ler através de uma
negativa. Quando referiu tudo a D. Benedita, esta ficou assombrada com os
termos da recusa; mas tornou logo a si, e declarou ao padre que a filha não
tinha vontade, faria o que ela quisesse, e ela queria o casamento.
— Já agora nem espero resposta do pai,
concluiu; declaro-lhe que ela há de casar. Quinta-feira vou jantar com D. Maria
dos Anjos, e combinaremos as coisas.
— Devo dizer-lhe, ponderou o cônego, que D.
Maria dos Anjos não deseja que se faça nada à força.
— Qual força! Não é preciso força.
O cônego refletiu um instante.
— Em todo caso, não violentaremos qualquer
outra afeição, que ela possa ter, disse ele.
D. Benedita não respondeu nada; mas consigo,
no mais fundo de si mesma, jurou que, houvesse o que houvesse, acontecesse o
que acontecesse, a filha seria nora de D. Maria dos Anjos. E ainda consigo,
depois de sair o cônego: — Tinha que ver! um tico de gente, com fumaças de
governar a casa!
A quinta-feira raiou. Eulália, — o tico de
gente, levantou-se fresca, lépida, loquaz, com todas as janelas da alma abertas
ao sopro azul da manhã. A mãe acordou ouvindo um trecho italiano, cheio de
melodia; era ela que cantava, alegre, sem afetação, com a indiferença das aves
que cantam para si ou para os seus, e não para o poeta, que as ouve e traduz na
língua imortal dos homens. D. Benedita afagara muito a ideia de a ver abatida,
carrancuda, e gastara uma certa soma de imaginação em compor os seus modos,
delinear os seus atos, ostentar energia e força. E nada! Em vez de uma filha
rebelde, uma criatura gárrula e submissa. Era começar mal o dia; era sair
aparelhada para destruir uma fortaleza, e dar com uma cidade aberta, pacífica,
hospedeira, que lhe pedia o favor de entrar e partir o pão da alegria e da
concórdia. Era começar o dia muito mal.
A segunda causa do tédio de D. Benedita foi
um ameaço de enxaqueca, às três horas da tarde; um ameaço, ou uma suspeita de
possibilidade de ameaço. Chegou a transferir a visita, mas a filha ponderou que
talvez a visita lhe fizesse bem, e em todo caso, era tarde para deixar de ir.
D. Benedita não teve remédio, aceitou o reparo. Ao espelho, penteando-se,
esteve quase a dizer que definitivamente ficava: chegou a insinuá-lo à filha.
— Mamãe, veja que D. Maria dos Anjos conta
com a senhora, disse-lhe Eulália.
— Pois sim, redarguiu a mãe, mas não prometi
ir doente.
Enfim, vestiu-se, calçou as luvas, deu as
últimas ordens; e devia doer-lhe muito a cabeça, porque os modos eram
arrebitados, uns modos de pessoa constrangida ao que não quer. A filha
animava-a muito, lembrava-lhe o vidrinho dos sais, instava que saíssem,
descrevia a ansiedade de D. Maria dos Anjos, consultava de dois em dois minutos
o pequenino relógio, que trazia na cintura, etc. Uma amofinação, realmente.
— O que tu estás é me amofinando, disse-lhe a
mãe.
E saiu, saiu exasperada, com uma grande
vontade de esganar a filha, dizendo consigo que a pior coisa do mundo era ter
filhas. Os filhos ainda vá: criam-se, fazem carreira por si; mas as filhas!
Felizmente, o jantar de D. Maria dos Anjos
aquietou-a; e não digo que a enchesse de grande satisfação, porque não foi assim.
Os modos de D. Benedita não eram os do costume; eram frios, secos, ou quase
secos; ela, porém, explicou de si mesma a diferença, noticiando o ameaço da
enxaqueca, notícia mais triste do que alegre, e que, aliás, alegrou a alma de
D. Maria dos Anjos, por esta razão fina e profunda: antes a frieza da amiga
fosse originada na doença do que na quebra do afeto. Demais, a doença não era
grave. E que fosse grave! Não houve naquele dia mãos presas, olhos nos olhos,
manjares comidos entre carícias mútuas; não houve nada do jantar de domingo. Um
jantar apenas conversado; não alegre, conversado; foi o mais que alcançou o
cônego. Amável cônego! As disposições de Eulália, naquele dia, cumularam-no de
esperanças; o riso que brincava nela, a maneira expansiva da conversa, a
docilidade com que se prestava a tudo, a tocar, a cantar, e o rosto afável,
meigo, com que ouvia e falava ao Leandrinho, tudo isso foi para a alma do
cônego uma renovação de esperanças. Logo hoje é que D. Benedita estava doente!
