Conto de Escola
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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A escola era na Rua do Costa, um sobradinho
de grade de pau. O ano era de 1840. Naquele dia — uma segunda-feira, do mês de
Maio — deixei-me estar alguns instantes na Rua da Princesa a ver onde iria
brincar a manhã. Hesitava entre o morro de São Diogo e o Campo de Sant’Ana, que
não era então esse parque atual, construção de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado
de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o problema. De
repente disse comigo que o melhor era a escola. E guiei para a escola. Aqui vai
a razão.
Na semana anterior tinha feito dois suetos,
e, descoberto o caso, recebi o pagamento das mãos de meu pai, que me deu uma
sova de vara de marmeleiro. As sovas de meu pai doíam por muito tempo. Era um
velho empregado do Arsenal de Guerra, ríspido e intolerante. Sonhava para mim
uma grande posição comercial, e tinha ânsia de me ver com os elementos
mercantis, ler, escrever e contar, para me meter de caixeiro. Citava-me nomes
de capitalistas que tinham começado ao balcão. Ora, foi a lembrança do último
castigo que me levou naquela manhã para o colégio. Não era um menino de
virtudes.
Subi a escada com cautela, para não ser
ouvido do mestre, e cheguei a tempo; ele entrou na sala três ou quatro minutos
depois. Entrou com o andar manso do costume, em chinelas de cordovão, com a
jaqueta de brim lavada e desbotada, calça branca e tesa e grande colarinho
caído. Chamava-se Policarpo e tinha perto de cinquenta anos ou mais. Uma vez
sentado, extraiu da jaqueta a boceta de rapé e o lenço vermelho, pô-los na
gaveta; depois relanceou os olhos pela sala. Os meninos, que se conservaram de
pé durante a entrada dele, tornaram a sentar-se. Tudo estava em ordem;
começaram os trabalhos.
— Seu Pilar, eu preciso falar com você,
disse-me baixinho o filho do mestre.
Chamava-se Raimundo este pequeno, e era mole,
aplicado, inteligência tarda. Raimundo gastava duas horas em reter aquilo que a
outros levava apenas trinta ou cinquenta minutos; vencia com o tempo o que não
podia fazer logo com o cérebro. Reunia a isso um grande medo ao pai. Era uma
criança fina, pálida, cara doente; raramente estava alegre. Entrava na escola
depois do pai e retirava-se antes. O mestre era mais severo com ele do que
conosco.
— O que é que você quer?
— Logo, respondeu ele com voz trêmula.
Começou a lição de escrita. Custa-me dizer
que eu era dos mais adiantados da escola; mas era. Não digo também que era dos
mais inteligentes, por um escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito no
estilo, mas não tenho outra convicção. Note-se que não era pálido nem mofino:
tinha boas cores e músculos de ferro. Na lição de escrita, por exemplo, acabava
sempre antes de todos, mas deixava-me estar a recortar narizes no papel ou na
tábua, ocupação sem nobreza nem espiritualidade, mas em todo caso ingênua.
Naquele dia foi a mesma coisa; tão depressa acabei, como entrei a reproduzir o
nariz do mestre, dando-lhe cinco ou seis atitudes diferentes, das quais recordo
a interrogativa, a admirativa, a dubitativa e a cogitativa. Não lhes punha
esses nomes, pobre estudante de primeiras letras que era; mas, instintivamente,
dava-lhes essas expressões. Os outros foram acabando; não tive remédio senão
acabar também, entregar a escrita, e voltar para o meu lugar.
Com franqueza, estava arrependido de ter
vindo. Agora que ficava preso, ardia por andar lá fora, e recapitulava o campo
e o morro, pensava nos outros meninos vadios, o Chico Telha, o Américo, o
Carlos das Escadinhas, a fina flor do bairro e do gênero humano. Para cúmulo de
desespero, vi através das vidraças da escola, no claro azul do céu, por cima do
Morro do Livramento, um papagaio de papel, alto e largo, preso de uma corda
imensa, que bojava no ar, uma coisa soberba. E eu na escola, sentado, pernas
unidas, com o livro de leitura e a gramática nos joelhos.
— Fui um bobo em vir, disse eu ao Raimundo.
— Não diga isso, murmurou ele.
Olhei para ele; estava mais pálido. Então
lembrou-me outra vez que queria pedir-me alguma coisa, e perguntei-lhe o que
era. Raimundo estremeceu de novo, e, rápido, disse-me que esperasse um pouco;
era uma coisa particular.
— Seu Pilar... murmurou ele daí a alguns
minutos.
— Que é?
— Você...
— Você quê?