Realmente, era caiporismo.
D. Benedita reanimou-se um pouco, à noite,
depois do jantar. Conversou mais, discutiu um projeto de passeio ao Jardim
Botânico, chegou mesmo a propor que fosse logo no dia seguinte; mas Eulália
advertiu que era prudente esperar um ou dois dias até que os efeitos da
enxaqueca desaparecessem de todo; e olhar que mereceu à mãe, em troca do
conselho, tinha a ponta aguda de um punhal. Mas a filha não tinha medo dos
olhos maternos. De noite, ao despentear-se, recapitulando o dia, Eulália
repetiu consigo a palavra que lhe ouvimos, dias antes, à janela:
“Isto acaba”.
E, satisfeita de si, antes de dormir, puxou
uma certa gaveta, tirou uma caixinha, abriu-a, aventou um cartão de alguns
centímetros de altura, — um retrato. Não era retrato de mulher, não só por ter
bigodes, como por estar fardado; era, quando muito, um oficial de marinha. Se
bonito ou feio, é matéria de opinião. Eulália achava-o bonito; a prova é que o
beijou, não digo uma vez, mas três. Depois mirou-o, com saudade, tornou a
fechá-lo e guardá-lo.
Que fazias tu, mãe cautelosa e ríspida, que
não vinhas arrancar às mãos e à boca da filha um veneno tão sutil e mortal? D.
Benedita, à janela, olhava a noite, entre as estrelas e os lampiões de gás, com
a imaginação vagabunda, inquieta, roída de saudades e desejos. O dia tinha-lhe
saído mal, desde manhã. D. Benedita confessava, naquela doce intimidade da alma
consigo mesma, que o jantar de D. Maria dos Anjos não prestara para nada, e que
a própria amiga não estava provavelmente nos seus dias de costume. Tinha
saudades, não sabia bem de quê, e desejos, que ignorava. De quando em quando,
bocejava ao modo preguiçoso e arrastado dos que caem de sono; mas se alguma
coisa tinha era fastio, — fastio, impaciência, curiosidade. D. Benedita cogitou
seriamente em ir ter com o marido; e tão depressa a ideia do marido lhe
penetrou no cérebro, como se lhe apertou o coração de saudades e remorsos, e o
sangue pulou-lhe num tal ímpeto de ir ver o desembargador que, se o paquete do
Norte estivesse na esquina da rua e as malas prontas, ela embarcaria logo e
logo. Não importa; o paquete devia estar prestes a sair, oito ou dez dias; era
o tempo de arranjar as malas. Iria por três meses somente, não era preciso
levar muita coisa.
Ei-la que se consola da grande cidade
fluminense, da similitude dos dias, da escassez das coisas, da persistência das
caras, da mesma fixidez das modas, que era um dos seus árduos problemas: — por
que é que as modas hão de durar mais de quinze dias?
— Vou, não há que ver, vou ao Pará, disse ela
a meia voz.
Com efeito, no dia seguinte, logo de manhã,
comunicou a resolução à filha, que a recebeu sem abalo. Mandou ver as malas que
tinha, achou que era preciso mais uma, calculou o tamanho, e determinou
comprá-la. Eulália, por uma inspiração súbita:
— Mas, mamãe, nós não vamos por três meses?
— Três... ou dois.
— Pois, então, não vale a pena. As duas malas
chegam.
— Não chegam.
— Bem; se não chegarem, pode-se comprar na
véspera. E mamãe mesmo escolhe; é melhor do que mandar esta gente que não sabe
nada.
D. Benedita achou a reflexão judiciosa, e
guardou o dinheiro. A filha sorriu para dentro. Talvez repetisse consigo a
famosa palavra da janela: — Isto acaba. A mãe foi cuidar dos arranjos, escolha
de roupa, lista das coisas que precisava comprar, um presente para o marido,
etc. Ah! Que alegria que ele ia ter! Depois do meio-dia saíram para fazer
encomendas, visitas, comprar as passagens, quatro passagens; levavam uma
escrava consigo. Eulália ainda tentou arredá-la da ideia, propondo a
transferência da viagem; mas D. Benedita declarou peremptoriamente que não. No
escritório da Companhia de Paquetes disseram-lhe que o do Norte saía na
sexta-feira da outra semana. Ela pediu as quatro passagens; abriu a
carteirinha, tirou uma nota, depois duas, refletiu um instante.
— Basta vir na véspera, não?
— Basta, mas pode não achar mais.
— Bem; o senhor guarde os bilhetes: eu mando
buscar.
— O seu nome?
— O nome? O melhor é não tomar o nome; nós
viremos três dias antes de sair o vapor. Naturalmente ainda haverá bilhetes.
— Pode ser.
— Há de haver.
Na rua, Eulália observou que era melhor ter
comprado logo os bilhetes; e, sabendo-se que ela não desejava ir para o Norte
nem para o Sul, salvo na fragata em que embarcasse o original do retrato da
véspera, há de supor-se que a reflexão da moça era profundamente maquiavélica.
Não digo que não. D. Benedita, entretanto, noticiou a viagem aos amigos e
conhecidos, nenhum dos quais a ouviu espantado. Um chegou a perguntar-lhe se,
enfim, daquela vez era certo. D. Maria dos Anjos, que sabia da viagem pelo
cônego, se alguma coisa a assombrou, quando a amiga se despediu dela, foram as
atitudes geladas, o olhar fixo no chão, o silêncio, a indiferença. Uma visita
de dez minutos apenas, durante os quais D. Benedita disse quatro palavras no
princípio: — Vamos para o Norte. E duas no fim: — Passe bem. E os beijos? Dois
tristes beijos de pessoa morta.
CAPÍTULO
4
A viagem não se fez por um motivo
supersticioso. D. Benedita, no domingo à noite, advertiu que o paquete seguia
na sexta-feira, e achou que o dia era mau. Iriam no outro paquete. Não foram no
outro; mas desta vez os motivos escapam inteiramente ao alcance do olhar
humano, e o melhor alvitre em tais casos é não teimar com o impenetrável. A
verdade é que D. Benedita não foi, mas iria no terceiro paquete, a não ser um
incidente que lhe trocou os planos.
Tinha a filha inventado uma festa e uma
amizade nova. A nova amizade era uma família do Andaraí; a festa não se sabe a
que propósito foi, mas deve ter sido esplêndida, porque D. Benedita ainda
falava dela três dias depois. Três dias! Realmente, era demais. Quanto à
família, era impossível ser mais amável; ao menos, a impressão que deixou na
alma de D. Benedita foi intensíssima. Uso este superlativo, porque ela mesma o
empregou: é um documento humano.
— Aquela gente? Oh! deixou-me uma impressão
intensíssima.
E toca a andar para Andaraí, namorada de D.
Petronilha, esposa do Conselheiro Beltrão, e de uma irmã dela, D. Maricota, que
ia casar com um oficial de marinha, irmão de outro oficial de marinha, cujos
bigodes, olhos, cara, porte, cabelos, são os mesmos do retrato que o leitor
entreviu há tempos na gavetinha de Eulália. A irmã casada tinha trinta e dois
anos, e uma seriedade, umas maneiras tão bonitas, que deixaram encantada a esposa
do desembargador. Quanto à irmã solteira era uma flor, uma flor de cera, outra
expressão de D. Benedita, que não altero com receio de entibiar a verdade.
Um dos pontos mais obscuros desta curiosa
história é a pressa com que as relações se travaram, e os acontecimentos se
sucederam. Por exemplo, uma das pessoas que estiveram em Andaraí, com D.
Benedita, foi o oficial de marinha retratado no cartão particular de Eulália,
1º tenente Mascarenhas, que o Conselheiro Beltrão proclamou futuro almirante.
Vede, porém, a perfídia do oficial: vinha fardado; e D. Benedita, que amava os
espetáculos novos, achou-o tão distinto, tão bonito, entre os outros moços à
paisana, que o preferiu a todos, e lho disse. O oficial agradeceu comovido. Ela
ofereceu-lhe a casa; ele pediu-lhe licença para fazer uma visita.