Ele deitou os olhos ao pai, e depois a alguns
outros meninos. Um destes, o Curvelo, olhava para ele, desconfiado, e o
Raimundo, notando-me essa circunstância, pediu alguns minutos mais de espera.
Confesso que começava a arder de curiosidade. Olhei para o Curvelo, e vi que
parecia atento; podia ser uma simples curiosidade vaga, natural indiscrição;
mas podia ser também alguma coisa entre eles. Esse Curvelo era um pouco levado
do diabo. Tinha onze anos, era mais velho que nós.
Que me quereria o Raimundo? Continuei
inquieto, remexendo-me muito, falando-lhe baixo, com instância, que me dissesse
o que era, que ninguém cuidava dele nem de mim. Ou então, de tarde...
— De tarde, não, interrompeu-me ele; não pode
ser de tarde.
— Então agora...
— Papai está olhando.
Na verdade, o mestre fitava-nos. Como era
mais severo para o filho, buscava-o muitas vezes com os olhos, para trazê-lo
mais aperreado. Mas nós também éramos finos; metemos o nariz no livro, e
continuamos a ler. Afinal cansou e tomou as folhas do dia, três ou quatro, que
ele lia devagar, mastigando as ideias e as paixões. Não esqueçam que estávamos
então no fim da Regência, e que era grande a agitação pública. Policarpo tinha
decerto algum partido, mas nunca pude averiguar esse ponto. O pior que ele
podia ter, para nós, era a palmatória. E essa lá estava, pendurada do portal da
janela, à direita, com os seus cinco olhos do diabo. Era só levantar a mão,
despendurá-la e brandi-la, com a força do costume, que não era pouca. E daí,
pode ser que alguma vez as paixões políticas dominassem nele a ponto de
poupar-nos uma ou outra correção. Naquele dia, ao menos, pareceu-me que lia as
folhas com muito interesse; levantava os olhos de quando em quando, ou tomava
uma pitada, mas tornava logo aos jornais, e lia a valer.
No fim de algum tempo — dez ou doze minutos —
Raimundo meteu a mão no bolso das calças e olhou para mim.
— Sabe o que tenho aqui?
— Não.
— Uma pratinha que mamãe me deu.
— Hoje?
— Não, no outro dia, quando fiz anos...
— Pratinha de verdade?
— De verdade.
Tirou-a vagarosamente, e mostrou-me de longe.
Era uma moeda do tempo do rei, cuido que doze vinténs ou dois tostões, não me
lembro; mas era uma moeda, e tal moeda que me fez pular o sangue no coração.
Raimundo revolveu em mim o olhar pálido; depois perguntou-me se a queria para
mim. Respondi-lhe que estava caçoando, mas ele jurou que não.
— Mas então você fica sem ela?
— Mamãe depois me arranja outra. Ela tem
muitas que vovô lhe deixou, numa caixinha; algumas são de ouro. Você quer esta?
Minha resposta foi estender-lhe a mão
disfarçadamente, depois de olhar para a mesa do mestre. Raimundo recuou a mão
dele e deu à boca um gesto amarelo, que queria sorrir. Em seguida propôs-me um
negócio, uma troca de serviços; ele me daria a moeda, eu lhe explicaria um
ponto da lição de sintaxe. Não conseguira reter nada do livro, e estava com
medo do pai. E concluía a proposta esfregando a pratinha nos joelhos...
Tive uma sensação esquisita. Não é que eu
possuísse da virtude uma ideia antes própria de homem; não é também que não
fosse fácil em empregar uma ou outra mentira de criança. Sabíamos ambos enganar
ao mestre. A novidade estava nos termos da proposta, na troca de lição e
dinheiro, compra franca, positiva, toma lá, dá cá; tal foi a causa da sensação.
Fiquei a olhar para ele, à toa, sem poder dizer nada.
Compreende-se que o ponto da lição era
difícil, e que o Raimundo, não o tendo aprendido, recorria a um meio que lhe
pareceu útil para escapar ao castigo do pai. Se me tem pedido a coisa por
favor, alcançá-la-ia do mesmo modo, como de outras vezes; mas parece que era a
lembrança das outras vezes, o medo de achar a minha vontade frouxa ou cansada,
e não aprender como queria, — e pode ser mesmo que em alguma ocasião lhe
tivesse ensinado mal, — parece que tal foi a causa da proposta. O pobre-diabo
contava com o favor, — mas queria assegurar-lhe a eficácia, e daí recorreu à
moeda que a mãe lhe dera e que ele guardava como relíquia ou brinquedo; pegou
dela e veio esfregá-la nos joelhos, à minha vista, como uma tentação...