— Uma visita? Vá jantar conosco.
Mascarenhas fez uma cortesia de aquiescência.
— Olhe, disse D. Benedita, vá amanhã.
Mascarenhas foi, e foi mais cedo. D. Benedita
falou-lhe da vida do mar; ele pediu-lhe a filha em casamento. D. Benedita ficou
sem voz, pasmada. Lembrou-se, é verdade, que desconfiara dele, um dia, nas
Laranjeiras; mas a suspeita acabara. Agora não os vira conversar nem olhar uma
só vez. Em casamento! Mas seria mesmo em casamento? Não podia ser outra coisa;
a atitude séria, respeitosa, implorativa do rapaz dizia bem que se tratava de
um casamento. Que sonho! Convidar um amigo, e abrir a porta a um genro: era o
cúmulo do inesperado. Mas o sonho era bonito; o oficial de marinha era um
galhardo rapaz, forte, elegante, simpático, metia toda a gente no coração, e
principalmente parecia adorá-la, a ela, D. Benedita. Que magnífico sonho! D.
Benedita voltou do pasmo, e respondeu que sim, que Eulália era sua. Mascarenhas
pegou-lhe na mão e beijou-a filialmente.
— Mas o desembargador? disse ele.
— O desembargador concordará comigo.
Tudo andou assim depressa. Certidões
passadas, banhos corridos, marcou-se o dia do casamento; seria vinte e quatro
horas depois de recebida a resposta do desembargador. Que alegria a da boa mãe!
que atividade no preparo do enxoval, no plano e nas encomendas da festa, na
escolha dos convidados, etc.! Ela ia de um lado para outro, ora a pé, ora de
carro, fizesse chuva ou sol. Não se detinha no mesmo objeto muito tempo; a
semana do enxoval não era a do preparo da festa, nem a das visitas; alternava
as coisas, voltava atrás, com certa confusão, é verdade. Mas aí estava a filha
para suprir as faltas, corrigir os defeitos, cercear as demasias, tudo com a
sua habilidade natural. Ao contrário de todos os noivos, este não as
importunava; não jantava todos os dias com elas, segundo lhe pedia a dona da
casa; jantava aos domingos, e visitava-as uma vez por semana. Matava as
saudades por meio de cartas, que eram contínuas, longas e secretas, como no
tempo do namoro. D. Benedita não podia explicar uma tal esquivança, quando ela
morria por ele; e então vingava-se da esquisitice, morrendo ainda mais, e
dizendo dele por toda a parte as mais belas coisas do mundo.
— Uma pérola! uma pérola!
— E um bonito rapaz, acrescentavam.
— Não é? De truz.
A mesma coisa repetia ao marido nas cartas
que lhe mandava, antes e depois de receber a resposta da primeira. A resposta
veio; o desembargador deu o seu consentimento, acrescentando que lhe doía muito
não poder vir assistir às bodas, por achar-se um tanto adoentado; mas abençoava
de longe os filhos, e pedia o retrato do genro.
Cumpriu-se o acordo à risca. Vinte e quatro
horas depois de recebida a resposta do Pará efetuou-se o casamento, que foi uma
festa admirável, esplêndida, no dizer de D. Benedita, quando a contou a algumas
amigas. Oficiou o Cônego Roxo, e claro é que D. Maria dos Anjos não esteve
presente, e menos ainda o filho. Ela esperou, note-se, até à última hora um
bilhete de participação, um convite, uma visita, embora se abstivesse de
comparecer; mas não recebeu nada. Estava atônita, revolvia a memória a ver se
descobria alguma inadvertência sua que pudesse explicar a frieza das relações;
não achando nada, supôs alguma intriga. E supôs mal, pois foi um simples
esquecimento. D. Benedita, no dia do consórcio, de manhã, teve ideia de que D.
Maria dos Anjos não recebera participação.
— Eulália, parece que não mandamos
participação a D. Maria dos Anjos, disse ela à filha, almoçando.
— Não sei; mamãe é quem se incumbiu dos
convites.
— Parece que não, confirmou D. Benedita.
João, dá cá mais açúcar.
O copeiro deu-lhe o açúcar; ela, mexendo o
chá, lembrou-se do carro que iria buscar o cônego e reiterou uma ordem da
véspera.