Realmente, era bonita, fina, branca, muito branca; e para mim, que só trazia
cobre no bolso, quando trazia alguma coisa, um cobre feio, grosso, azinhavrado...
Não queria recebê-la, e custava-me recusá-la.
Olhei para o mestre, que continuava a ler, com tal interesse, que lhe pingava o
rapé do nariz. — Ande, tome, dizia-me baixinho o filho. E a pratinha
fuzilava-lhe entre os dedos, como se fora diamante... Em verdade, se o mestre
não visse nada, que mal havia? E ele não podia ver nada, estava agarrado aos
jornais lendo com fogo, com indignação...
— Tome, tome...
Relancei os olhos pela sala, e dei com os do
Curvelo em nós; disse ao Raimundo que esperasse. Pareceu-me que o outro nos
observava, então dissimulei; mas daí a pouco deitei-lhe outra vez o olho, e —
tanto se ilude a vontade! — não lhe vi mais nada. Então cobrei ânimo.
— Dê cá...
Raimundo deu-me a pratinha, sorrateiramente;
eu meti-a na algibeira das calças, com um alvoroço que não posso definir. Cá
estava ela comigo, pegadinha à perna. Restava prestar o serviço, ensinar a
lição e não me demorei em fazê-lo, nem o fiz mal, ao menos conscientemente;
passava-lhe a explicação em um retalho de papel que ele recebeu com cautela e
cheio de atenção. Sentia-se que despendia um esforço cinco ou seis vezes maior
para aprender um nada; mas contanto que ele escapasse ao castigo, tudo iria
bem.
De repente, olhei para o Curvelo e estremeci;
tinha os olhos em nós, com um riso que me pareceu mau. Disfarcei; mas daí a
pouco, voltando-me outra vez para ele, achei-o do mesmo modo, com o mesmo ar,
acrescendo que entrava a remexer-se no banco, impaciente. Sorri para ele e ele
não sorriu; ao contrário, franziu a testa, o que lhe deu um aspecto ameaçador.
O coração bateu-me muito.
— Precisamos muito cuidado, disse eu ao
Raimundo.
— Diga-me isto só, murmurou ele.
Fiz-lhe sinal que se calasse; mas ele
instava, e a moeda, cá no bolso, lembrava-me o contrato feito. Ensinei-lhe o
que era, disfarçando muito; depois, tornei a olhar para o Curvelo, que me
pareceu ainda mais inquieto, e o riso, dantes mau, estava agora pior. Não é
preciso dizer que também eu ficara em brasas, ansioso que a aula acabasse; mas
nem o relógio andava como das outras vezes, nem o mestre fazia caso da escola;
este lia os jornais, artigo por artigo, pontuando-os com exclamações, com
gestos de ombros, com uma ou duas pancadinhas na mesa. E lá fora, no céu azul,
por cima do morro, o mesmo eterno papagaio, guinando a um lado e outro, como se
me chamasse a ir ter com ele. Imaginei-me ali com os livros e a pedra embaixo
da mangueira, e a pratinha no bolso das calças, que eu não daria a ninguém, nem
que me serrassem; guardá-la-ia em casa, dizendo a mamãe que a tinha achado na
rua. Para que me não fugisse, ia-a apalpando, roçando-lhe os dedos pelo cunho,
quase lendo pelo tato a inscrição, com uma grande vontade de espiá-la.
— Oh! seu Pilar! bradou o mestre com voz de
trovão.
Estremeci como se acordasse de um sonho, e
levantei-me às pressas. Dei com o mestre, olhando para mim, cara fechada,
jornais dispersos, e ao pé da mesa, em pé, o Curvelo. Pareceu-me adivinhar
tudo.
— Venha cá! bradou o mestre.
Fui e parei diante dele. Ele enterrou-me pela
consciência dentro um par de olhos pontudos; depois chamou o filho. Toda a
escola tinha parado; ninguém mais lia, ninguém fazia um só movimento. Eu,
conquanto não tirasse os olhos do mestre, sentia no ar a curiosidade e o pavor
de todos.
— Então o senhor recebe dinheiro para ensinar
as lições aos outros? disse-me o Policarpo.
— Eu...
— Dê cá a moeda que este seu colega lhe deu!
clamou.
Não obedeci logo, mas não pude negar nada.
Continuei a tremer muito. Policarpo bradou de novo que lhe desse a moeda, e eu
não resisti mais, meti a mão no bolso, vagarosamente, saquei-a e entreguei-lha.
Ele examinou-a de um e outro lado, bufando de raiva; depois estendeu o braço e
atirou-a à rua. E então disse-nos uma porção de coisas duras, que tanto o filho
como eu acabávamos de praticar uma ação feia, indigna, baixa, uma vilania, e
para emenda e exemplo íamos ser castigados. Aqui pegou da palmatória.
— Perdão, seu mestre... solucei eu.
— Não há perdão! Dê cá a mão! dê cá! vamos!
sem-vergonha! dê cá a mão!
— Mas, seu mestre...
— Olhe que é pior!
Estendi-lhe a mão direita, depois a esquerda,
e fui recebendo os bolos uns por cima dos outros, até completar doze, que me
deixaram as palmas vermelhas e inchadas. Chegou a vez do filho, e foi a mesma
coisa; não lhe poupou nada, dois, quatro, oito, doze bolos. Acabou, pregou-nos
outro sermão. Chamou-nos sem-vergonhas, desaforados, e jurou que se
repetíssemos o negócio, apanharíamos tal castigo que nos havia de lembrar para
todo o sempre. E exclamava: Porcalhões! tratantes! faltos de brio!
Eu, por mim, tinha a cara no chão. Não ousava
fitar ninguém, sentia todos os olhos em nós. Recolhi-me ao banco, soluçando, fustigado
pelos impropérios do mestre. Na sala arquejava o terror; posso dizer que
naquele dia ninguém faria igual negócio. Creio que o próprio Curvelo enfiara de
medo. Não olhei logo para ele, cá dentro de mim jurava quebrar-lhe a cara, na
rua, logo que saíssemos, tão certo como três e dois serem cinco.
Daí a algum tempo olhei para ele; ele também
olhava para mim, mas desviou a cara, e penso que empalideceu. Compôs-se e
entrou a ler em voz alta; estava com medo. Começou a variar de atitude,
agitando-se à toa, coçando os joelhos, o nariz. Pode ser até que se
arrependesse de nos ter denunciado; e na verdade, por que denunciar-nos? Em que
é que lhe tirávamos alguma coisa?
"Tu me pagas! tão duro como osso!"
dizia eu comigo.
Veio a hora de sair, e saímos; ele foi
adiante, apressado, e eu não queria brigar ali mesmo, na Rua do Costa, perto do
colégio; havia de ser na Rua Larga de São Joaquim. Quando, porém, cheguei à
esquina, já o não vi; provavelmente escondera-se em algum corredor ou loja;
entrei numa botica, espiei em outras casas, perguntei por ele a algumas
pessoas, ninguém me deu notícia. De tarde faltou à escola.
Em casa não contei nada, é claro; mas para
explicar as mãos inchadas, menti a minha mãe, disse-lhe que não tinha sabido a
lição. Dormi nessa noite, mandando ao diabo os dois meninos, tanto o da
denúncia como o da moeda. E sonhei com a moeda; sonhei que, ao tornar à escola,
no dia seguinte, dera com ela na rua, e a apanhara, sem medo nem escrúpulos...
De manhã, acordei cedo. A ideia de ir
procurar a moeda fez-me vestir depressa. O dia estava esplêndido, um dia de
maio, sol magnífico, ar brando, sem contar as calças novas que minha mãe me
deu, por sinal que eram amarelas. Tudo isso, e a pratinha... Saí de casa, como
se fosse trepar ao trono de Jerusalém. Piquei o passo para que ninguém chegasse
antes de mim à escola; ainda assim não andei tão depressa que amarrotasse as
calças. Não, que elas eram bonitas! Mirava-as, fugia aos encontros, ao lixo da
rua...
Na rua encontrei uma companhia do batalhão de
fuzileiros, tambor à frente, rufando. Não podia ouvir isto quieto. Os soldados
vinham batendo o pé rápido, igual, direita, esquerda, ao som do rufo; vinham,
passaram por mim, e foram andando. Eu senti uma comichão nos pés, e tive ímpeto
de ir atrás deles. Já lhes disse: o dia estava lindo, e depois o tambor...
Olhei para um e outro lado; afinal, não sei como foi, entrei a marchar também
ao som do rufo, creio que cantarolando alguma coisa: Rato na casaca... Não fui à escola, acompanhei os fuzileiros,
depois enfiei pela Saúde, e acabei a manhã na Praia da Gamboa. Voltei para casa
com as calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso nem ressentimento na alma. E
contudo a pratinha era bonita e foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o
primeiro conhecimento, um da corrupção, outro da delação; mas o diabo do tambor...
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Imagem:
Revista Vamos Ler!, edição de 11/02/1943. Biblioteca Nacional Digital - Hemeroteca.
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Revista Vamos Ler!, edição de 11/02/1943. Biblioteca Nacional Digital - Hemeroteca.
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