Mas a fortuna é caprichosa. Quinze dias
depois do casamento, chegou a notícia do óbito do desembargador. Não descrevo a
dor de D. Benedita; foi dilacerante e sincera. Os noivos, que devaneavam na
Tijuca, vieram ter com ela; D. Benedita chorou todas as lágrimas de uma esposa
austera e fidelíssima. Depois da missa do sétimo dia, consultou a filha e o
genro acerca da ideia de ir ao Pará, erigir um túmulo ao marido, e beijar a
terra em que ele repousava. Mascarenhas trocou um olhar com a mulher; depois
disse à sogra que era melhor irem juntos, porque ele devia seguir para o Norte
daí a três meses em comissão do governo. D. Benedita recalcitrou um pouco, mas
aceitou o prazo, dando desde logo todas as ordens necessárias à construção do
túmulo. O túmulo fez-se; mas a comissão não veio, e D. Benedita não pôde ir.
Cinco meses depois, deu-se um pequeno
incidente na família. D. Benedita mandara construir uma casa no caminho da
Tijuca, e o genro, com o pretexto de uma interrupção na obra, propôs acabá-la.
D. Benedita consentiu, e o ato era tanto mais honroso para ela, quanto que o
genro começava a parecer-lhe insuportável com a sua excessiva disciplina, com
as suas teimas, impertinências, etc. Verdadeiramente, não havia teimas; nesse
particular, o genro de D. Benedita contava tanto com a sinceridade da sogra que
nunca teimava; deixava que ela própria se desmentisse dias depois. Mas pode ser
que isto mesmo a mortificasse. Felizmente, o governo lembrou-se de o mandar ao
Sul; Eulália, grávida, ficou com a mãe.
Foi por esse tempo que um negociante, viúvo,
teve ideia de cortejar D. Benedita. O primeiro ano de viuvez estava passado. D.
Benedita acolheu a ideia com muita simpatia, embora sem alvoroço. Defendia-se
consigo; alegava a idade e os estudos do filho, que em breve estaria a caminho
de São Paulo, deixando-a só, sozinha no mundo. O casamento seria uma
consolação, uma companhia. E consigo, na rua ou em casa, nas horas disponíveis,
aprimorava o plano com todos os floreios da imaginação vivaz e súbita; era uma
vida nova, pois desde muito, antes mesmo da morte do marido, pode-se dizer que
era viúva. O negociante gozava do melhor conceito: a escolha era excelente.
Não casou. O genro tornou do Sul, a filha deu
à luz um menino robusto e lindo, que foi a paixão da avó durante os primeiros
meses. Depois, o genro, a filha e o neto foram para o Norte. D. Benedita
achou-se só e triste; o filho não bastava aos seus afetos. A ideia de viajar
tornou a rutilar-lhe na mente, mas como um fósforo, que se apaga logo. Viajar
sozinha era cansar e aborrecer-se ao mesmo tempo; achou melhor ficar.
Uma companhia lírica, adventícia, sacudiu-lhe
o torpor, e restituiu-a à sociedade. A sociedade incutiu-lhe outra vez a ideia
do casamento, e apontou-lhe logo um pretendente, desta vez um advogado, também
viúvo.
— Casarei? não casarei?
Uma noite, volvendo D. Benedita este
problema, à janela da casa de Botafogo, para onde se mudara desde alguns meses,
viu um singular espetáculo. Primeiramente uma claridade opaca, espécie de luz
coada por um vidro fosco, vestia o espaço da enseada, fronteiro à janela. Nesse
quadro apareceu-lhe uma figura vaga e transparente, trajada de névoas, toucada
de reflexos, sem contornos definidos, porque morriam todos no ar. A figura veio
até ao peitoril da janela de D. Benedita; e de um gesto sonolento, com uma voz
de criança, disse-lhe estas palavras sem sentido:
— Casa... não casarás... se casas... casarás...
não casarás... e casas... casando...
D. Benedita ficou aterrada, sem poder
mexer-se; mas ainda teve a força de perguntar à figura quem era. A figura achou
um princípio de riso, mas perdeu-o logo; depois respondeu que era a fada que
presidira ao nascimento de D. Benedita: Meu nome é Veleidade, concluiu; e, como
um suspiro, dispersou-se na noite e no silêncio.
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